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Projeto da bancada ruralista mutila Código Florestal e Lei da Mata Atlântica

PL aprovado na CCJ considera tudo que não é floresta como área rural consolidada e deixa desprotegidos 48 mi de hectares

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22 de março de 2024
06:00
Ouça Giovana Girardi

Giovana Girardi

22 de março de 2024 · PL aprovado na CCJ considera tudo que não é floresta como área rural consolidada e deixa desprotegidos 48 mi de hectares

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Em meio a mais uma forte onda de calor que atinge o Brasil e após uma sequência de eventos climáticos extremos que resultaram em perdas para o agronegócio brasileiro, o setor insiste em abrir brechas para reduzir ainda mais a vegetação nativa no país.

Nesta quarta-feira (20), a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ) aprovou um projeto de lei que praticamente tira a proteção de todo tipo de vegetação no Brasil que não seja predominantemente florestal – grosso modo, que não seja coberta de árvores –, alterando regras previstas pelo Código Florestal e pela Lei da Mata Atlântica. 

O primeiro, apesar de trazer a palavra “Florestal”, protege todas as formas de vegetação nativa do Brasil e exige pedido de autorização para a ocorrência de supressões legais. Já a segunda prevê proteções adicionais à Mata Atlântica, que é o bioma mais devastado do país.

O texto aprovado – um substitutivo do deputado Lucas Redecker (PSDB-RS) a um projeto do deputado Alceu Moreira (MDB-RS), ambos da bancada ruralista – define que imóveis rurais em todo o território nacional que tenham outro tipo de vegetação que não seja floresta sejam considerados de ocupação antrópica para a atividade agrossilvipastoril – na prática, como se fossem áreas rurais já consolidadas.

De acordo com nota técnica elaborada pela SOS Mata Atlântica, a proposta é “extremamente grave, por, numa só tacada, retirar a proteção adicional a toda a Mata Atlântica, bem como deixar completamente desprotegidos cerca de 48 milhões de hectares de campos nativos em todo o país”. Segundo os cálculos da organização, pelo projeto ficam desprotegidos 50% do Pantanal (7,4 milhões de hectares), 32% dos Pampas (6,3 milhões de hectares), 7% do Cerrado (13,9 milhões de hectares), além de quase 15 milhões de hectares na Amazônia, “sujeitando-os a uma conversão agrícola descontrolada e ilimitada”.

O projeto inicial de Moreira (PL 364/19) focava nos chamados campos de altitude, um tipo de ecossistema da Mata Atlântica localizado na região Sul do país que já era alvo de disputa há alguns anos, especialmente em municípios da Serra Gaúcha. Na região, vários produtores foram autuados pelo Ibama por terem convertido as áreas para uso agropecuário. 

O objetivo do projeto era regularizar a situação. E mesmo entre ambientalistas havia uma concordância em resolver os problemas desses produtores com um projeto específico reconhecendo a existência de “campos antrópicos” e os qualificando como área de uso alternativo do solo, como pontua a nota técnica da SOS.

Com a tramitação na Câmara, no entanto, a proposta foi bastante ampliada. O texto do relator estabelece que “nos imóveis rurais com formações de vegetação nativa predominantemente não florestais, tais como os campos gerais, os campos de altitude e os campos nativos, é considerada ocupação antrópica a atividade agrossilvipastoril preexistente a 22 de julho de 2008 ainda que não tenha implicado a conversão da vegetação nativa, caracterizando-se tais locais, para todos os efeitos desta lei, como área rural consolidada”. O texto aponta ainda que as disposições “se aplicam a todo o território nacional”.

Os cálculos da SOS levam em conta esses campos gerais, de altitude e nativos por todo o país. “Ao suprimir toda e qualquer proteção legal aos campos nativos, [o texto] deixa partes muito significativas dos biomas Pantanal, Cerrado, Amazônia, Pampa e Caatinga completamente desprotegidas e suscetíveis à conversão agrícola descontrolada”, aponta a nota.

Mas, de acordo com especialistas da área ambiental, que consideram a proposta um enorme retrocesso, o trecho abre espaço para um dano ainda maior. O pulo do gato, dizem, foi a expressão “tais como”, que eu grifei no parágrafo anterior.

Quem me explicou isso foi o Maurício Guetta, advogado do Instituto Socioambiental (ISA), que há mais de década acompanha toda a movimentação do Congresso em torno de leis ambientais, em especial o Código Florestal.

“A expressão ‘tais como’ – e isso é mais velho que Rui Barbosa no direito – é usada do  ponto de vista exemplificativo. O texto dá um exemplo do que é uma vegetação não florestal, mas que não se restringe a isso pela redação que foi usada. Isso abre brecha para impactar toda a vegetação nativa não florestal do Brasil”, diz.

Segundo Guetta, há ainda um problema técnico e jurídico visto que não existe uma definição normativa legal do que é floresta e do que não é floresta. “Isso abre margem para que a regulamentação, seja agora ou em governo futuro, por exemplo um que passe as boiadas, ocorra de forma a deturpar a situação. Acarreta uma superinsegurança jurídica”, explica.

Durante a sessão da CCJ, Redecker minimizou esse temor, disse que o PL não abre margem para derrubar “uma árvore sequer” e que as áreas contempladas no projeto já estão em uso pela agropecuária. “Não há nexo nenhum em nós mantermos uma área que já é utilizada pelo homem como uma área proibida para a agricultura”, disse. 

“Falo de áreas onde já existe o manejo do homem passando com a sua lida de campo, com a criação de gado, com a criação de outros animais, com a construção de cercas e de currais, com a construção de estruturas para armazenamento de alimentação, enfim, esses campos já são utilizados. Já existe ação humana nesses campos”, complementou.

De acordo com a nota da SOS, não é bem assim. No Pantanal, por exemplo, que tem cerca de 50% de sua superfície coberta por campos nativos, segundo cálculos do MapBiomas, os campos de fato são historicamente usados pela pecuária. “Mas continuam em bom estado de conservação e prestando todos os serviços ambientais originais (proteção do solo, alimento e habitat para a fauna e flora silvestres etc.)”, aponta a ONG. 

“Há, no entanto, inclusive em função das mudanças no clima, uma crescente pressão para conversão dos campos nativos em agricultura (soja), o que representa uma ameaça existencial a esse importantíssimo ecossistema”, alerta. 

Ainda de acordo com a nota, no caso do Pantanal, “a lei determina que novas autorizações de supressão só possam ocorrer em casos excepcionais, de forma a não comprometer a capacidade de suporte desse ecossistema”. Na avaliação dos ambientalistas, o substitutivo elimina essa proteção legal. “Podemos afirmar, sem exageros, que o texto a ser votado, se aprovado, pode levar a maior área úmida do planeta ao colapso ecológico em menos de uma década”, afirma a organização.

No Cerrado, o impacto também pode ser grande. Segundo a nota, “parte importante dessa vegetação campestre se situa em áreas úmidas (campos úmidos, veredas, campos de murunduns etc.), as quais têm enorme importância para o balanço hídrico de vastas regiões, além de terem um grande número de espécies endêmicas”.

O engenheiro agrônomo Antonio Oviedo, também pesquisador do ISA, me explicou que essas vegetações são extremamente importantes para a recarga de aquíferos. Sem elas, o solo pode ficar impermeabilizado, prejudicando a segurança hídrica.

A votação na CCJ foi feita em caráter conclusivo, o que significa que o PL já pode seguir para o Senado. O deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) disse que vai apresentar um recurso para que passe pelo plenário da Câmara também. Mas para isso o requerimento precisa ser aprovado pela maioria do plenário, e quem decide se ele será pautado é o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL). A expectativa, portanto, não é das melhores.

Esse é mais um episódio de ataques da bancada ruralista às leis ambientais. Em 2012, o Código Florestal foi reformado, tornando-se bem menos restritivo que sua versão anterior, de 1965. Apesar de não ter saído exatamente como o agronegócio queria, o texto flexibilizou bastante a proteção, reduzindo as necessidades de recuperação de áreas ilegalmente desmatadas e concedendo anistia a desmatadores. Foi uma importante vitória ruralista, e muitos especialistas veem nessa mudança o início da retomada do desmatamento no Brasil.

O agro gosta de se vender como uma atividade sustentável, que atua em respeito ao meio ambiente, e um dos argumentos que sempre usa para isso é dizer que no Brasil há uma das legislações mais rigorosas do mundo. A bancada, no entanto, atua diligentemente para enfraquecer cada vez mais essa lei.

Mensagem dos leitores

Na minha última coluna, compartilhei com os leitores algumas inquietações que senti sobre quanto da solução para as mudanças climáticas passa por ações individuais ou por medidas impostas, de alguma maneira, pelo Estado. Pedi a opinião de vocês e recebi respostas muito interessantes. Compartilho abaixo algumas. Como foram várias, envio outras nas próximas edições. Continuem escrevendo! Gostei de saber o que nossos leitores pensam.

“Compartilho de seu ceticismo, inclusive porque o cenário internacional está muito pior que na época da Rio-92. Trinta anos depois da criação da UNFCCC e trinta e cinco anos depois da criação do IPCC, os cenários projetados pelos cientistas estão se mostrando realistas. Ou seja, não é por falta de aviso.

A melhor estratégia de combate às mudanças climáticas seria certamente uma forte coalizão mundial, na qual a transição para uma economia sustentável fosse realizada de forma socialmente justa. 

Na atual confusão mundial, as guerras na Ucrânia, Gaza, Iêmen, e na África mostram o colapso da ordem mundial do pós-guerra, cuja premissa era a superioridade da civilização ocidental sobre o resto do mundo. A possibilidade de cooperação internacional em mudanças climáticas foi substituída pela política anti-imigração e pela briga em torno do TikTok.

Ainda assim, é preciso agir. Sigo Hannah Arendt: A ação é mais importante que a esperança. Veja aqui.

Cada um age como pode. Em especial, bons jornalistas como você têm de manter a chama acesa. Não esmoreça, por favor. 

Quanto à questão de como lutar contra mudanças climáticas, as evidências são claras. Somente a ação do Estado combinando medidas coercitivas e política industrial ativa é capaz de produzir avanços. Veja-se o caso da China, país que teve a maior redução percentual de emissões. Nisso, Marcelo Gleiser está completamente equivocado. Ações individuais terão efeito muito limitado. O que funciona nas mudanças econômicas e sociais importantes é o que sempre funcionou: um Estado organizado e forte. Por acaso, foram as ações de fazendeiros e consumidores bonzinhos que reduziram o desmatamento? Ou foi a mão pesada do Estado?”

  • Gilberto Câmara, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) em geoinformática, mudança do uso do solo e ciência de dados espaciais

“Escrevo para contar que concordo com o Gleiser e o Nobre. Assim como eles, avalio que a mudança no comportamento individual é a tarefa mais urgente e importante para reverter o processo de aquecimento global. Por mais que governos mudem políticas e se tornem mais rigorosos com setores econômicos que são os maiores geradores de emissões, as empresas continuarão fazendo o mesmo e se escondendo atrás de ações inúteis de ESG enquanto houver demanda pelos produtos que geram as emissões.

Experimente perguntar a jovens, que tendem a se engajar mais na defesa do meio ambiente, se estariam dispostos a deixar de trocar de celular com a mesma frequência que trocam e a ignorar lançamentos. Creio que as respostas te deixarão mais convencida da importância do que o Gleiser e o Nobre propõem.”

  • João Carlos Amoroso Botelho, professor associado do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais

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