O caso do grupo de documentaristas agredidos no Mato Grosso do Sul que ganhou o noticiário nos últimos dias é a ponta do iceberg de uma série de episódios de violência de fazendeiros contra indígenas Guarani e Kaiowá em Iguatemi (MS), próximo à fronteira com o Paraguai. Na mesma semana em que o fotojornalista canadense Renaud Philippe, a antropóloga e cineasta Ana Carolina Mira Porto e o engenheiro florestal Renato Farac Galata foram vítimas de pistoleiros, um grupo de pelo menos 10 indígenas também foi agredido por jagunços.
O episódio ocorreu após cerca de 30 indígenas tentarem retomar, no último fim de semana, uma área que era tradicionalmente ocupada pelo seu povo. Segundo apurou a Agência Pública, a iniciativa foi rapidamente impedida por pistoleiros ligados a fazendeiros da região. Os indígenas ficaram encurralados por alguns dias, sem conseguir deixar o local, nem ter acesso a água e comida, e acabaram sendo agredidos.
De acordo com o relato de Odair Jaguaretê, que fazia parte do grupo, ao menos quatro pistoleiros fizeram disparos de arma de fogo contra os indígenas, que se dispersaram. Eles ficaram com escoriações nos braços, nas pernas e no rosto, como mostram fotos obtidas pela reportagem. Uma das vítimas era uma mulher grávida e também há relatos de que uma anciã teria sido vítima de estupro pelos pistoleiros. As vítimas só conseguiram deixar o local após a Força Nacional ser acionada, o que fez com que os pistoleiros desmobilizassem o cerco. Três indígenas permanecem desaparecidos.
Casos como esse vêm ocorrendo desde o início da década passada. Os Guarani e Kaiowá, que tradicionalmente habitavam a região, foram expulsos de suas terras no início do século XX e deslocados compulsoriamente para a Reserva Indígena de Sassoró, na cidade de Tacuru (MS). Em 2010, parte dos indígenas originários dos tekohas (aldeias) Pyelito Kue-Mbaraka’y, que habitavam a região, resolveu fazer uma retomada para recuperar seu território tradicional, o que gerou reação imediata dos fazendeiros locais.
Eles ganharam notoriedade nacional em 2012, quando divulgaram uma carta relatando as violências sofridas durante o conflito fundiário com fazendeiros no sul do Mato Grosso do Sul. O manifesto, em que eles afirmam que haveria “morte coletiva” caso o Judiciário mantivesse uma ordem de despejo contra eles, foi interpretado erroneamente como anúncio de suicídio coletivo. Isso gerou comoção e tornou a luta dos Guarani e Kaiowá nacionalmente conhecida, com muitas pessoas adicionando o nome do povo em suas redes sociais.
A repercussão nacional fez com que a Terra Indígena Iguatemipeguá I, reivindicada pelo grupo, fosse delimitada pelo governo de Dilma Rousseff no começo de 2013. Desde então, porém, o processo de demarcação do território de 42 mil hectares não avançou, e uma parte do território permanece ocupada por fazendas.
Cerca de 200 indígenas vivem concentrados em uma área de apenas 90 hectares dentro desse território. Diante dessa situação, de tempos em tempos eles se arriscam, como ocorreu no último fim de semana, a tentar retomar outras áreas no terreno que já foi delimitado como sendo deles. Mas invariavelmente essas tentativas acabam sendo rebatidas com violência por fazendeiros.
Pistoleiros que atacaram documentaristas roubaram até papel higiênico
Ana Carolina Mira Porto e Renaud Phillippe estavam na região nesta semana porque vêm trabalhando há dois anos em um fotodocumentário que busca registrar justamente a luta do povo pela demarcação da terra indígena. Eles participavam da Aty Guasu, assembleia do povo Guarani e Kaiowá que está ocorrendo em Caarapó (MS), quando ouviram a notícia de que havia um novo caso de violência contra indígenas em Iguatemi.
Junto de Renato Farac Galata, eles decidiram se deslocar para a região. Quando chegaram às proximidades do local, acabaram sendo cercados por cerca de 30 homens encapuzados, que os agrediram e os ameaçaram. Philippe teve parte de seu cabelo cortado. Segundo os documentaristas, os pistoleiros roubaram celulares, equipamento fotográfico, documentos, cartões e até mesmo itens como bolachas e papel higiênico que estavam no carro. A denúncia veio a público ainda na quarta-feira, em vídeo divulgado nas redes sociais em que eles relatam o episódio.
“Nunca encarei tanto ódio na minha vida. Imagino o terror que passam os guarani. No dia 22, sentimos na pele e na mente a tortura que eles vivem, e com certeza não foi nem 10%”, disse Mira Porto à Pública. Segundo o relato da antropóloga, seu grupo passou por um posto do Departamento de Operações de Fronteira (DOF) antes de se deparar com os agressores e ouviu do policial responsável que não havia qualquer retomada ou caso de violência na região.
Ela afirma que durante as agressões, uma viatura da Polícia Militar passou pelo local, mas teria ignorado pedido de socorro do grupo. Eles decidiram fazer o boletim de ocorrência em Amambaí, mais de 100 km distante do local, por temer represálias dos agentes locais.
Procurada pela reportagem, a Polícia Militar do estado afirmou que não recebeu, “através do seu canal de contato com a população (190), nenhuma solicitação de apoio de jornalista na região de Iguatemi”. Disse também que uma equipe do DOF “chegou a abordar os profissionais que gravaram um vídeo denunciando agressão, mas não foi informada dos fatos durante tal abordagem” e que no boletim de ocorrência registrado em Amambai não foi relatado “nenhum fato em desfavor tanto do DOF quanto da PM”. A corporação afirmou que o “fato que será devidamente apurado”.
Também contatada, a Secretaria de Justiça e Segurança Pública enviou nota quase idêntica, reiterando que os fatos serão apurados.
Um grupo de entidades que inclui o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a Aty Guasu, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) publicou na tarde de sexta (24) uma nota conjunta cobrando que as agressões sejam investigadas e punidas.
“Cabe ressaltar que, em nenhum momento, os jornalistas adentraram em propriedade privada. A violência toda transcorreu numa via pública. A situação, grave em si mesma, evidencia a violência a que os povos indígenas vêm sendo submetidos no Mato Grosso do Sul e reforça os recorrentes relatos feitos por eles a respeito da conduta da PM”, aponta a nota.
“A impunidade e a naturalização da violência devem ser enfrentadas com determinação, transparência e firmeza por parte de todos os poderes públicos. A apuração dos crimes deve chegar àqueles que incentivam, financiam, promovem e defendem a violência contra os povos indígenas”, pedem as organizações.
O episódio dos últimos dias está longe de ser inédito. Em setembro de 2015, 20 famílias do tekoha Pyelito Kue foram atacadas também após realizarem uma retomada. O relatório “Violência contra os povos indígenas no Brasil – dados de 2015” do Cimi relata o saldo dos ataques: “Dez indígenas ficaram feridos, incluindo uma gestante e um rezador já bem idoso. Segundo a própria Funai, após serem espancados, 26 indígenas, entre eles cinco crianças, foram amarrados, jogados em cima de caminhonetes e abandonados às margens da rodovia MS-295, próximo ao Rio Jogui (Hovy), fora da área retomada e do tekoha Pyellito Kue”. Além disso, uma jovem Guarani e Kaiowá foi vítima de estupro coletivo por 12 pistoleiros na ocasião.
“É uma terra onde a violência não só ronda, mas habita de forma sistemática. A maneira como eles estão hoje, sem a demarcação, em um pequeno espaço de terra, não permite que eles tenham vida. Isso que aconteceu com os jornalistas acontece com eles o tempo todo. Eles têm medo de ir para a cidade acessar o mercado, acessar o ônibus que leva as crianças para a escola. É uma comunidade que vive o tempo todo com medo de sofrer esse tipo de violação”, afirma Matias Rempel, do Cimi.