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O “monstro” renasceu na Abin sem nenhum controle do Congresso

Os contratos do poder público com a Cognyte estão escondidos sob o manto do segredo e fora do escrutínio da cidadania

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25 de outubro de 2023
06:00

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Em 1967, três anos depois do golpe militar que destituiu João Goulart, o jornalista Edmundo Moniz escreveu no jornal Correio da Manhã um artigo intitulado “A criação do monstro”, no qual alertou sobre o Serviço Nacional de Informações (SNI): “A advertência que faço relativa ao Serviço Nacional de Informações tem como principal finalidade impedir o crescimento de um órgão que tentará destruir o pouco de democracia que sobrou no país após a quarteada catastrófica de abril de 1964”.

“É um filhote de monstro. Para quê este órgão especializado de espionagem e de repressão? Contra quem ele atua? […] A existência do SNI, como superpoder, é o aviltamento do Congresso, da Justiça, das Forças Armadas, da administração pública, de toda a Nação.” 

O SNI foi criado logo depois do golpe pelas mãos de um general de divisão do Exército conhecido por operar nas sombras, Golbery do Couto e Silva (1911-1987), um dos principais conspiradores do golpe de 1964, guru dos militares e chefe da Casa Civil nos governos Geisel (1974-1979) e Figueiredo (1979-1985). O projeto de lei do novo órgão dizia que ele teria a finalidade de “superintender e coordenar, em todo o território nacional, as atividades de informação e contra-informação, em particular às que interessam à Segurança Nacional”.

Ao longo dos seus 26 anos de vida, até ser extinto pelo governo Collor em 1990, o SNI se espalhou por todos os espaços da administração pública federal, formando uma máquina de espionagem, perseguição, informação e também de desinformação – há inúmeros relatórios que hoje seriam chamados de mais pura fake news. Um trabalho concluído em 2019 pelos pesquisadores Vivien Ishaq e Pablo Franco, do Arquivo Nacional em Brasília, identificou que o SNI criou braços em 249 ministérios, autarquias, fundações e empresas estatais. Esse polvo fichou pelo menos 308 mil cidadãos brasileiros, muitos dos quais foram presos, torturados e assassinados. O SNI subsidiava diversas unidades da mais brutal repressão criada pela ditadura, como os DOI-Codis e os serviços de inteligência do Exército, Marinha e Aeronáutica.

Só no início dos anos 1980 é que Golbery reconheceu, segundo relatos publicados pela imprensa na época, que havia criado um “monstro”. O militar demorou 14 anos para chegar à mesma conclusão do jornalista do Correio da Manhã, e apenas quando a ditadura já estava no final. Como o jornalista Lucas Figueiredo relatou em seu livro Ministério do silêncio (2006), que cita o artigo de Moniz, o próprio Golbery em determinado momento “passou a ser constantemente vigiado por agentes” do SNI, tanto no seu sítio em Luziânia (GO) quanto no seu escritório no Banco Cidade. O típico caso da criatura que se volta contra o seu criador. Aviso não faltou.

No final dos anos 1990, o Brasil redemocratizado no governo FHC criou um substituto para o SNI, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Ano após ano, os dirigentes da Abin repetiram o mantra de que não faziam análise de inteligência sobre pessoas, mas sobre assuntos ou cenários. Dito e repetido, a fim de afastar o fantasma do SNI, ainda vivo na memória dos brasileiros não saudosos da ditadura. Ao longo dos anos, porém, tais afirmações foram colocadas em dúvida várias vezes. Em 2017, por exemplo, escrevi que a Abin havia espionado indígenas, como Maria Leusa e Valdenir Munduruku, e organizações não governamentais contrárias à construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. 

Até que vieram os governos de Michel Temer (2016-2018) e de Jair Bolsonaro (2019-2022) com militares, em seus altos escalões, ideologicamente motivados pelos tempos da Guerra Fria, como o general Sérgio Etchegoyen. Foi sob o seu comando no Gabinete de Segurança Institucional (GSI) que a Abin fechou o primeiro contrato com a empresa israelense Cognyte, responsável por um software chamado “First Mile”, que tem a capacidade de monitorar os movimentos de uma pessoa a partir do seu telefone celular.

Conforme a Agência Pública explicou nesta sexta-feira, o contrato de 2017, renovado em 2018, foi o primeiro passo de uma ampla presença da Cognyte no serviço público brasileiro. Hoje a empresa tem contratos, num total estimado em R$ 57 milhões, com nove estados da Federação, os Comandos do Exército e da Aeronáutica e a Polícia Rodoviária Federal (PRF). 

Na sexta-feira (20), o país acordou com as notícias sobre a Operação Última Milha, desencadeada pela Polícia Federal (PF) com autorização do Supremo Tribunal Federal (STF), a fim de investigar o uso do “First Mile” pela Abin. A suspeita é que tenha monitorado centenas de brasileiros, como políticos, jornalistas e críticos do governo.

Conforme o jornal O Globo havia noticiado em março, o “First Mile” contratado em 2017 continuou sendo usado pela gestão da Abin no governo Bolsonaro, então dirigida pelo delegado da PF Alexandre Ramagem. Ele é um bolsonarista assumido, filiou-se ao mesmo partido do ex-presidente, o PL, e se elegeu deputado federal pelo Rio de Janeiro. Em agosto, a Pública revelou que também o Exército contratou, por R$ 4 milhões, a mesma empresa israelense. Mas os militares se negaram, até hoje, a fornecer à Pública qualquer informação sobre o uso do programa. 

Todos os contratos do poder público com a Cognyte estão escondidos sob o manto do segredo e reiteradamente mantidos fora do escrutínio da cidadania. Conceitos vagos como “segurança nacional” são usados para rejeitar ou dificultar pedidos que pretendem cumprir a Lei de Acesso à Informação (LAI). A exemplo do que fez o setor de inteligência do Ministério da Justiça durante o governo Bolsonaro, cujos segredos estão sendo mantidos e referendados pelo atual ministro, Flávio Dino, conforme já explicamos nesta newsletter em julho.

A dita “comunidade de informação” foi estabelecendo, ao longo do tempo, regras próprias de secretismo, como o estabelecimento de um sigilo eterno sobre documentos que não recebem nenhuma classificação prevista na LAI. Sem classificação não há prazo para divulgação. Os órgãos de “inteligência” não reconhecem cidadãos comuns como atores legítimos no processo de transparência da coisa pública. Documentos da Abin sobre a pandemia da Covid-19 só foram obtidos pela Pública a partir de pedidos feitos à Casa Civil do governo Lula, que mantinha cópias dos relatórios.

Conforme demonstrou o fatídico exemplo do SNI, órgãos voltados para produzir informação de inteligência demandam um rigoroso acompanhamento, externo e independente. Ainda mais considerando os enormes avanços da tecnologia no campo da vigilância. Uma máquina fora do controle da cidadania só interessa a quem pretende perseguir desafetos e adversários políticos. Hoje a legislação diz que esse acompanhamento externo pode ser feito principalmente por uma comissão do Congresso exclusiva para o tema, a Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI).

Mas onde estava a CCAI em todos esses anos nos quais a Abin passou a utilizar um sofisticado programa israelense? Ao longo de todo o ano de 2017, a CCAI fez apenas duas reuniões, uma de instalação e outra para tratar de emendas ao Orçamento da União. Ou seja, agiu por interesse da “comunidade de informação” e dos próprios parlamentares.

Em 2018, a CCAI fez apenas uma reunião também para “deliberar emendas a serem apresentadas” ao Orçamento. A reunião foi presidida por um apoiador de Bolsonaro, o senador Fernando Collor. Em 2019, novamente apenas uma reunião, apenas para apreciar emendas ao Orçamento. Quem presidiu essa reunião foi ninguém menos que o filho do presidente da República, Eduardo Bolsonaro (PL-SP).

Ao longo do ano de 2020, a CCAI marcou apenas uma reunião, que simplesmente foi cancelada. Em 2021, promoveu uma sessão com o então chefe do GSI, o general Augusto Heleno, mas o encontro foi secreto e as notas taquigráficas não foram divulgadas até hoje.

Em 2021, a CCAI promoveu mais três reuniões, porém todas remotas ou semipresenciais e com o objetivo de deliberar sobre emendas ao Orçamento de 2022 ou analisar aspectos de um projeto de Defesa Nacional.

Em 2022, a CCAI fez apenas uma reunião remota, sob a presidência de um apoiador de Bolsonaro à reeleição em 2022, o senador Esperidião Amin (PP-SC). Essa reunião, mais uma vez, só debateu as emendas ao Orçamento.

A CCAI foi inoperante no sentido de fiscalizar e coibir o uso de programas como o “First Mile” e, com sua inação, colaborou para o descontrole das atividades de inteligência que só agora, durante um novo governo, começa a vir à tona. O mesmo raciocínio se aplica à Procuradoria Geral da República (PGR) , ao Tribunal de Contas da União (TCU) e às outras áreas de fiscalização e controle dentro e fora do governo que deveriam ter agido de forma antecipada e prudente, procurando compreender o uso do programa “First Mile” em toda a sua extensão. O mesmo cuidado deveria valer para todas as outras ferramentas à disposição da Abin e dos governos estaduais.

O descaso – que representa o aviltamento dos Poderes, como diria o jornalista Edmundo Moniz – certamente não foi à toa. Devemos entendê-lo muito mais como uma adesão ideológica, já que os alvos preferenciais da Abin certamente seriam os críticos do governo Bolsonaro e a “esquerda”, na redução ignorante dos bolsonaristas. Um detalhe que o bolsonarismo não sabe, não entendeu ou não quis entender, a partir da lição de Golbery, é que o “monstro”, uma vez sem controle, também tende a se voltar contra seus próprios idealizadores. Era só uma questão de tempo. Ou talvez já tenha até ocorrido.

Como a Pública revelou em maio passado, a Abin fichou em 2020, durante a pandemia e o governo Bolsonaro, líderes de caminhoneiros segundo o grau de “ameaça”. Entre esses líderes havia pelo menos um apoiador de Bolsonaro, que até se candidatou a deputado estadual pelo partido do ex-presidente, em 2022. Golbery se revira no túmulo.

Em tempo: perseguido pela ditadura, Edmundo Moniz acabou exilado na Argélia e na França em 1968. O Correio da Manhã, do qual fora redator-chefe, a princípio apoiou o golpe, mas logo depois voltou-se contra a ditadura, divulgando denúncias de torturas e prisões ilegais. A dona do jornal, Niomar Sodré Bittencourt, foi presa por quase dois meses e teve seus direitos políticos cassados pela ditadura em 1969. O jornal acabou financeiramente destruído pelos militares e foi arrendado em 1974. O monstro vencera, mas só até 1985.

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