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No começo do mês, o deputado federal Ricardo Salles (PL-SP), ex-ministro de Meio Ambiente do governo Bolsonaro, fez uma postagem compartilhando uma matéria da CNN que dizia que as queimadas no Amazonas no mês de setembro tinham sido as piores desde 1998. Ele grifou de vermelho o “desde 1998” e mandou um comentário no tom zombeteiro que lhe é peculiar nas redes sociais.
“E aí? Culpa do Salles? Do Bolsonaro? Nada como o tempo para mostrar a hipocrisia e a falácia das perseguições que a direita sofreu por parte dos ‘especialistas’ e de certos setores”, escreveu.
Ele se valeu de um dado real – as intensas queimadas de setembro – para alimentar uma onda de narrativas falaciosas, recheadas de desinformação, que se espalhou na extrema direita em relação aos intensos eventos climáticos que atingiram o país nos últimos dois meses.
Um levantamento inédito feito a pedido do Instituto ClimaInfo, e compartilhado com esta coluna, contabilizou cerca de 211 mil menções relacionadas a seca/fogo na Amazônia entre 16 de setembro e 22 de outubro, principalmente em redes como X/Twitter e TikTok.
Os termos acompanhados de referências a Lula ou a Marina Silva somaram 44,2 mil menções. Entre estes, os dez mais citados culpavam os dois pela situação, a maior parte usando o mesmo tom de Salles, de que seria uma hipocrisia criticar Bolsonaro. Aí era um passo para emendar também comentários antiambientalistas, anti-ONGs e teorias da conspiração sobre supostos interesses estrangeiros na floresta.
Com esse teor foram encontradas postagens de 37,7 mil autores únicos, muitos dos quais eram figuras de destaque da direita, como a família do ex-presidente e o ex-ministro da Justiça e atual senador Sergio Moro (União Brasil/PR).
“Imagina se fosse com Bolsonaro?”, escreveu seu filho, o senador Flávio (PL-RJ), ao compartilhar uma reportagem segundo a qual as fumaças das queimadas tinham tornado Manaus um dos piores lugares do mundo para respirar. “Jack do Titanic e o Hulk estariam pulando como uma perereca. Sob Lula, queimadas em outubro aumentaram 148% em relação ao ano passado, no Amazonas. Lula não tem política ambiental, apenas política de sucateamento!”, continuou o senador.
O deputado Eduardo Bolsonaro (PL-RJ) usou apenas alguns segundos de uma fala da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, que apontava a responsabilidade de proprietários de terra nas queimadas no Amazonas, para não só atacar ONGs como para acusar, sem apresentar nenhuma prova, que ela receberia “dinheiro estrangeiro para usar seu cargo contra os interesses dos brasileiros”.
É claro que nenhum deles se deu ao trabalho de contextualizar suas falas, se valendo de um recurso que se tornou muito comum nos últimos anos, com destaque especial durante o período eleitoral de 2022, de fazer recortes muito específicos de dados, sem contar a história inteira.
Os números de fogo nos últimos dois meses na região Norte, em especial no Amazonas, de fato estão entre os mais altos do registro feito desde 1998 pelo Inpe. O mês de setembro deste ano foi o segundo pior para o estado em número de focos ativos. Mas adivinhe qual foi o pior? Setembro do ano passado, quando quem estava no poder era Jair Bolsonaro, o velho novo amigo de Salles.
Desde 2020, a estação seca no Amazonas tem acumulado altos índices de queimadas. Julho de 2020, por exemplo, foi o pior julho dos registros. Assim como agosto de 2021 teve o maior número de focos para o período. E, depois, setembro de 2022. Ou seja, nos quatro anos de Bolsonaro, três deles tiveram algum mês com recorde de fogo no Amazonas. Claro que o ex-ministro da área responsável por cuidar desses indicadores não faria questão de mencionar isso.
Agora neste ano, como que descendo mais um degrau na escadinha (veja a tabela abaixo), outubro também vai fechar com a maior quantidade de focos para o mês (a tabela foi tirada do site do Programa Queimadas, do Inpe. Os dados mensais são do Amazonas, de janeiro de 2019 até 25/10 deste ano).
A situação, como o leitor pode começar a perceber, é muito mais complexa do que apenas um número pinçado de uma tabela e lacrado nas redes sociais é capaz de revelar. Nos últimos anos, o Amazonas vem chamando atenção pelas altas taxas de desmatamento. Após figurar por muito tempo em quarto lugar no ranking de desmatamento da Amazônia, saltou em 2021 e 2022 para a segunda posição.
Houve um avanço da motosserra principalmente na região sul do estado, em cidades como Lábrea e Apuí, e no entorno da BR-319, diante da perspectiva de asfaltamento da rodovia. Agora lembre que fogo, na floresta tropical úmida, só ocorre se houver três condições: um clima mais seco, muita matéria orgânica acumulada no solo e alguém riscando o fósforo.
Entre julho e outubro se configura a estação sem chuvas na Amazônia e é quando as queimadas têm mais chance de ocorrer, mas, sem os dois outros elementos da equação, o cenário tende a não ser catastrófico.
Só que a partir de 2019 o desmatamento em toda a região cresceu demais, em boa parte sob leniência, e até incentivo, do governo Bolsonaro-Salles. As queimadas são realizadas na etapa final desse processo, para acabar de “limpar” o terreno, liberando o solo para a colocação de pasto.
Em agosto do primeiro ano da gestão passada, por exemplo, o número de focos em todo o bioma Amazônia chegou a quase 31 mil, o maior valor desde 2010. No ano passado, passou de 33 mil no mesmo mês. Em setembro de 2022, foram mais de 41 mil para o bioma, também o maior valor desde 2010. O segundo e o terceiro elementos da equação (muita matéria orgânica e alguém com o fósforo aceso) estavam em franca operação. Mas o primeiro, não muito. Não foram anos particularmente super secos. A umidade estava relativamente alta para o período.
Pois bem. Quase todo esse cenário mudou neste ano. Tão logo Lula assumiu a Presidência, Marina Silva retomou as ações de fiscalização e os planos para o combate ao desmatamento, botou o Ibama em campo, e o problema, na Amazônia, despencou. Os alertas acumulados de corte da floresta entre janeiro e setembro deste ano caíram quase à metade, na comparação com o mesmo período do ano passado, segundo dados do sistema Deter, do Inpe. Ou seja, ainda houve derrubada, mas a quantidade de matéria orgânica diminuiu.
Por outro lado, a situação climática se inverteu. Uma combinação brutal entre a ocorrência de um El Niño, fenômeno de aquecimento das águas do oceano Pacífico, que costuma trazer mais seca para a Amazônia, e um superaquecimento das águas do oceano Atlântico trouxe para os rios da região a maior estiagem do registro histórico.
A única coisa que não mudou foi gente botando fogo em áreas recentemente desmatadas para limpar terreno e fazer especulação imobiliária.
A quarta edição desta newsletter, que enviei no fim de abril, tinha como título: “A Amazônia deu muita sorte de não ter tido um El Niño no governo Bolsonaro”. Era uma frase de Érika Berenguer, pesquisadora brasileira afiliada à Universidade de Oxford e uma das maiores especialistas em fogo na Amazônia. “Se tivesse ocorrido um El Niño durante os anos Bolsonaro, com toda a alta de desmatamento que tivemos, era para muito fogo ter entrado dentro da floresta”, disse ela na ocasião.
Já era um alerta, naquele momento, de que, por mais que se combatesse o desmatamento, as condições seriam todas muito propícias para incêndios. Na mesma newsletter, eu lembrei que alguns dos anos em que a floresta mais pegou fogo foram justamente anos de El Niño, porque o fenômeno deixa a vegetação mais seca. Aí, se alguém acende o fósforo, para limpar uma área desmatada, a chance de o fogo se espalhar e causar um incêndio florestal é muito maior.
Só que num mundo afetado pelas mudanças climáticas tudo fica ainda mais complicado. O El Niño deste ano não explica sozinho o que está acontecendo. O aquecimento global agravou o fenômeno, piorando a seca. Ninguém deveria chegar nem perto de um palito de fósforo na região. Mas essa parte da equação, em um estado que defende abertamente o asfaltamento da rodovia, com gente lucrando ao grilar terras no entorno, é bem mais difícil de controlar.