A senadora Damares Alves (Republicanos-DF) criou uma “Embaixada do Marajó” dentro do ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, que comandou durante boa parte do governo de Jair Bolsonaro. A estrutura ocupava uma sala dentro do ministério, sinalizada com uma placa, e funcionava com servidores dedicados à gestão do ‘Abrace o Marajó’, criado pela ex-ministra para combater a exploração infantil e sexual no arquipélago paraense. O programa entrou na mira da Controladoria Geral da União (CGU), segundo informações do governo atual adiantadas para a Agência Pública.
“Uma das primeiras providências, quando a gente entrou, foi auditar internamente essa estrutura [da Embaixada do Marajó]. Informamos à CGU que, por iniciativa própria, pediu informações sobre o programa para auditoria”, explica a secretária-executiva dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDH), Rita Oliveira.
A “Embaixada do Marajó” foi desmobilizada pelo MDH, mas os achados da auditoria interna não foram divulgados. A pasta, hoje comandada por Silvio Almeida, informou apenas que exonerou todos os servidores que atuavam nessa estrutura. Por nota, a CGU informou que está realizando “um trabalho de avaliação da execução do Programa Abrace o Marajó, em fase final, cujo escopo é avaliar o processo de governança e execução dos Projetos / Ações e Iniciativas (PAI) constantes do Plano de Ação 2020-2023 do Programa. O referido Plano de Ação contém mais de 100 ações a serem implementadas nos 16 municípios que compõem o arquipélago do Marajó”.
A secretária Rita Oliveira diz que os resultados monitorados mostram que as ações do Abrace o Marajó foram superficiais, como entregas de cestas básicas. Muitos indicadores sociais na região pioraram, segundo ela, a exemplo de questões relacionadas a conflitos socioambientais. “Havia ausência de diálogo com as comunidades, que vêem o programa como um instrumento estigmatizante da região”, aponta.
Ainda segundo o MDH, o Abrace o Marajó será substituído pelo Programa Cidadania Marajó.
No começo deste mês, uma comitiva do Ministério de Direitos Humanos, com participação do Conselho Nacional de Justiça e da sociedade civil organizada, visitou o arquipélago, localizado na foz do rio Amazonas. O relatório da visita, ao qual a reportagem teve acesso, questiona a efetividade do Abrace o Marajó e afirma que “os indicadores não demonstram resultados positivos na região”.
“A cobertura vacinal nos municípios do Marajó foi de 59,20% em 2019 para 42,20% em 2022. A taxa de mortalidade infantil, que era de 7,54 em 2018, foi de 7,89 em 2022. A taxa de gravidez na adolescência se manteve praticamente estável, sendo de 28,6% em 2019, 27,5% em 2020 e 28,0% em 2021”, informa.
O relatório afirma que, nos últimos quatro anos, o governo federal diminuiu investimentos nos municípios do Marajó, “sobretudo na assistência social, área estratégica para o sistema de garantia de direitos”. Segundo o texto, em 2021, durante a pandemia, quando o Abrace o Marajó já estava vigente, houve “uma redução drástica dos recursos transferidos em relação ao ano anterior”. O “aumento da vulnerabilidade da população com o desmonte de políticas públicas para a região, assim como a invasão dos territórios com o objetivo de sua exploração, têm como consequência o aumento do abuso e da exploração sexual contra crianças e adolescentes, como é de conhecimento da população local”, destaca o relatório.
Em 2022, segundo o MDH, “quase a totalidade de municípios da região registraram situações de abuso sexual contra crianças e adolescentes nos registros de ingresso no Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI), ofertado pelos Centros de Referência Especializado de Assistência Socialb (CREAS)”. Os dados de gravidez precoce são alarmantes. De acordo com o relatório, “28,3% de todas as crianças nascidas vivas no Marajó, entre 2018 e 2021, eram filhas de mães que tinham até 19 anos na data do parto. No Brasil esse percentual fica em 14,5%, enquanto no estado do Pará é de 22,5%.”
A secretária-executiva do MDH, Rita de Oliveira, afirma que “a exploração sexual de crianças e adolescentes no Marajó está vinculada a um contexto histórico de precariedade socioeconômica”. “A região concentra os piores IDH do Brasil, há problemas sérios de geração de emprego e renda e o antigo programa não produziu uma mudança de contexto”, afirma. A secretária diz que o ministério fez uma escuta social ampliada no território e que uma ouvidoria itinerante continuará atuando nas comunidades.
Assim como o anterior, o novo programa lançado pelo governo atual também prevê ações interministeriais. “No Abrace o Marajó essa articulação era genérica. A gente quer articular para ações específicas, com o Ministério da Saúde, por exemplo, para a adequação de ambulanchas, que já existem mas não estão acessíveis para as pessoas porque não têm combustível nem embarcação adequada.”
Dentro das 26 ações previstas no Programa Cidadania Marajó, que ainda não tem orçamento definido, estão listadas iniciativas conjuntas com os ministérios da Comunicação, para oferecer internet nas escolas; Meio Ambiente, para o combate ao uso massivo de agrotóxicos e com os ministérios da Justiça, da Defesa e a Polícia Federal, para monitoramento de fronteiras no combate ao tráfico de pessoas.
No último dia 23, durante uma audiência na Comissão de Desenvolvimento do Senado sobre a situação dos indígenas Yanomami em Roraima, Damares Alves falou que pretende se candidatar ao governo do Marajó. “Eu sou candidata no Marajó. Eu quero dividir o Marajó, fazer um principado e entrar como princesa regente”. Depois que o termo “princesa Damares” ficou entre os assuntos mais comentados do Twitter, ela disse que estava brincando.
No lançamento do Abrace o Marajó, em 2019, a ex-ministra chegou a afirmar que as meninas do arquipélago eram estupradas porque não usavam calcinhas. No fim do ano passado, o Ministério Público Federal pediu explicações para a senadora depois que ela detalhou, sem provas, supostos abusos sexuais cometidos no arquipélago do Marajó, em um culto evangélico onde havia crianças.
Por nota, a senadora Damares Alves informou que “o Programa Abrace o Marajó, criado por decreto presidencial, era coordenado pela Secretaria Executiva do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Dentro dessa Secretaria havia a Diretoria do Programa Abrace o Marajó. Os membros dessa Diretoria ocupavam uma sala no Ministério que passou a ser chamada, internamente, de Embaixada do Marajó, por ter sido decorada pelos servidores com objetos e imagens da cultura marajoara”.
A ex-ministra e atual senadora enviou um relatório com balanço da gestão que cita resultados do Abrace o Marajó. Entre outros pontos, Damares Alves cita investimentos de mais de R$1,1 bilhão “investidos no território em parcerias complementares à ação governamental no arquipélago”; distribuição de mais de 130 mil cestas básicas e 486.740 itens de higiene pessoal para famílias dos municípios mais isolados; capacitação de cerca de 500 jovens, com idade entre 18 e 29 anos, para o empreendedorismo com treinamento, mentoria, oficinas e palestras em intercâmbios remotos; atendimentos de telemedicina; programas de regularização fundiária, acesso a energia elétrica e internet. A resposta completa pode ser lida aqui.
A reportagem questionou o MDH sobre o motivo dos documentos da gestão anterior estarem fora do ar e aguarda a resposta.