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Em janeiro de 2023, Luiz Inácio Lula da Silva fez à Argentina sua primeira viagem internacional no terceiro mandato como presidente da República. Entre outros compromissos, esteve com as Mães da Praça de Maio, a histórica associação das famílias de mortos e desaparecidos pela ditadura militar na Argentina (1976-1983).
No vídeo divulgado no perfil oficial do presidente no X (ex-Twitter), Lula apareceu abraçando e beijando as ativistas dos direitos humanos, com as quais se sentou à mesa. Tudo foi filmado e divulgado pela sua assessoria. “Obrigado por pessoas como vocês existirem. Se vocês não existissem, certamente a democracia seria mais difícil”, disse Lula ao microfone. No seu perfil, publicou mais uma mensagem: “As Mães e Avós da Praça de Maio são uma inspiração na defesa da democracia na América Latina. Emocionado com o nosso encontro de hoje”.
Em março de 2018, o perfil de Lula já havia postado uma fotografia em que ele aparecia beijando a testa de Nora de Cortiñas, uma das fundadoras das Mães da Praça de Maio.
O mesmo Lula emocionado com as vítimas na Argentina, porém, desde que tomou posse na Presidência não recebeu os familiares brasileiros, incluindo as mães, irmãs, filhas, sobrinhas, dos mortos e desaparecidos na ditadura civil-militar brasileira (1964-1985). Há décadas, muitas vezes enfrentando a rejeição, a omissão e a indiferença das autoridades brasileiras, elas também lutam pela memória das vítimas, pela localização dos restos mortais dos seus entes queridos e pela responsabilização dos agentes e do Estado brasileiro por inúmeros crimes contra os direitos humanos no Brasil. Elas são igualmente “uma inspiração na defesa da democracia na América Latina”.
Uma carta encaminhada à Presidência em 3 de setembro passado – assinada pelos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, pela Coalizão Brasil por Memória, Verdade e Justiça, Reparação e Democracia e pelo Coletivo Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça — descreve os esforços dos familiares no sentido de marcar uma conversa com Lula.
O primeiro pedido de audiência ocorreu em agosto passado com antecedência para que a reunião pudesse ocorrer no dia 30 daquele mês, o Dia Internacional das Pessoas Desaparecidas. Contudo, segundo os familiares, o pedido nunca foi respondido pela Presidência.
Sem audiência, os familiares escreveram, na carta ao Planalto, o que ocorreu naquele dia. “Em reunião, e por decisão do coletivo frente a todos os esforços empreendidos para chegar a Brasília, decidimos manter nosso ato e fazer a manifestação em frente ao Palácio do Planalto e insistir, dada a presença de Lula nessa mesma data e local, com que ele nos recebesse. Para surpresa e decepção do grupo, o presidente não nos recebeu, e ainda sofremos pressão e intimidação da Polícia Legislativa, que exigiu nossa retirada, e do GSI [Gabinete de Segurança Institucional].”
O GSI, não custa lembrar, comanda a Abin (Agência Brasileira de Inteligência), que é a sucessora do fatídico SNI, o Serviço Nacional de Informações, que colaborou para a perseguição de inúmeros presos políticos durante a ditadura.
Na delegação que veio a Brasília para o ato de 30 de agosto, estavam muitas pessoas que há décadas lutam pela causa, como Vera Paiva, de São Paulo, filha do deputado federal cassado pela ditadura Rubens Paiva, preso e assassinado pelo DOI-CODI em 1971, cujo corpo até hoje permanece desaparecido. Estavam Eliana e Mercês de Castro, irmãs de Antônio Teodoro de Castro, vítima de desaparecimento forçado na Guerrilha do Araguaia. Estava Diva Soares Santana, da Bahia, irmã de Dinaelza Santana Coqueiro e cunhada de Vandick Pereira Coqueiro, ambos executados e desaparecidos no Araguaia. Estava Ñasaindy Barrett de Araújo, filha de Soledad Barrett Viedma e José Maria Ferreira de Araújo, ambos sequestrados, mortos pela repressão e desaparecidos desde 1973 e 1970, respectivamente.
Iara Xavier Pereira, que desde a redemocratização exerceu um papel protagonista na articulação da luta pela localização dos mortos e desaparecidos, teve dois irmãos, Iuri e Alex, e o primeiro marido, Arnaldo Cardoso Rocha, assassinados pela repressão. Ex-militante da ALN (Ação Libertadora Nacional), exilada durante a ditadura, Iara retornou ao Brasil em 1979 e participou dos primeiros comitês da Anistia. Toda sua família era militante política. Sua mãe, Zilda (1925-2015), que integrou o comando da ALN, foi presa, torturada e exilada. O jornalista e escritor Mário Magalhães, um profundo conhecedor daquele período histórico, certa feita definiu Zilda como “uma das mais importantes militantes da luta armada contra a ditadura”.
Iara confirmou que o presidente não recebeu os familiares em audiência.
“Nós sempre pedimos audiências com todos os presidentes da República. Em 2023 nós protocolamos oficialmente um pedido de audiência [com Lula], assinado por todos os familiares que tinham vindo a Brasília. E nunca recebemos resposta.”
Ao tentar agendar a reunião com Lula em agosto, os familiares queriam aproveitar a ocasião para novamente solicitar a recriação da Comissão Especial sobre os Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), extinta no penúltimo dia do mandato de Jair Bolsonaro e até hoje não retomada.
Na carta enviada ao Planalto em setembro, os familiares lembraram que Lula havia dito num café da manhã, em resposta aos jornalistas presentes, que estava disposto a recriar a CEMDP desde que o ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, entregasse em suas mãos um decreto “consistente”.
Os meses se passaram e nada aconteceu. Os familiares concluíram, na carta: “Após quatro meses dessa declaração do presidente, o colegiado [CEMDP] ainda não retomou seus trabalhos. Por isso, como familiares, pressentindo haver algum problema ou impedimento quanto à reedição da CEMDP, nos organizamos para debater e dar continuidade a esta luta que nunca foi simples”.
Ao pedir a reunião com Lula, os familiares estavam inclusive estimulados pelas imagens e palavras do presidente quando do encontro com as mães da Argentina. “Já em seu terceiro mandato, nosso presidente nunca recebeu os familiares dos mortos e desaparecidos políticos no Brasil, mas o fato de, na Argentina, ter participado de um encontro com o grupo das Mães e Avós da Praça de Maio, nos fez criar expectativas de que pudéssemos ser recebidos e nossas demandas, que não são apenas dos familiares, mas de toda a sociedade brasileira, pudessem ser finalmente atendidas.”
Os familiares seguiram aguardando a recriação da CEMDP. Foi então que, no final do mês passado, Lula deu uma declaração reveladora à Rede TV! Indagado sobre os 60 anos do golpe de 1964, ele respondeu que estava “mais preocupado com o golpe de 8 de janeiro de 2023 do que com 64”, que não iria ficar “remoendo” o passado e que tentaria “tocar esse país para frente”.
Familiares de mortos e desaparecidos receberam a declaração como a indicação de que Lula já tomou a decisão de não recriar a CEMDP.
Iara Xavier expressou a frustração e a contrariedade que a declaração de Lula provocou nos familiares.
“Nos surpreendemos agora com a declaração de Lula de que nós não podemos remoer o passado, em relação ao golpe de 64. Eu considerei essa frase muito ofensiva. Porque quem teve parentes, familiares presos, mortos, torturados, quem foi exilado, quem sofreu, quem ousou se opor ao regime militar, e sofreu consequências [por isso], merece, no mínimo, respeito. Você pode divergir da forma como se fez, se foi o caminho armado ou não, se foi via sindicato, não importa, mas pelo menos você tem que respeitar aqueles que tiveram a coragem de se levantar e denunciar as injustiças. Então acho que foi uma falta de sensibilidade, de humanidade, de se identificar com a nossa dor, do presidente Lula. Porque se identificou na Argentina, fez reunião com as mães e avós, e no Uruguai também. Que estranho. E nunca recebeu as nossas mães. Nunca.”
Iara disse que a ideia da recriação da CEMDP hoje parece bem distante, a julgar pela entrevista de Lula.
“A leitura que nós fazemos, pelo menos um grupo de familiares com o qual conversei, é que foi a pá de cal. [Lula disse] ‘Nós não vamos remoer.’ Ele deve considerar que tudo o que foi feito a respeito do golpe militar já foi feito. ‘Agora é seguir para diante.’ É essa a leitura da fala [de Lula]. E depois, complementando com a justificativa de que [os militares] são todos quadros novos, os de alta patente atuais, que tinham quatro anos de idade durante o golpe. Como se a idade definisse a ideologia e o caráter de uma pessoa. Nós sabemos como os militares são formados e como são educados ainda hoje em respeito ao grande fantasma que os assombra, que são os comunistas.”
Para Iara, faltou a Lula “até conhecimento da história não só do Brasil, mas da história da humanidade”.
“A humanidade foi avançando e progredindo sempre aprendendo com seus erros e acertos do passado. Não se constrói um futuro sem saber e sem passar a limpo o seu passado. Eu não sou da área da história, mas me interesso e leio, e acho que ao presidente faltou conhecimento sobre o que é construir o futuro.”
Nesse ponto é importante ressaltar que a posição dos familiares pela recriação da CEMDP tem um amplo apoio de inúmeras organizações de direitos humanos e de mais de duas dezenas de parlamentares que integram a própria base de Lula no Congresso Nacional. Em julho do ano passado, o coletivo Filhos e Netos por Memória Verdade e Justiça lançou um manifesto pela recriação da CEMDP. A iniciativa teve o apoio da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), da Comissão Arns e do Grupo Tortura Nunca Mais, entre outras entidades.
Em uma dura nota pública divulgada neste sábado (9), a Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia disse que a não recriação da CEMDP será “omissão imperdoável”, “erro histórico” e “covardia inexplicável”.
Como se vê, ao não encarar os crimes da ditadura, são grandes as arestas que Lula enfrenta no próprio campo político que certamente apoiou sua reeleição em 2022. Resta saber se, no seu cálculo político, o desgaste gerado pelo desencontro com o passado valerá a pena.
Procurada pela Pública desde a segunda-feira (11), a Secom do Palácio do Planalto não se manifestou. Este espaço será atualizado em caso de resposta.