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Sites pretensamente independentes espalham informação favorável à indústria do tabaco e ganham “bolsas” para isso

Reportagem
16 de janeiro de 2024
10:00

Uma mulher senta-se em uma cadeira e fala diretamente para a câmera com um tom sério e sincero. “Todos podemos ver que as evidências mostram que o vape ajuda os fumantes a parar, que o vape não está criando uma epidemia entre os jovens, que o vape não leva ao fumo, que os sabores são básicos e que a nicotina não é ruim.”

Seu nome é Jessica Harding, e ela é diretora de engajamento externo na Knowledge-Action-Change, uma organização que recebeu fundos da Fundação para um Mundo sem Fumo, Inc., uma ONG americana que recebeu mais de US$400 milhões da Philip Morris International nos últimos sete anos, segundo revelou a investigação transnacional Redes de Nicotina.

O vídeo, postado em abril no YouTube, faz parte de uma série de minidocs chamada #Safer, parcialmente financiada pelo Tobacco Harm Reduction Scholarship Programme, da Kowledge Action Change, e produzida por uma empresa do colombiano Francisco Javier Ordóñez, um representante de usuários de vape que tinha uma empresa do ramo e recebeu bolsas da indústria do tabaco. 

Dinheiro da Knowledge-Action-Change e da International Network of Nicotine Consumer Organisations também chegou a publicações pró-vape na América Latina que se autodenominam “imprensa independente” e “jornalismo comprometido com a verdade”.

O site Vaping Today, co-administrado pela empresa de design web de Ordóñez, recebeu dinheiro da International Network of Nicotine Consumer Organisations. Sua publicação em português recebeu financiamento da Knowledge-Action-Change. O botão de doação do Vaping Today direciona para um site do PayPal da Kramber Designs, empresa de Ordóñez.

Por que isso importa?

  • Com financiamento indireto da indústria do tabaco, sites que se dizem independentes acusam a imprensa de espalhar “desinformação” sobre vapes
  • Um dos principais responsáveis pelo site Vaping Today – que também publica em Português – é o brasileiro José Cláudio Teixeira, que recebeu três bolsas da Knowledge-Action-Change

Esta história é parte do especial Redes de Nicotina (Nicotine Networks), uma colaboração internacional que investiga as táticas da indústria do tabaco para promover uma nova geração de produtos de nicotina além das fronteiras. Redes de Nicotina é uma investigação colaborativa da Agência Pública e cinco veículos das Américas: El Clip, The Examination (EUA), Salud con Lupa (Peru), ChequeaBolivia e Colombia Check.

Empresa acusa mídia tradicional de “desinformação”

O Vaping Today promete aos seus leitores combater a “carga sistêmica de desinformação e informação incorreta na mídia tradicional” sobre produtos de nicotina, que descreve como “o verdadeiro perigo para a saúde pública”. 

Uma análise de histórias publicadas no site feita pela The Examination descobriu que o conteúdo rotineiramente amplifica pesquisas e pontos de vista que retratam cigarros eletrônicos e outros produtos de nicotina de maneira positiva, ao mesmo tempo em que minimiza informações mais críticas.

Por exemplo, a análise constatou que cerca de 10% de todas as postagens de junho de 2020 a julho de 2023 mencionam que o vape é 95% menos prejudicial do que fumar – uma estimativa citada em um artigo acadêmico na Inglaterra que a indústria dos DEFs frequentemente repete para apoiar suas posições. 

Porém, a comunidade de saúde pública criticou amplamente essa estimativa. Três dos autores do artigo, anos após um editorial crítico no Lancet, disseram que o cálculo poderia ser “simplista e interpretado erroneamente”.

A Examination analisou 933 histórias publicadas pelo Vaping Today de 26 de junho de 2020 a 26 de julho de 2023. A análise centrou-se em artigos que mencionavam a expressão “95%” em sete variações diferentes. Cada uma dessas correspondências foi verificada manualmente para confirmar que 91 artigos, ou cerca de 10% do total publicado no período, incluíam a afirmação de que os cigarros eletrônicos são 95% menos prejudiciais ou mais seguros do que os cigarros convencionais.

Uma matéria do Vaping Today no verão passado trazia uma grande manchete informando aos leitores que estudos haviam confirmado que produtos de tabaco aquecido são menos tóxicos do que cigarros.

Porém, três dos quatro pesquisadores do estudo estavam afiliados ao Center of Excellence for the Acceleration of Harm Reduction, um grupo de pesquisa financiado pela Foundation for a Smoke-Free World. O quarto pesquisador co-fundou um grupo pró-vape mexicano. 

Essas conexões não foram divulgadas.

Um brasileiro por trás do Vaping Today 

Além de Ordóñez, a outra figura-chave por trás do Vaping Today é José Claudio Teixeira, coordenador de outro grupo pró-vape chamado THR Brasil (Tobacco Harm Reduction Brasil). Uma versão arquivada do site do grupo dizia que ele era apoiado por uma bolsa da Knowledge-Action-Change. O grupo agora parece estar inativo.

Teixeira é o editor-chefe do Vaping Today e sua empresa co-administrou tanto o Vaping Today quanto o site brasileiro Revista Red, que publicava conteúdo semelhante e hoje está inativo. 

A THR Brasil é filiada à International Network of Nicotine Consumer Organisations (INNCO), organização que por sua vez é financiada pela Smoke Free World, fundação financiada pela Phillip Morris International. 

Ele também recebeu três bolsas da Knowledge-Action-Change. 

Uma dessas bolsas, de acordo com uma página arquivada do site da Knowledge-Action-Change, apoiou Teixeira enquanto ele preparava um “texto-base” para um projeto de lei para regulamentar cigarros eletrônicos no Brasil. Não foi informado quanto dinheiro ele pode ter recebido.

Nesse site a Knowledge-Action-Change diz que o bolsista José Claudio Teixeira estava desenvolvendo pesquisas sobre novas leis para DEFs no Brazil

A Anvisa, agência reguladora de saúde, estava na época solicitando comentários sobre sua proibição de venda de cigarros eletrônicos e produtos de tabaco aquecido, que entrou em vigor em 2008.

Membros da THR Brasil, organização que se tornou ativa em 2019, participaram pelo menos de uma das audiências públicas naquele ano e enviaram uma carta à Anvisa pedindo que fumantes tivessem acesso a cigarros eletrônicos e outros produtos de nicotina, de acordo com um relatório da agência.

Mas a Anvisa percebeu as conexões do grupo com uma entidade financiada pela Foundation for a Smoke-Free World e, em um relatório de 2022, observou: “Tal afiliação, mesmo que não haja prova de receber recursos diretamente, já demonstra um possível conflito de interesses.” 

Em seu site, a THR Brasil postou o texto de um projeto de lei que permitiria a venda e a promoção de cigarros eletrônicos e produtos de tabaco aquecido, com algumas restrições. 

Em publicações no Instagram e Facebook em 2020, o grupo afirmou que a proposta estava sendo entregue a vários políticos e incentivou os leitores a enviá-la a um legislador de sua escolha.

Teixeira recusou-se a comentar e não respondeu às perguntas enviadas por e-mail.

O que The Examination descobriu sobre os grupos Asovape na América Latina se encaixa em um padrão familiar, disse Mary Assunta, chefe de pesquisa global e defesa no Global Center for Good Governance in Tobacco Control.

“São uma ou duas pessoas que criam uma organização para representar os consumidores”, disse ela. “Mas eles têm uma voz potente, e usam essa grande voz para convencer os governos.”

Esta reportagem foi publicada originalmente em inglês pelo site The Examination e faz parte da colaboração internacional “Redes de Nicotina”, que investigou as estratégias das empresas tabagistas para liberar os cigarros eletrônicos na América Latina.

Colaboraram Fernanda Aguirre, da The Examination, Jose Luis Peñarredonda, do Centro Latinoamericano de Investigación Periodística (CLIP), Jason Martínez, Alicia Tovar, Renzo Gómez, Alexandra Shimabukuro e Fabiola Torres da Salud con lupa, Alexander Campos, Sharon Mejía e Ana María Saavedra do Colombiacheck, e Rafael Oliveira e Laura Scofield da Agência Pública.

Reprodução

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