Enquanto bolsonaristas golpistas bloqueavam estradas e faziam acampamentos na frente de quartéis para pedir que Jair Bolsonaro fizesse uma “intervenção militar”, eufemismo para um golpe de Estado, o presidente já estava fazendo as malas para deixar o Palácio do Planalto. Ainda no começo de novembro, Bolsonaro indicou que pretende repassar ao AN (Arquivo Público), ligado ao Ministério da Justiça, e à FBN (Fundação Biblioteca Nacional), vinculada ao Ministério do Turismo, os documentos, livros e outras publicações recebidas ao longo de seu mandato.
A intenção de fazer a entrega aos dois órgãos públicos “foi levada ao conhecimento e deliberação da Comissão Memória dos Presidentes da República, o que foi aprovada por unanimidade, na 4ª Reunião Ordinária, em 8 de novembro de 2022”, confirmou a Secretaria de Comunicação da Presidência em mensagem à Agência Pública. Ou seja, apenas oito dias depois do segundo turno, a Presidência já buscava um destino para os materiais. Segundo a Secom, esse destino “foi por ele [Bolsonaro] decidido”, como titular de “um acervo privado”, que “tem a prerrogativa de definir o local de destino e guarda do seu acervo”.
Ao contrário de presidentes anteriores, como José Sarney (1985-1990), Itamar Franco (1992-1994), Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), Bolsonaro não anunciou a criação de uma fundação que poderia abrigar todo o acervo num único local.
A Presidência divide o acervo acumulado pelo presidente durante seu mandato em três: arquivístico (documentos e cartas, principalmente), bibliográfico (livros e publicações) e museológico (como peças de artesanato, estátuas, móveis e pinturas). Bolsonaro pretende doar o arquivístico para o AN e o bibliográfico para a FBN. O terceiro grupo, conforme a Presidência informou à Pública, “ficará sob guarda do seu titular em local a ser definido”. Ou seja, Bolsonaro ainda não decidiu o destino desse material.
Segundo a Presidência, “por preceito legal e tratando-se de um acervo PRIVADO, o titular deste tem a prerrogativa de definir o local de destino e guarda do seu acervo”. “No presente momento estão sendo tomadas as providências de natureza técnica e logística para a transferência desses Acervos aos seus respectivos destinos.”
“O Gabinete Adjunto de Documentação Histórica, integrante da estrutura do Gabinete Pessoal do Presidente da República, executa atividades de gestão informacional e documental relativa à formação do Acervo PRIVADO do Presidente da República. O acervo privado presidencial é composto por centenas de objetos e documentos que tangenciam a trajetória de vida do Presidente da República, acumulados não apenas durante os anos de mandato presidencial, mas também antes e após assumir o cargo. Representantes da história da nação, os acervos presidenciais são considerados pela legislação brasileira como de interesse público (art. 3º da Lei nº 8.394, de 30 de dezembro de 1991) e incluídos no rol do patrimônio cultural brasileiro”, diz a nota da Presidência.
Situação incomum
A Pública apurou, no entanto, que há dúvidas no Arquivo Nacional sobre a possibilidade de receber o material que Bolsonaro pretende doar, já que o órgão não tem por tradição receber materiais reunidos por presidentes da República nos seus mandatos. Ao longo dos anos, os ex-presidentes criaram o hábito de abrir fundações para esse fim específico. Itamar Franco, por exemplo, inaugurou um memorial em 2002, nove anos antes do seu falecimento. O Instituto Lula – sucessor do Instituto Cidadania, criado ainda nos anos 90 – passou a cuidar do acervo do então ex-presidente. A Fundação FHC foi criada em 2004 e cuida da documentação do ex-presidente.
Até os anos 1980, na ausência de uma legislação clara, ex-presidentes ou seus familiares trataram desses materiais à sua maneira. Os generais ditadores deixaram o acervo em diferentes locais: com suas próprias famílias ou auxiliares, com o CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil) da FGV (Fundação Getúlio Vargas), com o Exército. Somente na década de 80 começaram a ser tomadas iniciativas governamentais e não governamentais “no sentido de se estabelecer uma política de preservação de acervos privados de ex-presidentes”, diz texto divulgado pelo Arquivo Nacional em seu site na internet. A ideia era não permitir a fragmentação do acervo entre diversas instituições, mas sim a sua unidade. A dispersão dos acervos pode levar à perda do “elo informacional existente entre eles”. Apenas em 1991 surgiu uma lei (nº 8394) que dispõe “sobre a preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República e dá outras providências”.
A lei estabelece que os documentos do acervo presidencial privado “são na sua origem de propriedade do presidente da República, inclusive para fins de herança, doação ou venda”. Ao mesmo tempo, porém, “integram o patrimônio cultural brasileiro e são declarados de interesse público”. Assim, a lei estabelece que os acervos documentais devem ficar “acessíveis à consulta pública e à pesquisa, com exceção das restrições previstas em lei” e diz que “fica assegurada a consulta ou pesquisa, para fins de estudo ou trabalho, de caráter técnico ou acadêmico, mediante solicitação fundamentada”.