Recém-anunciado pelo governo, o novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) já tem uma crise contratada no sudeste do Pará: as obras para construção da hidrovia Araguaia-Tocantins no município de Itupiranga, a mais de 600 km da capital Belém. As gestões de Helder Barbalho (MDB), no Pará, e Wanderlei Barbosa (Republicanos), no Tocantins, têm feito lobby pelo projeto, com capacidade prevista de escoamento de 20 milhões a 60 milhões de toneladas de carga por ano. Objeto de promessas políticas há décadas, a hidrovia ganhou apoio do governo Lula no primeiro semestre, inclusive com endosso do ministro de Portos e Aeroportos, Márcio França – fato anunciado após uma reunião com o governador do Tocantins no último dia 21 de março.
Mas a iniciativa nunca saiu do papel porque há, literalmente, uma pedra em seu caminho, o Pedral do Lourenço, formação rochosa espalhada por 35 km do rio Tocantins, entre o vilarejo de Santa Teresinha do Tauiry e o local conhecido como Ilha do Bogéa, em Itupiranga (PA), que precisará ser inteiramente explodido para viabilizar o projeto.
Meses antes da inclusão da obra no novo PAC, a Agência Pública percorreu de barco o trecho que terá de ser destruído para dar lugar à hidrovia.
Margeado por castanhais e sumaúmas em meio às matas fechadas ao redor do rio, o Pedral do Lourenço garante a sobrevivência de pescadores e também de espécies ameaçadas de extinção na Amazônia – como o boto do Tocantins, a tartaruga da Amazônia e o tracajá, que fazem a desova de seus filhotes na área.
O Pedral é um dos raros pontos de floresta em pé fora das unidades de conservação no sudeste do Pará, uma região dominada, há décadas, pelo agronegócio e pela mineração. Mais que isso, o trecho que terá de ser explodido abriga pelo menos 22 comunidades ribeirinhas, espalhadas ao longo do curso do rio Tocantins e do lago da usina hidrelétrica de Tucuruí.
À Pública, ribeirinhos e Ministério Público Federal (MPF) denunciaram vícios no processo de licenciamento ambiental da hidrovia, a cargo do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais (Ibama). Segundo eles, não há previsões confiáveis quanto aos impactos da obra nas águas e espécies do rio. Além disso, pescadores afirmam que têm sido ignorados.
Desde 2019, o corpo técnico do Ibama identificou uma série de problemas nos relatórios ambientais da obra. Mesmo assim, o ex-presidente da autarquia Eduardo Bim deu uma licença prévia, válida por cinco anos, para a explosão do Pedral no apagar das luzes do governo Bolsonaro.
“Dizem que a obra vai beneficiar todo mundo, vai gerar emprego… emprego pra quem? Vai impactar o rio, o nosso modo tradicional de vida, não vai dar pra pescar como sempre fizemos. Eles querem deixar só as mazelas sociais para nós?”, afirma à Pública o presidente da Associação das Comunidades Ribeirinhas do Pedral do Lourenço (Acrevita), Ronaldo Macena.
“Esse projeto foi feito pra beneficiar o agronegócio, a mineração, que vão lucrando e deixando os povos tradicionais para trás. Sabe qual é a nossa preocupação? Que, daqui um tempo, a gente não esteja mais aqui e todo esse trecho vire um monte de plantação de soja, de milho, beneficiando só os grandes – igual ao que aconteceu na construção da usina de Tucuruí”, diz Macena, morador da Vila Tauiry – um dos locais futuramente mais impactados pela obra, dada sua proximidade com a cidade de Itupiranga.
Segundo o MPF, existem “erros grosseiros” nos estudos aprovados da hidrovia, feitos pela empresa DTA Engenharia – vencedora da licitação do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), responsável pela obra. A empresa cuida dos estudos ambientais do projeto, além da engenharia e da própria explosão do Pedral do Lourenço.
“Para se ter ideia, os estudos chegaram ao ponto de identificar espécies que não vivem no rio, além de confundir outras – é como se chamassem de traíras ou sardinhas o que na verdade são pirarucus, tucunarés”, afirma à Pública o procurador do MPF no Pará Igor Goettenhauer, que atua no caso.
Documentos consultados pela Pública mostram que a atual gestão do Ibama admite que há “pendências” nos estudos, mas relata que essas lacunas foram avaliadas “como não impeditivas para a concessão da licença”, que “não autoriza o empreendedor a realizar nenhuma obra ou intervenção” no Pedral.
“Estamos no aguardo dos estudos ambientais já complementados, que são de responsabilidade do Dnit como empreendedor da obra. Recebendo isso, o nosso corpo técnico terá a liberdade necessária para analisar o material e a viabilidade da obra, pedir eventuais complementações e ajustes”, diz à Pública o atual presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho.
Ele disse também que está em contato com o Dnit – que, segundo ele, pretende entregar o Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto Ambiental da obra “até o fim do ano”. “Caberá ao nosso corpo técnico analisar a obra, sem pressão, e meu papel é avaliar o trabalho dos nossos analistas antes de emitir qualquer licença”, disse o presidente do Ibama.
À Pública, a DTA Engenharia afirma que “não há erros grosseiros, há sim complementações solicitadas pelo Ibama ao DNIT”, vistas pela empresa como “normais nesse tipo de projeto”. A DTA refuta também as críticas, afirmando que “não ignorou de forma alguma” os pescadores, alegando que “contemplou a presença dessas comunidades ribeirinhas” nos estudos para a obra.
Já o Dnit, órgão do governo responsável pela obra, não respondeu à Pública até o fechamento desta reportagem. Caso se manifeste, a reportagem será atualizada.
“Parece até que as pedras são mais importantes que as famílias do ‘Lourenção’”
No dia a dia, o Pedral do Lourenço assegura o fornecimento de pescados como a mandi-moela, o peixe barbado e o tucunaré, entre muitos outros, não apenas para mercados no sudeste do Pará, como para consumidores do Maranhão, Piauí e outros pontos no Centro-Oeste, como Brasília (DF). Durante a cheia, pescadores usam o método da “caceia”, espalhando suas redes de modo que elas sigam o curso do rio Tocantins ao longo do dia, pegando centenas de quilos de peixe ao fim dos trabalhos.
Já durante a seca, a pesca ocorre em meio às rochas do “Lourenção”, nas corredeiras formadas a partir da queda da vazão do rio, onde ribeirinhos jogam suas tarrafas, anzóis e redes, “sempre respeitando o tempo de crescimento dos peixes”, de acordo com relato da associação das comunidades ribeirinhas do Pedral à reportagem.
“Tem vezes que, na lua nova, cada barquinho nosso volta do rio com 200 kg de peixe. É uma bênção! Mas como fica isso com um monte de barco grande passando, criando ‘banzeiro’ [ondas mais altas, agitadas], jogando sujeira no [rio] Tocantins?”, afirma Maria Eunice Alves da Silva, uma das lideranças ribeirinhas no Pedral.
“Já levei gente que coletou amostras de aves, de peixes e até tirou lodo das pedras, tudo para análise, mas não teve um movimento deles para perguntar nossa opinião”, diz o pescador Clemilton Moura Coqueiro. “Parece até que as pedras são mais importantes que as famílias do ‘Lourenção’ para eles”, afirma ainda à Pública.
“Fiz minha vida aqui, mal sei ler e escrever, tudo que sei foi ele [o rio] que me ensinou. Aqui o pessoal é humilde, mas ninguém sabe o que é a pobreza, porque o rio sempre dá de comer… se a gente tiver de sair [por conta das obras] pra morar na cidade, não sei se sobrevivo”, afirma Genivan Oliveira Machado, outro dos pescadores da região ouvidos pela reportagem.
Para Maria Eunice, a construção da hidrovia causa temores que vão muito além do ganha-pão familiar e da proteção da Amazônia.
“Esse pessoal da hidrovia está pensando em nós? Porque ninguém veio aqui ouvir a gente. Deus me livre ter de morar na cidade, porque aqui nós criamos nossa família em paz… Se vivesse na cidade, não sei se teria todos os meus filhos vivos, comigo”, afirma à Pública. Seu temor não se dá à toa.
Garimpos dominam o entorno do futuro canteiro de obras, e os rios próximos – entre eles, o Tocantins – já têm apresentado altos índices de metais pesados, na água e nos peixes, como consequência da atividade garimpeira. Para além, há um intenso contrabando de minérios pelas esburacadas rodovias do sudeste paraense, região historicamente violenta para ativistas ambientais e defensores dos direitos humanos.
“Se houver uma hidrovia deste porte, ficará mais fácil para o escoamento da produção do garimpo ilegal, fortalecendo organizações criminosas e até mesmo aumentando a violência”, diz o procurador Igor Goettenhauer, do MPF.
“Seria irresponsabilidade dar continuidade às atividades”, diz o MPF
Desde 2018, analistas do Ibama enxergam problemas nos estudos da DTA Engenharia e do Dnit, responsáveis pela obra. A autarquia emitiu quatro pareceres, um a cada ano entre 2019 e 2022, elencando problemas e falta de informações importantes sobre os impactos da hidrovia.
Outro dos documentos do Ibama obtidos pela Pública, de 6 de fevereiro de 2023, aponta 13 itens atendidos parcialmente ou não atendidos pelos estudos já aprovados pela autarquia. Segundo o material, faltam informações como a lista completa das espécies ameaçadas no trecho das obras; medidas para amenizar os impactos da detonação do Pedral nas espécies da área; e programas de monitoramento da qualidade das águas do rio.
Para pedir a anulação da licença prévia, o MPF argumenta que existem “erros grosseiros de classificação e a insuficiência ou ausência de coleta de várias espécies presentes na área afetada”.
“Diante da evidência de tantos fatos relevantes quanto à fauna da área e a magnitude dos impactos ambientais causados pelo empreendimento, seria irresponsabilidade dar continuidade às atividades do empreendimento” tal como licenciado, diz o MPF.
“Desde a primeira manifestação do Ibama sobre o estudo ambiental, o corpo técnico do órgão aponta deficiências nesse material. Nos chama atenção que, desde o início, o esforço do Dnit tem sido refutar as irregularidades identificadas, ao invés de sanar os problemas”, afirma o procurador Igor Goettenhauer.
O MPF recomendou ao Ibama a realização da consulta prévia, livre e informada junto às comunidades, além de pedir a anulação da licença concedida durante o governo Bolsonaro. Mas a autarquia tem negado o pedido.
Em resposta ao Ministério Público, o Ibama do governo Lula alega que não há prejuízos na concessão da licença tal como se deu.
Em ofício enviado ao MPF no último dia 23 de maio, a autarquia alega que tais consultas “não são aplicáveis às comunidades tradicionais, tais como populações ribeirinhas”, segundo sua “interpretação” da convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – da qual o Brasil é signatário.
Ainda em sua defesa, o Ibama relata que já foram realizadas cinco audiências públicas sobre a hidrovia no sudeste do Pará, entre os dias 1º e 5 de julho de 2019.
“No âmbito do licenciamento das obras de Dragagem e Derrocamento da Via Navegável do Rio Tocantins [hidrovia], o rito processual de consulta pública aos atingidos foi cumprido com a realização de audiências públicas na área de influência do empreendimento e foram consideradas válidas pelo Ibama”, segundo ofício obtido pela Pública.
No mesmo ofício, o Ibama informa que o licenciamento prosseguirá “somente a partir do requerimento da licença de instalação, acompanhada da proposta de Plano de Gestão Ambiental, com a descrição detalhada dos programas ambientais a serem desenvolvidos para mitigar e compensar os impactos”.
A postura do órgão indignou ribeirinhos. A associação das comunidades do Pedral repudiou o Ibama no último dia 7 de agosto, afirmando que “o Estudo de Impacto Ambiental desse empreendimento é muito falho, porque nós não fomos consultados e nem caracterizados com detalhes”.
“A sensação que fica é que, para os elaboradores do projeto, nós não existimos. Se não existimos, como vão medir os impactos dessa obra em nossas comunidades, nossas vidas sociais, nossos anciões, nossas crianças, jovens, mulheres e gerações futuras?”, afirmam os ribeirinhos por meio de nota.
À Pública, o presidente do Ibama disse que “audiências públicas com as populações afetadas sempre enriquecem o licenciamento ambiental, mas, legalmente, não decidem os empreendimentos”.
“Sabemos que uma hidrovia é ambientalmente mais sustentável que uma rodovia, mas não é por isso que toda hidrovia é viável. Por isso, aguardamos o recebimento dos estudos atualizados, e a partir daí vamos decidir pela concessão ou não da Licença de Instalação [da hidrovia]”, afirmou Rodrigo Agostinho.