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Mulher foi presa em hospital com hemorragia, dores e convulsões e forçada a confessar aborto

Reportagem
28 de agosto de 2023
06:00
Este artigo tem mais de 1 ano

Um juiz usou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para justificar a quebra de sigilo médico em um caso de aborto. Na decisão, o magistrado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo compara o feto a uma criança já nascida ao invocar o “dever de comunicar maus-tratos à criança ou adolescente” para isentar a equipe médica de uma Santa Casa de Misericórdia, no noroeste paulista, por ter denunciado uma paciente que procurou a emergência, depois de ter abortado. A polícia chegou a prender a mulher dentro do hospital. 

A Agência Pública teve acesso com exclusividade à decisão, que faz parte de uma ação indenizatória, movida contra a Santa Casa pela jovem, que na época tinha 26 anos. Ela afirma que foi forçada a confessar o aborto e que os funcionários do hospital deram informações à Polícia Militar, sem sua autorização. A jovem foi liberada depois de pagar fiança, mas disse que foi obrigada a mudar de cidade por ter recebido ameaças de morte após o caso ter sido divulgado na imprensa. 

Trecho da sentença do juiz

A indenização por danos morais, no valor de R$ 10 mil, tinha sido concedida na decisão em primeiro grau, entendendo que houve quebra de sigilo profissional por parte dos funcionários da Santa Casa. Mas, em abril deste ano — seis anos após o aborto e a prisão da jovem — , o juiz relator do caso julgou o pedido improcedente e usou o ECA, que é o marco legal regulatório dos direitos humanos das crianças e adolescentes, para justificar sua posição. Um recurso foi apresentado ao Superior Tribunal Federal (STF) e está em tramitação. 

O Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensoria Pública de São Paulo, que apresentou o recurso, classificou o uso do ECA na decisão como um “equívoco conceitual e jurídico”. Um dos trechos afirma que o “embrião não é criança, não sendo, portanto, aplicável o Estatuto da Criança e do Adolescente ao caso”.

 

Trecho de recurso apresentado pela Defensoria Pública

Entre outros argumentos, a Defensoria Pública também contestou a decisão do juiz alegando que “o direito à saúde requer o fornecimento de informações precisas sobre cuidados médicos, incluindo informações sobre aborto, sem que haja receio de sanções criminais contra mulheres e meninas ou contra prestadores de serviços médicos que as ajudem a interromper a gestação, de modo a evitar que essas mulheres e meninas recorram ao aborto clandestino e inseguro”. 

O nome do juiz e da mulher que foi criminalizada não foram revelados a pedido da Defensoria Pública, por segurança da jovem, considerando que o processo contra ela ainda está em aberto. Por nota, o TJSP respondeu que não se pronuncia sobre questões jurisdicionais. “Os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente”.

Com dores e convulsionando, jovem foi detida em hospital e liberada com hemorragia 

Mesmo com dores, sangrando e convulsionando, a jovem foi mantida sob custódia no hospital, pela polícia, por quase um dia. Ela foi liberada depois que seus familiares pagaram fiança e recebeu alta enquanto ainda estava com hemorragia. 

“Fui deixada convulsionando sozinha. Me colocaram numa cadeira. Não tinha médicos ao meu lado, só enfermeiros. Enquanto estava passando mal, uma enfermeira chefe ficava me acusando. Ela dizia: ‘é melhor você confessar à polícia que usou medicação’”, lembra. A mulher responde ao processo em liberdade. 

Quando o abortamento aconteceu, ela ganhava um salário mínimo e já tinha dois filhos. Mulher parda, com baixa escolaridade e sem antecedentes criminais, a jovem representa um perfil predominante entre as mulheres criminalizadas por aborto no estado de São Paulo.

Um levantamento inédito ao qual a Pública teve acesso, feito com base em 37 habeas corpus (HC) apresentados pelo Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (Nudem/SP), mostra que são, muitas vezes, mulheres pardas e pretas, têm menos de 29 anos, são pouco educadas, pobres e sem antecedentes criminais. Muitas também já eram mães e principais responsáveis pelo sustento da família quando o aborto aconteceu. 

Todos os hapeas corpus foram apresentados pela Defensoria com o objetivo de trancar as ações penais em andamento contra mulheres pela suposta prática de aborto, que ainda é criminalizada no Brasil. O aborto legal é garantido apenas nos casos de gravidez decorrente de estupro, anencefalia do feto e riscos à vida da gestante. Em dois casos identificados pela Defensoria, as mulheres eram vítimas de violência sexual e os abortamentos tinham sido realizados em equipamentos de saúde especializados. Ainda assim, elas foram criminalizadas. 

“Com esses HCs, a gente quer dizer que existe uma ilicitude tão grande que não há justa causa para existência de uma ação. A gente considerou uma ausência de materialidade flagrante. Em nenhum dos casos, por exemplo, houve perícia de medicamentos usados pelas acusadas para comprovar que seriam válidos pra provocar o aborto. Outra questão é que, em quase nenhum dos casos, o exame necroscópico foi capaz de identificar se o aborto aconteceu por medicação ou não”, explica a defensora pública e coordenadora do Nudem/SP, Nalida Coelho Monte. 

Em 54% dos casos levantados pelo Nudem/SP, as pacientes foram denunciadas por profissionais de saúde, que as atenderam em equipamentos do SUS. As prisões ocorridas nos hospitais se davam com escolta policial e manutenção de algumas mulheres algemadas no leito – ainda que essa prática seja vedada por súmula do Supremo Tribunal Federal –, até a concessão de alta médica ou recolhimento da fiança.

“Há situações onde a equipe de saúde não fez a denúncia para a polícia, mas a quebra do sigilo médico aconteceu quando esses profissionais foram chamados a depor”, diz a coordenadora. “A conduta do médico é atender. Ele é um confidente necessário. A Constituição assegura o direito à intimidade e à saúde e o Código de Processo Penal garante ao médico a possibilidade de não ser testemunha nesses casos. O Código Penal também criminaliza a violação sigilo”, acrescenta. 

A análise dos casos feita pelo Nudem/SP também mostra que os homens que se relacionaram com essas mulheres acusadas foram citados em 23 processos, mas apenas sete foram denunciados criminalmente.

Em seis casos em que as mulheres foram presas em flagrante, o Nudem/SP também identificou que as fianças variaram entre R$ 724 e 3 mil. “Há uma desproporcionalidade entre o valor da fiança e a renda mensal declarada pelas mulheres”, diz o documento. 

O levantamento concluiu que “as mulheres acusadas de prática de aborto são “vítimas de violações de seus direitos à intimidade, privacidade, devido processo legal e efetivo acesso à justiça”. Também que “a pobreza aumenta os riscos de uma mulher ser criminalizada também quando se fala do crime de aborto”.

Reprodução
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Bruno Fonseca/Agência Pública

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