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Nas primeiras horas da manhã de 31 de agosto de 2021, policiais rodoviários federais se aproximaram silenciosamente, de fuzis em punho e com policiais militares de Minas Gerais na retaguarda, de uma chácara na zona rural de Varginha, a 320 km de Belo Horizonte (MG). Ali, supostamente tramavam crimes integrantes de uma quadrilha especializada no assalto a agências bancárias na tática do “Novo Cangaço”, que inclui tomar reféns, dinamitar cofres e metralhar carros e policiais.
A Polícia Rodoviária Federal (PRF) invadiu o sítio. Dezoito suspeitos — todos os que estavam hospedados no local — foram mortos a tiros; três receberam seis disparos cada. Minutos depois, em um novo cerco em uma segunda chácara no mesmo município, mais oito suspeitos foram mortos. Nenhum dos suspeitos que estavam nos dois sítios sobreviveu. E nenhum dos 28 policiais rodoviários federais e 22 homens do Bope da PM mineira envolvidos na operação ficou ferido.
Na época comandada pelo bolsonarista Silvinei Vasques, atualmente preso por ordem do Superior Tribunal Federal (STF) em inquérito que investiga interferência nas eleições presidenciais de 2022, a PRF afirmou, em 2021, em nota à imprensa, que houve “um confronto” durante uma operação que visava “neutralizar possível ação criminosa”. A PRF apresentou um vasto arsenal apreendido com os suspeitos, incluindo uma metralhadora capaz de derrubar aeronaves.
A Polícia Federal (PF) abriu um inquérito para investigar a matança. Dois anos depois, conforme a Agência Pública divulgou com exclusividade no último dia 6, a perícia criminal e os depoimentos coletados pela PF começaram a contar outra história. Os locais das mortes nas duas chácaras foram “adulterados”, segundo a perícia. Corpos foram arrastados e retirados do local em que tombaram sob o argumento de que necessitavam de socorro, as armas que os suspeitos estariam usando foram arrecadadas antes da chegada da perícia, gavetas e colchões foram revirados, roupas foram jogadas ao chão. As interferências no “cenário caótico” causaram “prejuízos à interpretação dos fatos”, de acordo com os peritos.
Citando depoimentos inéditos, a Pública trouxe informações perturbadoras acerca da versão oficial de que o caseiro da primeira chácara, Adriano Garcia, integraria a quadrilha. Familiares, vizinhos e empregadores do caseiro indicam o contrário: Garcia tinha histórico de alcoolismo, “não parecia ser normal intelectualmente” e “não era uma pessoa violenta ou de má índole”. Chegou a viver por um tempo nas ruas de Varginha. Fora preso antes por “furtos de pequena monta”, quando recebia apoio até dos policiais, solidários à sua situação. Eles lhe davam comida e o ajudavam “com algum dinheiro para o cigarro, bebida”.
Ou seja, Garcia tinha um perfil diametralmente oposto ao de um perigoso assaltante do “Novo Cangaço”, que requer conhecimentos sobre explosivos e armas de grosso calibre e um treinamento quase militar. Além disso, era muito conhecido em Varginha. Haveria de ser aceito em uma quadrilha que pretendia realizar assaltos cinematográficos no sul de Minas? Não parece fazer sentido. Em 2021, a Polícia Civil chegou a divulgar que Garcia seria um “olheiro” da quadrilha. Mas ele resistiu à prisão ou fez disparos contra os policiais? Um agente da PRF ouvido no inquérito disse que “todos” que estavam nas chácaras atiraram contra os policiais.
O inquérito da PF ainda não tem data para terminar, mas espera-se que o relatório final enfrente as suspeitas sobre o suposto “confronto” e especialmente sobre a morte de Adriano Garcia. Ele foi morto com três tiros. A perícia constatou que pelo menos um dos disparos partiu de um fuzil utilizado por um policial rodoviário federal.
Ao contrário de vários veículos de Minas Gerais, que citaram e, em alguns casos, até transcreveram a reportagem, as revelações da Pública passaram em branco nos meios de comunicação do eixo Rio-São Paulo. Nesses veículos permanece impressa a versão divulgada pela PRF em agosto de 2021. É um assunto indigesto, que coloca em xeque uma função do Estado inegavelmente justa e necessária: combater o crime. Ninguém há de ser contra. No império do crime não há democracia nem liberdades individuais. O crime destrói a paz social, corrompe pessoas e dilapida instituições.
Mas em nome do combate ao crime podem ser cometidas verdadeiras atrocidades. É sempre necessário repetir essa obviedade e dói saber que ela nunca perdeu a atualidade. O problema infernal é que o Estado, sob justificativas das mais nobres, tende a cometer perversidades que o colocam no mesmo patamar dos perpetradores que ele jura combater.
Vejamos a atual catástrofe no Oriente Médio (e aqui não é uma comparação, é só uma alusão). Como sabemos, o grupo terrorista Hamas desencadeou uma sórdida operação de invasão do território de Israel com assassinatos aleatórios e tomada de reféns. Matou friamente jovens que apenas se divertiam numa festa. A médica israelense Amit Mann, de 22 anos, foi assassinada pelos terroristas enquanto atendia vítimas numa clínica no kibutz que fora atacado pelo Hamas, segundo O Globo. Foguetes disparados pelo Hamas mataram vários inocentes civis israelenses.
A resposta a esses atos repugnantes, entendida como justa, rapidamente se complicou quando o governo de Israel ordenou bombardeios sobre áreas densamente povoadas em Gaza. Em seguida, determinou uma evacuação da cidade em direção ao sul. Era impossível não antever que uma vasta porção da população civil de Gaza sofreria consequências devastadoras.
Entre as centenas de mortos pelos bombardeios promovidos pelos militares de Israel, a mídia destacou a nota divulgada pela ONG Federação da Cruz Vermelha e das Sociedades do Crescente Vermelho (IFRC) sobre quatro membros da organização que morreram quando sua ambulância foi atingida por uma bomba. Eram, segundo a ONG, “paramédicos que prestavam ajuda a necessitados”. Para embaralhar os dados da realidade, um quinto paramédico da organização morreu no mesmo dia, também atingido enquanto trafegava numa ambulância, só que em Israel.
A lógica brutal da guerra normaliza tais mortes como danos colaterais. Nessas horas, organizações da sociedade civil, políticos, advogados, jornalistas, comentaristas, pesquisadores da academia, cidadãos comuns — enfim, quem se importa de alguma forma com direitos humanos — levantam a mão para pedir prudência e contenção. No caso do jornalismo, uma de suas funções fundamentais, que está no seu DNA, é fiscalizar os atos do Estado e mapear as suas consequências. E também denunciar o terrorismo de grupos que insistem em impor suas posições políticas por meio da violência contra inocentes, como o Hamas. É lembrar que não, nem tudo é permitido numa guerra aberta, como a que ocorre em Gaza, ou numa guerra surda, como a travada nas áreas urbanas do Brasil.
Mas o questionamento não significa endosso, apoio ou mesmo simpatia a qualquer parte do conflito. Um erro não anula o outro. O caseiro de Varginha e os paramédicos de Gaza e de Israel não são danos colaterais, são perdas diretas e uma advertência sobre os limites de uma resposta estatal a crimes, por mais terríveis e abjetos que sejam.