O ruralista Antônio Galvan tem conquistado facilidades no governo federal ao mobilizar produtores rurais favoráveis ao discurso golpista do presidente Jair Bolsonaro. Em 10 de setembro do ano passado, vinte dias depois de ter sido alvo de busca e apreensão pela PF por liderar atos pregando a invasão do Congresso e a deposição dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), o agora candidato ao Senado pelo PTB do Mato Grosso, comemorava a autorização do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA) para alongar em 34 dias a janela de plantio de soja, medida que beneficiou Galvan e outros 36 produtores que, como ele, fazem parte do grupo bolsonarista mais radical da Associação Brasileira de Produtores de Soja, a Aprosoja. A entidade – junto com sua associada mato-grossense – vem sendo investigada pela Polícia Federal por suspeitas de financiar atos antidemocráticos.
A concessão encurtou perigosamente o chamado vazio sanitário da soja, uma recomendação da ciência agrícola para controlar a ferrugem asiática, praga que representa hoje a mais forte ameaça à principal commodity do agronegócio e ao meio ambiente, que é afetado pelo uso de maior quantidade de agrotóxico diante da resistência do fungo.
Até a publicação da instrução normativa do MAPA, que avocou a prerrogativa do governo estadual sem contestação do governador Mauro Mendes, a soja era semeada, desde 2015, entre 16 de setembro a 31 de dezembro seguindo regras científicas aplicadas pelo órgão estatal sanitário do Estado. Com a nova medida, a semeadura se estendeu até o dia 3 de fevereiro, permitindo que Galvan e outros 36 produtores usassem a janela ampliada para produzir.
A mudança no calendário do plantio mostra que as relações entre o governo Bolsonaro e o grupo radical do agro, bem além das afinidades ideológicas extremistas, são feitas também mediante e um provável toma lá-dá-cá. Ou seja: os atos de apoio à campanha pela reeleição têm contrapartida nas medidas que facilitam a vida de um reduzido grupo de produtores. Nos seis anos em que vigorou o calendário organizado pelos órgãos sanitários estaduais, aceito pela quase totalidade dos mais de 7 mil filiados à própria Aprosoja-MT, Galvan tentou adequá-lo aos seus interesses à base da pressão, colocando a entidade nacional (da qual se licenciou em maio para disputar a eleição) no centro do conflito com o Ministério Público estadual e outras 13 instituições, entre as quais está a Embrapa, que recomenda o calendário como a única alternativa de combate à ferrugem asiática. Não é o que pensa Galvan.
Conforme relatou à Agência Pública uma fonte que pediu anonimato, numa audiência com o Procurador Geral de Justiça de Mato Grosso, José Antônio Borges Pereira e promotores do meio ambiente, o pecuarista foi truculento e intransigente: “Vou plantar e acabou! É assim e assim será!”, teria reagido ao insurgir-se contra o embargo imposto pelo MP ao plantio além do período do calendário.
Antes das mudanças impostas pelo MAPA, o MP-MT ingressou com 14 ações de improbidade administrativa contra Galvan e os produtores que integram seu grupo por desrespeito ao meio ambiente e riscos ao próprio agronegócio diante da possibilidade de expansão da praga. No Tribunal de Justiça de Mato Grosso, por iniciativa do PT local, tramita também uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) pedindo o retorno do calendário sob o argumento de que as Constituições estadual e federal conferem ao governo estadual a prerrogativa legal de definir as normas sanitárias para o plantio da soja.
“O Galvan brigou muito no estado para alterar o calendário e perdeu. Depois levou a bandeira para a Aprosoja nacional e conseguiu mudar a política do MAPA”, disse à Pública a promotora de justiça Ana Luiza Peterlini, responsável pela área ambiental do MP mato-grossense. “É um retrocesso. A praga não respeita fronteiras e a única alternativa eficaz para combatê-la é o vazio sanitário, respeitando as regras recomendadas pela ciência”, afirmou.
Segundo a promotora, as infrações são praticadas por um pequeno grupo ligado a Galvan. Os órgãos sanitários identificaram o plantio irregular em 83 unidades de produção espalhadas por 46 municípios, responsáveis pelo plantio irregular de um total de área com pouco mais de 8 mil hectares, uma pequena fração se comparada com os 10 milhões de hectares dedicadas ao cultivo da soja no Estado, distribuídos entre mais de 14 mil lavouras. Foi justamente nas propriedades de 37 produtores que se constatou a presença mais severa da ferrugem que, fora de controle, pode se propagar, causando queda entre 10% e 20% na produção, com reflexo fortemente negativo no PIB local.
“O governador lavou as mãos”
Embora tenha apoiado o pacto entre as entidades e orientado o Instituto de Defesa Agropecuária de Mato Grosso (Indea) a garantir barreiras de proliferação à praga, o governador Mauro Mendes (União Brasil), apoiador de Bolsonaro, aceitou sem questionamentos as regras do MAPA. “O governador lavou as mãos”, diz a promotora. Nos bastidores, Mendes argumentou a interlocutores que optou por uma posição isenta para evitar encrenca com o presidente que dias antes da portaria ministerial, às vésperas do feriado da independência, havia recebido Galvan e o grupo de ruralistas e caminhoneiros investigados no inquérito sobre atos antidemocráticos que corre no STF sob o crivo do ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Áudios e vídeos com ameaças do grupo ao Congresso e STF foram, aliás, gravados no mesmo período na sede da Aprosoja, em Brasília.
Investigações da Polícia Federal miram a contabilidade da Aprosoja, sob a suspeita de que parte dos recursos da entidade e, individualmente, de seus associados, possa ter bancado os atos antidemocráticos. Além de Galvan, figuram como alvos o cantor Sérgio Reis e, entre outros, o deputado Otoni de Paula (MDB-RJ). Com patrimônio de R$ 14 milhões declarados à Justiça Eleitoral e cerca de R$ 6 milhões em multas pendentes por danos ambientais aplicadas pelo Ibama, Galvan se define como “único candidato da direita bolsonarista em Mato Grosso”.
Poucos no agro têm, de fato, tanta afinidade com o presidente: autoritário e com discurso radical contra opositores de esquerda, o ruralista está entre os candidatos cujas contribuições eleitorais, cerca de R$ 500 mil, são originárias de infratores como ele. Em maio deste ano, Galvan se licenciou da Aprosoja e ajudou a fundar o Movimento Brasil Verde e Amarelo que, formado, segundo afirma, por 200 entidades, participará da festa da Independência na Esplanada deste ano com um exótico desfile de 28 tratores, 27 deles representando os Estados brasileiros e o Distrito Federal e um, no qual ele deverá estar em cima, o agronegócio. Procurado através de sua assessoria de imprensa, Galvan não deu retorno.
O problema do ruralista está, no entanto, nas investigações iniciadas no ano passado. No pedido de abertura do inquérito, a subprocuradora geral da República, Lindôra Araújo, afirma que “à guisa de exemplo dessa organização, cita-se a utilização de receitas advindas da APROSOJA Nacional, e de possível uso da estrutura da APROSOJA-MT (de onde é originário o atual presidente e investigado) a serem destinadas aos apoiadores de atos antidemocráticos”. Segundo ela, há suspeitas de que “seriam utilizados fundos compostos por recursos públicos (contribuições), os quais, segundo documento dos autos, não possuem uma maior transparência nem têm sido destinados para suas finalidades originárias, mas sim, como capital para o financiamento de agentes para a realização das condutas antidemocráticas”.
A procuradora escreve também que “as informações trazidas ao conhecimento do Ministério Público no Ofício 2507/2021 – CPI PANDEMIA ilustram um quadro de graves violações ao princípio da transparência e da legalidade no financiamento da APROSOJA-MT”. É uma referência ao Fundo de Transporte e Habitação (Fethab), com contribuições dos produtores repassadas ao Instituto Mato-Grossense do Agronegócio (Iagro), vinculado à Aprosoja-MT.
A denúncia chegou ao MPF através de um ofício enviado pela CPI citando convênio firmado em agosto de 2019 entre o Iagro e o governo estadual, assinado por Galvan e o secretário Estadual de Fazenda do Mato Grosso, Rogério Luiz Gallo cuja legalidade está sendo questionada pelo Ministério Público do Estado através de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI). A ação visa impugnar o convênio por permitir que o Iagro use o mesmo sistema público de arrecadação de tributos da Secretaria de Fazenda do Mato Grosso (Sefaz) sobre a circulação da soja para recolher uma contribuição que se destina à iniciativa privada.
“Por mais que a economia de Mato Grosso seja baseada no agro, não significa que o Estado tenha que recolher tributos para uma associação ligada a uma entidade privada. O Estado virou arrecadador para a iniciativa privada. É inconstitucional”, disse à Pública o Procurador Geral de Justiça do Mato Grosso, José Antônio Borges Pereira.
Criado em 2000 para a manutenção de estradas, moradia e educação, o Fundo de Transporte e Habitação (Fethab), passou por uma radical mudança a partir de agosto de 2019, época em que Galvan firmou a parceria com a Secretaria Estadual de Fazenda, ainda no primeiro ano da gestão Mauro Mendes. Pelo convênio, a máquina pública passou a arrecadar junto com os demais tributos a contribuição obrigatória ao Fethab equivalente a 1,15% da unidade padrão fiscal vigente por tonelada de soja transportada. Em apenas cinco portarias publicadas entre dezembro de 2020 e junho de 2021, o governo informou ter repassado para o Iagro um total de R$ 55,3 milhões, recursos que se misturaram ao cofre da Aprosoja.
Na petição inicial sobre a ADI, Borges Pereira afirma que, além de condicionar o benefício fiscal ao recolhimento de contribuição, pelo convênio o governo estadual autoriza o uso de toda a máquina pública de arrecadação – da emissão de documentos ao corpo de servidores – para a elaboração de prestação de contas e repasse de verba para entidades associativas privadas. “Associações específicas se valeram de seu poderio econômico e político e fizeram do Estado seu escritório de cobranças, distorcendo a finalidade pública que deve imperar no uso de bens e serviços do poder público, em nítida violação de normas constitucionais”, escreve Borges Pereira na ADI, que deve entrar na pauta de julgamentos do Tribunal de Justiça do Mato Grosso em outubro. Além do Iagro, outras cinco associações ligadas a cadeias do agronegócio se beneficiaram de parceria semelhante, igualmente questionadas na mesma ação.
As irregularidades apontadas na ADI foram levadas em conta pela procuradora Lindôra Araújo no pedido de bloqueio das contas bancárias da Aprosoja, atendido pelo ministro Alexandre de Moraes. Em nota enviada à Pública por sua assessoria de imprensa, a Aprosoja nacional afirma que não participou da organização do movimento de agricultores no 7 de Setembro do ano passado nem deste ano. “A entidade não financiou caravanas nem a vinda de produtores a Brasília. Os produtores que vierem farão por conta própria, individualmente, sem a participação da entidade, como foi em 2021”, diz a nota.
Desde setembro do ano passado, quando foi alvo de mandado de busca e apreensão em Sinop, no Mato Grosso, Galvan está obrigado a manter distância de um quilômetro da Praça dos Três Poderes e não pode se comunicar com os demais investigados, restrições que devem limitar sua circulação na Esplanada neste 7 de setembro. Segundo uma fonte da PF, não há dúvidas de que ele, embora licenciado, na prática ainda exerce forte influência na Aprosoja e, mesmo tendo se tornado alvo de medidas cautelares, pode influenciar grupos radicais que se dirigem de vários pontos do país para Brasília. Na avaliação da PF, os inquéritos que tramitam no STF podem inibir este ano eventuais tentativas de ações extremistas pelos mesmos grupos que no 7 de setembro do ano passado tentaram furar os bloqueios na Esplanada para invadir o Congresso e o STF.