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“Conexões reais só são possíveis na vida real”, disse uma amiga há alguns dias, em meio a uma conversa de bar. Ela defendia que deveríamos abandonar de vez a internet, que, nesse ambiente mediado por robôs, nos tornamos apenas mais individualistas, solitários, doentes. Não há futuro possível na internet, ela parecia dizer. Nem felicidade.
Eu não sei direito por que a fala me deixou tão transtornada. Talvez porque ela tenha dito, para arrematar, “eu leio a sua newsletter”, como se estivesse dizendo: “eu sei que você sabe que a internet é uma grande porcaria”. E, de fato, eu tenho criticado e reclamado muito da tecnologia aqui nessa coluna.
Só que a internet não é uma grande porcaria. É uma das coisas mais bonitas já inventadas pela humanidade, uma biblioteca de todas as coisas humanas – presentes, passadas e que ainda vamos inventar. Todo o nosso conhecimento e criatividade. É o lugar de troca em essência, de coleção e construção da memória coletiva e da memória individual, da costura da história que vamos contar para nossos descendentes. É onde eu vivo, onde todos vivemos e amamos e aprendemos a amar e compartilhar pedaços das nossas pequenas e insignificantes vidas.
Eu e minhas amigas tínhamos 19 anos quando fomos morar em Londres, e pela primeira vez usávamos a rede para enviar e trazer notícias para nossas mães. Não existia Wi-Fi ainda; só internet a cabo, discada. Íamos a uma biblioteca pública pegar fila para acessar um daqueles grandes computadores, onde enviávamos e recebíamos emails contando o que estávamos vendo ali do outro lado do Atlântico. Minha mãe, criada no interior da Bahia na era dos telegramas, escrevia sempre de maneira críptica: “Tudo bem aqui. Seu pai pegou resfriado. Mande notícias”, ou coisa parecida.
Mas a possibilidade de dialogar com qualquer ser humano da Terra através daquela ferramenta “mágica” chamada email (e de graça) era tão fascinante que eu me lembro de ter conhecido um suíço uma vez e imediatamente ter me apaixonado por ele ao longo dos primeiros emails. Não era ele, claro, era o encanto pela ferramenta em si, pelos muros que eram quebrados assim, do nada, enquanto eu ainda buscava entender o que é ser uma mulher adulta. Antes da virada do milênio – faz tanto tempo! –, a internet era uma promessa que nos trazia conexões, alegria e descobertas.
O professor Lowell Brower, de Harvard – do qual eu já falei aqui –, nos passou certa vez um exercício para seu curso de folclore da internet, que repasso a você, leitor. Ele pedia aos alunos que descrevessem a primeira memória que tinham da internet. A minha resposta, que eu tentei descrever como pude para meus colegas americanos, foi o vídeo do Tapa na Pantera, no qual a atriz Maria Alice Vergueiro descrevia como era fumar maconha – a erva dava um “tapa na pantera”, uma expressão dos anos 1960, como se o animal estivesse dormindo dentro dela e de repente despertasse.
Nos anos seguintes, rimos daquela entrevistada que repetia o som que o fone trazia ao seu ouvido, presa no círculo do “sanduíche-iche-iche”. Os gatos e cachorros começaram a cantar online, e uma multidão de artistas anônimos decidiu fazer música com esse som, e hoje em dia me pego cantando junto com um gato americano, um cantor sul-africano e um percussionista do Leste Europeu. Alguém ensinou um passarinho chamado cacatua a cantar Cookie cookie e hoje ele aparece na minha casa sempre que vamos celebrar algo, porque ele é a melhor expressão da alegria que nos chega, ainda, pela internet.
Houve tanta coisa desde então. Na década seguinte aprendemos a criar, a nos articular e a desafiar os poderosos, e saímos às ruas com a esperança de que a democracia iria também mudar e dar espaço para aquela pluralidade de vozes que agora podiam expressar-se livremente na rede mundial. Cantávamos hinos-memes que diziam coisas como “somos os 99%” ou “não é por 20 centavos, é por direitos”, “não é vandalismo, é revolta” e “a revolução não será televisionada”. E, claro, “vem pra rua”.
Fazíamos aulas abertas no Anhangabaú, onde se discutia política, e forçamos a abertura de vias e de ciclovias, para que as ruas também representassem aquela conversa – conexão – que na internet estava acontecendo. Fizemos escrachos e flash mobs, algumas pessoas foram acusadas de terem “ligação com o Freixo” e acamparam em frente à casa de uma raposa velha da política fluminense, Sérgio Cabral, e acabaram com a sua carreira política. Criticamos a Copa, criticamos a Olimpíada.
E que um bando de senhores tenha se aproveitado disso para se livrar da primeira e única mulher a ser presidente do nosso país, vejam, não é culpa da internet.
Assim como não é culpa da internet que um grupo de corporações americanas tenha aproveitado o clima de oba-oba que imperava no começo dos anos 2010 para inventar um modelo de negócios que extrai nossos dados como se fosse nosso sangue, para vendê-los para que marcas do mundo se infiltrem na nossa mente e vendam mais, sempre mais, de xampu a um candidato a presidente.
Sim, a internet se plataformizou, fugiu do sonho daqueles que a construíram de ser um espaço aberto e democrático, e se tornou o pior pesadelo capitalista.
Mas desistir da internet, desistir desse emaranhado de coisas boas e ruins ao mesmo tempo parece, para mim, mais do que radical, me parece triste.
Porque desistir da internet é dizer que não há conserto, que o capitalismo devorou toda a nossa beleza e não vamos conseguir reavê-la. É desistir da democracia – pois sabemos que eles não vão desistir e vão ocupar cada milímetro de espaço que ficar vazio com suas teorias fascistas, militaristas, racistas, negacionistas e machistas.
É desistir da humanidade, enfim.
E eu me recuso a isso.
A humanidade produziu guerras incessantemente, mas também produziu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e os direitos das mulheres e a campanha pela libertação de Nelson Mandela. E a internet. E sabemos que tudo tem remédio, que já superamos outros momentos de monopólio com a vontade dos homens e mulheres que se articulam e estudam e abrem processos e denúncias e seguem em frente porque querem tornar o mundo melhor.
Agora, quando o Google e a Amazon enfrentam processos nos EUA pelas suas práticas monopolistas, é a primeira vez em muito tempo que eu tenho otimismo (o passarinho que canta “Cookie cookie” também ajuda).
Veja, a Amazon está sendo processada pelo governo federal e por 17 estados em uma ação inédita, e tudo começou porque uma jovem advogada, Lina Khan, usou seu tempo na faculdade para investigar as práticas ilegais que permitiram que a Amazon boicotasse os rivais e assumisse mais de 90% do mercado das vendas online. Hoje, ela é presidente da Comissão Federal de Comércio americano, que está à frente da investigação.
Agora, justo agora, não é hora de desistir. É hora de lutar para que esse espaço coletivo, construído não para dar lucro a ninguém, mas para beneficiar a humanidade como um todo, chegue à maturidade resgatando um pouco pelo menos aquele sonho inicial, de mais e melhores conexões entre seres humanos.