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Estudo confirma que pelo menos 692 crianças de até 9 anos morreram no período

Reportagem
24 de agosto de 2023
12:00
Este artigo tem mais de 1 ano

Um relatório produzido pelo projeto “Achados e Pedidos” revelou “o estrangulamento” da aplicação de recursos do órgão do governo federal responsável por cuidar da saúde de 28 mil indígenas Yanomami e Ye’kwana, em Roraima e Amazonas, durante os quatro anos do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022). Em janeiro de 2023, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva declarou emergência sanitária e deflagrou uma operação para retirada dos invasores da terra indígena, ao denunciar uma grave crise de fome, malária e altos índices de mortalidade no território.

“A redução orçamentária da saúde indígena Yanomami desembocou na tragédia humanitária. […] Os dados oficiais são precários, incongruentes, subnotificados e parciais, mas ao menos 692 crianças Yanomami com até 9 anos morreram de 2019 a 2022”, apontou o relatório

O “Achados e Pedidos”, projeto realizado pela Transparência Brasil e pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), examinou o orçamento executado de 2019 a 2022 pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (Dsei-Y), sediado em Boa Vista (RR), vinculado ao Ministério da Saúde. Foram ministros da Saúde no período Luiz Mandetta (2019-abril de 2020), Nelson Teich (abril e maio de 2020), Eduardo Pazuello (2020-2021) e Marcelo Queiroga (2021-2022).

O relatório lembra que em janeiro de 2018, quando Bolsonaro assumiu a Presidência, “o sinal de alerta já estava aceso no DSEI-Y”. Em 2018, segundo o estudo, “ao menos 119 bebês haviam morrido antes de completar um ano”, “cerca de 2,5 mil crianças com menos de cinco anos apresentavam peso baixo ou muito baixo e outras mil sequer eram monitoradas” e havia pelo menos 10 mil casos de malária, “uma alta de 26% em relação ao ano anterior [2017]”.

Um estudo conduzido pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), segundo o relatório, constatou que “a situação nutricional das crianças Yanomami é a mais delicada já reportada em toda a literatura científica nacional e uma das maiores em escala mundial”.

Crianças yanomami descansam em redes dispostas em cômodo de construção indígena tradicional
Pelo menos 692 crianças yanomami de até 9 anos morreram durante o governo Bolsonaro

“Fica evidente que o governo Bolsonaro sucateou o distrito sanitário”

Apesar de todos esses alertas, “o volume de recursos federais aportados no DSEI-Y em 2019 foi o menor desde 2013”. Aplicando a correção inflacionária, “houve um corte de 26% nas liquidações em relação ao ano anterior e de 48% se comparado a 2016”.

A política adotada nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro teve impacto profundo na saúde Yanomami. “Em 2019, os casos de malária dobraram. Os dados oficiais apontam, incluindo todas as causas, a morte de 190 crianças e jovens com menos de 20 anos – 14% superior a 2018.”

No mesmo ano, a taxa de liquidação dos empenhos para a saúde Yanomami “foi de apenas 79%, a mais baixa desde 2013”. Em 2019, cerca de R$ 10,8 milhões, em valores corrigidos pela inflação, “tiveram o empenho emitido, mas não foram liquidados”, ou seja, “houve reserva de recursos, mas não ocorreram contratações ou entrega dos produtos e serviços correspondentes eventualmente contratados”.

“No comparativo com anos anteriores, fica evidente que o governo Bolsonaro sucateou o DSEI-Y. Em 2018, foram empenhados R$ 7,1 milhões na categoria investimento em valores correntes. Em 2019, apenas R$ 96,3 mil. No ano seguinte, nada foi lançado nessa classificação. Os investimentos, em geral, significam aquisições de equipamentos de longa duração e obras, ou seja, melhorias estruturais.”

O relatório cita algumas despesas realizadas pelo Dsei-Y antes de Bolsonaro chegar à Presidência. No final de 2018, durante o governo de Michel Temer (2016-2018), por exemplo, o distrito sanitário comprou 50 refrigeradores para armazenamento de vacinas e medicamentos, ao custo de R$ 5,8 milhões. Em 2016, os investimentos somaram R$ 2,96 milhões. Durante os quatro anos do governo Bolsonaro, contudo, foi empenhado apenas R$ 1,3 milhão em investimentos no Dsei-Y.

O maior empenho individual, diz o relatório, foi para a compra de 30 botes de alumínio no padrão “‘embarcação patrulha’, com capacidade para transportar de 8 a 12 homens armados, e com ‘padronização de pintura do Exército brasileiro’, ao custo de R$ 367 mil”.

Profissional de saúde do SUS atende indígena yanomami
Volume de recursos federais aportados no Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (Dsei-Y) em 2019 foi o menor desde 2013

Governo Lula encontrou “cenário de terra arrasada”

O “estrangulamento orçamentário”, como diz o estudo, se manteve em 2020, quando a malária explodiu dentro do território, atingido nada menos que 79% da população indígena (22 mil infectados), incluindo “2,3 mil bebês com menos de dois anos de idade”.

“[Em 2020] morreram 162 crianças com menos de 5 anos por causas evitáveis, ou seja: que poderiam ter sido salvas caso houvesse atendimento em saúde adequado. A taxa de mortalidade infantil no DSEI Yanomami era a pior de todos os DSEIs, e superior à da África Subsaariana”, aponta o estudo.

De acordo com o relatório, como resposta a uma série de recomendações e pressões da sociedade civil, da imprensa e do Ministério Público Federal (MPF), o governo federal “mudou a postura em 2021 e 2022” e injetou mais recursos no Dsei-Y, “porém sempre abaixo dos patamares verificados entre 2013 e 2018”.

Quando, em janeiro de 2023, o governo Lula assumiu e declarou a emergência sanitária, foi constatado “um cenário de terra arrasada nas unidades de atendimento do DSEI-Y”. São 37 pólos-base de saúde na terra indígena.

“Escassez de suprimentos, funcionários cozinhando no fogão à lenha por falta de botijões de gás, armazenamento e controle precário de medicamentos – muitos deles distribuídos às vésperas do vencimento –, esgoto sanitário a céu aberto, materiais de limpeza e de higiene custeados pelos profissionais, macas enferrujadas e sem colchão”, diz o relatório sobre a realidade que o governo Lula encontrou nas unidades de saúde na terra indígena.

O baixo investimento do governo Bolsonaro, principalmente nos anos de 2019 e 2020, “foi inversamente proporcional às necessidades”, diz o relatório. Em janeiro de 2023, quando se revelou a extensão da crise, a Casa de Saúde Indígena de Boa Vista (RR) contava com 700 pessoas, entre pacientes e familiares, enquanto sua capacidade era de apenas 200. “O grupo emergencial [do governo Lula] listou problemas de infraestrutura e limpeza, com ‘fezes para todo lado’ e ‘esgoto a céu aberto’.”

Falta controle nos gastos com transporte aéreo 

O levantamento do “Achados e Pedidos” apontou ainda “a fragilidade de mecanismos de planejamento e controle interno no DSEI-Y”. O distrito liquidou R$ 118,4 milhões com serviços de táxi aéreo de 2019 a 2022, o que representou cerca de 62% de todas as liquidações no período. Um terço desse valor, contudo, ocorreu “mediante contratos por dispensa de licitação, realizados em caráter emergencial”. O uso recorrente dessa modalidade, aponta o relatório, “não é só mais ineficiente economicamente, como também mais vulnerável à malversação dos recursos públicos” e “indica, no mínimo, falhas de planejamento no DSEI-Y”.

O acesso a 98% das 371 aldeias na terra indígena se dá apenas por aviões e helicópteros. Por isso, o serviço aéreo é fundamental para o atendimento. Porém “o sistema é precário: faltam até macas e pranchas adequadas”. No final de 2022, diz o relatório, três crianças morreram “em razão da falha do serviço de transporte aeromédico e impossibilidade de locomoção”.

A falta de “atenção primária e rotinas de vigilância” transforma o atendimento à saúde nos Yanomami em “uma rotina baseada em remoções”, quase todas por via aérea, de fora da terra indígena para Boa Vista e vice-versa. “Com políticas públicas de prevenção e acompanhamento frágeis, gasta-se mais dinheiro com serviços de transporte aéreo”, apontou o relatório. Apenas em 2022, foram feitos 1.819 resgates aéreos. Os principais motivos foram “desnutrição grave, diarréias, desidratação severa, Síndrome Respiratória Aguda Grave e malária”.

Estudo recomenda a responsabilização dos gestores públicos

A partir de janeiro de 2023, com a intervenção executada pelo governo Lula, registra-se uma importante recuperação nos valores orçamentários. No primeiro semestre de 2019 e de 2020, o governo Bolsonaro empenhou no Dsei-Y R$ 33 milhões e R$ 28,6 milhões, respectivamente, contra R$ 40,78 milhões no primeiro semestre de 2018 e R$ 39,6 milhões no mesmo período de 2017. Nos seis primeiros meses em 2023, já no governo Lula, esse valor subiu para R$ 85,8 milhões, o recorde nos últimos dez anos e quase o triplo do registrado em 2020.

O relatório esclarece que “o empenho não significa que o serviço foi executado ou o produto, entregue (o que ocorre na fase de liquidação). Entretanto, o maior volume de recursos empenhados representa uma maior disponibilidade orçamentária do DSEI-Y em relação aos anos anteriores”.

Uma das recomendações do estudo é que “sejam criados mecanismos para impedir redução abrupta da disponibilidade orçamentária dos DSEIs, em especial do Yanomami, como verificado em 2019 e 2020”. O estudo pede ainda que “gestores públicos, empresas e organizações sejam responsabilizados administrativa e judicialmente por irregularidades e eventuais fraudes na execução das despesas relativas ao DSEI Yanomami, e pela omissão frente à clara necessidade de atenção à saúde no território – caracterizada, entre outros elementos, pela baixa execução orçamentária em investimentos evidenciada neste relatório”.

O relatório explica que “a análise envolveu a checagem de dados por meio de quatro fontes distintas: Portal da Transparência do governo federal, Siga Brasil (Senado Federal), Tesouro Nacional e o próprio Ministério da Saúde, via Lei de Acesso à Informação (LAI). O trabalho é parte do projeto Achados e Pedidos, realizado em parceria pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e pela Transparência Brasil. A iniciativa é financiada pela Fundação Ford”.

A direção executiva foi de Juliana Sakai, com supervisão de Marina Iemini Atoji e análise de dados e redação de Cristiano Pavini, Raul Durlo e Talita Lôbo.

Edição:
Fernando Frazão/Agência Brasil
Fernando Frazão/Agência Brasil

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