Nesta semana (de 22 a 26), de 6 mil a 7 mil indígenas de todo o país se reúnem em Brasília para a 20ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), a maior assembleia indígena do Brasil. Em duas décadas de mobilização anual na capital do país – sempre no mês de abril, quando se celebra a luta dos povos originários –, houve significativos avanços na pauta indígena, afirmam lideranças ouvidas pela Agência Pública. No entanto, a demanda central do movimento, condição básica para a conquista de todos os outros direitos, segue longe de ser plenamente atendida: a demarcação dos territórios.
Em 2004, quando ocorreu oficialmente o primeiro ATL, o mote da mobilização era a conclusão do processo de reconhecimento da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, em Roraima, à qual havia maciça resistência por parte do poder político e fazendeiros locais. Daquele ano até hoje, 67 TIs foram homologadas – ou seja, chegaram à etapa final do rito de demarcação, que depende da assinatura do presidente da República –, de acordo com levantamento do Instituto Socioambiental (ISA).
Há ainda um passivo de 254 áreas em outras etapas do processo demarcatório, sem contar as que ainda não tiveram os procedimentos formalmente iniciados pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). A demarcação dos territórios indígenas é um direito garantido pela Constituição Federal de 1988. Na ocasião, foi estabelecido o prazo de cinco anos, a partir daquele ano, para o reconhecimento de todas as terras.
Além de evidenciar a morosidade da política de demarcação do Estado brasileiro, com cerca de três territórios homologados por ano no período, os dados mostram uma queda no ritmo das homologações ao longo do tempo.
Por que isso importa?
- Embora seja um direito constitucional, passivo na demarcação de terras indígenas ainda é grande, e situação é agravada por entraves como a lei que instituiu o marco temporal
- Apesar disso, nos 20 anos desde a primeira edição do Acampamento Terra Livre, houve avanços na garantia dos direitos indígenas nas áreas de saúde, educação e representatividade política
No primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) (2003 a 2006) – o chefe do Executivo à época da primeira edição do acampamento –, foram concluídos os processos de reconhecimento oficial de 62 TIs. No segundo (2007 a 2010), o número despencou para 19. A queda seguiu com Dilma Rousseff (PT) – 11 homologações no primeiro mandato e 10 no segundo, que durou apenas dois anos –, Michel Temer (MDB), que entregou apenas uma homologação em dois anos na presidência, até chegar a zero no governo de Jair Bolsonaro (PL).
Ao tomar posse como presidente pela terceira vez em 2023, Lula retomou a política de demarcações totalmente desmantelada por seu antecessor, que não apenas cumpriu a promessa eleitoral de não reconhecer “nenhum centímetro” de terras indígenas como atuou para retardar diversas etapas do processo.
No ATL do ano passado, Lula anunciou a homologação de seis terras, de uma lista de 14 elaborada ainda em 2022 pelo grupo de transição de governo, o que causou certa frustração entre o movimento indígena, que aguardava ansioso pela finalização de todos os procedimentos após quatro anos sem nenhum avanço. Em setembro, o petista homologou mais duas áreas, totalizando oito.
Havia a expectativa de que as seis homologações pendentes fossem anunciadas na última quinta-feira (18), quando Lula esteve no encerramento da primeira reunião do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) ao lado de vários ministros, entre eles, a dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara.
Segundo a Pública apurou, até minutos antes do início do evento, o plano era que o presidente assinasse os seis processos. Representantes dos povos das seis terras estavam no local para presenciar o ato. Mas, em cima da hora, o governo recuou e apenas duas foram homologadas: Aldeia Velha, em Porto Seguro (BA), e Cacique Fontoura, localizada nos municípios de Luciara e São Félix do Araguaia (MT).
“Temos um problema, e é melhor a gente tentar resolver o problema antes de assinar [as homologações]”, disse Lula a uma plateia atenta de indígenas. “Temos algumas terras que estão ocupadas, algumas por fazendeiros, outras por gente comum, possivelmente tão pobre quanto nós”, prosseguiu.
“E tem alguns governadores que pediram tempo para a gente saber como vamos tirar essas pessoas, porque não posso chegar lá com a polícia e ser violento com as pessoas que estão lá. Tenho que ter o cuidado de oferecer para essas pessoas uma possibilidade outra para que vocês possam entrar tranquilamente na terra.”
“Os governadores, dois são aliados nossos que pediram tempo, e nós vamos dar esse tempo”, acrescentou o petista. Ele se referiu a Paulo Dantas (MDB), de Alagoas, onde fica a TI Xukuru-Kariri, e João Azevêdo (PSB), da Paraíba, onde está a TI Potiguara de Monte-Mor. Os outros dois territórios que ainda aguardam homologação são Morro dos Cavalos e Toldo Imbu, em Santa Catarina, estado comandado pelo bolsonarista Jorginho Mello (PL).
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) considerou que o argumento do presidente para segurar as homologações abre um precedente perigoso.
“Se há interferência dos governadores, nós nos preocupamos, porque a partir de agora vai se criar um fluxo de consulta aos governadores para o processo de demarcação, e sabemos que em boa parte do Brasil os governadores não são alinhados [ao avanço das demarcações]”, afirmou Dinamam Tuxá, coordenador executivo da entidade pela região Nordeste, logo após o evento.
“Estamos encontrando mais uma barreira, a barreira política e dos governadores, para a demarcação dos territórios. Isso demonstra um total desrespeito à luta dos povos indígenas e ao cumprimento do nosso texto constitucional”, diz.
Além do ritmo lento para as demarcações imprimido pelo próprio governo – em que pese o esforço de reconstrução do cenário de terra arrasada deixado por Jair Bolsonaro –, outros entraves complicam a situação.
O déficit de servidores da Funai é apontado como um deles. Mas o principal problema é a lei 14.701/2023 que institui, entre outros pontos, o marco temporal para reconhecimento das terras indígenas. A norma foi aprovada no Congresso Nacional sob patrocínio da bancada ruralista em contestação à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que rejeitou a tese jurídica em setembro do ano passado. Não à toa, o tema escolhido para o ATL deste ano é “nosso marco é ancestral, sempre estivemos aqui”.
Diante do quadro, a Apib alterou a estratégia de mobilização para o ATL deste ano com a intenção de ser mais “propositiva”, segundo Tuxá.
A carta-manifesto do acampamento foi divulgada nesta segunda-feira (22), no primeiro dia do ATL – uma mudança em relação aos outros anos, em que o documento era publicado normalmente no fim do evento. “Antecipamos a carta para que, quando formos ao encontro dos ministros, já podermos cobrar as respostas”, explica o coordenador da Apib.
O texto traz 25 demandas aos três poderes da República, sendo a política de demarcação a demanda central. A carta também pede que o governo coloque esforço na articulação política contra as pautas anti-indígenas no Legislativo, já que a avaliação do movimento é que, muitas vezes, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) atua isoladamente na tentativa de barrar projetos que ferem os direitos dos povos originários.
Em vez de convidar Lula a visitar o acampamento, como ocorreu em 2022 e 2023, a Apib decidiu sugerir uma agenda no Planalto durante a semana. Tuxá diz que, além de evitar problemas de logística – a ida do presidente à assembleia exige, por exemplo, um forte esquema de segurança –, a intenção do movimento é que o maior número possível de ministros compareça ao encontro.
A Apib ainda voltará suas forças à pressão pelas quatro homologações pendentes. Kretã Kaingang, coordenador executivo da entidade pela região Sul, explica que seria simbólico que o governo finalizasse os processos dos dois territórios em Santa Catarina, onde há resistência do poder político e econômico local às demarcações.
“Sabemos que é um estado muito racista, preconceituoso e contrário aos povos indígenas”, argumenta. “As homologações dariam um exemplo para o Estado brasileiro de que o governo respeitou o artigo 231 [da Constituição].”
Gênese do ATL, acampamento de 2003 ocorreu para cobrar Lula por demarcações
O avanço nas demarcações sempre foi a pauta central do movimento indígena. Em abril de 2003, povos do Sul do país, como Xokleng, Kaingang e Guarani, vieram a Brasília cobrar do então recém-empossado presidente o reconhecimento de seus territórios.
Um deles era a TI Ibirama Laklãno, habitada pelos Xokleng no interior de Santa Catarina, e centro do julgamento do Supremo que afastou a tese do marco temporal.
Em agosto daquele ano, ocorreu o último ato de avanço no processo demarcatório daquela terra, a publicação da portaria de declaração. Ainda precisam ser realizadas a demarcação física e a homologação. Mas em parte do território, o governo de Santa Catarina criou a Reserva Biológica Estadual de Sassafrás, em 1977.
O processo foi paralisado por uma ação de reintegração de posse movida em 2009 pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Funai e os Xokleng com base justamente na tese do marco temporal – de que os indígenas não estariam ocupando o local na data de promulgação da Constituição. Deriva daí o recurso extraordinário que motivou o julgamento no STF.
Na manifestação de 2003 juntaram-se aos povos do Sul outros “parentes” – como os indígenas se referem uns aos outros – das regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste. Eles passaram dias acampados em frente ao Ministério da Justiça, até que foram recebidos pelo então titular da pasta, Márcio Thomaz Bastos.
A mobilização de 2003 consolidou tentativas de rearticulação do movimento indígena após um distanciamento que havia ocorrido em 2000 devido aos atos de protesto às comemorações oficiais dos 500 anos do “descobrimento” do Brasil.
As lideranças decidiram repetir a experiência em abril de 2004, quando aconteceu oficialmente o primeiro Acampamento Terra Livre. À época, ainda não havia esse nome, que surgiu apenas em 2006. Em 2005, na segunda edição formal da assembleia, o movimento resolveu criar a Apib, que reúne sete organizações regionais de base.
“Na minha leitura, o acampamento em frente ao Ministério da Justiça é uma espécie de raiz do processo de rearticulação do movimento indígena com enfoque na luta pela demarcação dos territórios em cobrança ao presidente Lula, principalmente, naquele primeiro mandato”, avalia Cleber Buzatto, ex-secretário executivo e hoje membro da Coordenação Colegiada do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Sul. Na entidade desde 2000, Buzatto acompanhou os indígenas no acampamento de 2003.
Paulino Montejo, indígena maia da Guatemala e atualmente coordenador do Departamento de Política da Apib, participou da “edição zero” do ATL em 2003 e de todas as outras que se seguiram. Ele reforça que o acampamento surgiu para cobrar o governo pelo cumprimento das propostas reunidas no caderno “Povos indígenas” do programa de Lula à Presidência, lançado na campanha de 2002.
Além de avançar demarcações, o documento prometia criar o Conselho Superior de Política Indigenista, conter as invasões dos territórios e o aumento da violência contra os indígenas e garantir sua participação na discussão das políticas que os afetam. “Em 2003, [o governo] não mostrava por onde ia a sua política indigenista. Não sabíamos”, relembra Montejo.
Passadas duas décadas, o movimento volta a encarar a figura de Lula na Presidência, após ter apoiado oficialmente sua candidatura em 2022 contra a reeleição de Bolsonaro. Embora tenha havido a retomada da política de demarcações, a criação de um inédito Ministério dos Povos Indígenas e a escolha de indígenas articulados pelas organizações de base para a presidência da Funai e da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) – Joenia Wapichana e Weibe Tapeba, respectivamente –, a promessa feita pelo presidente, no ATL de 2023, de demarcar todas as terras indígenas até o fim do mandato fica cada vez mais distante do cumprimento.
A ministra Sonia Guajajara admitiu a dificuldade em entrevista à Pública no início do mês. “Não dá para eu, enquanto ministra, garantir que em dois anos e oito meses se vá demarcar todas as terras indígenas no Brasil, uma vez que o passivo é muito grande”, declarou.
Brasílio Priprá, de 65 anos, liderança Xokleng da TI Ibirama Laklãno que frequenta os acampamentos desde 2003, relata que segue vindo para Brasília todos os anos com um objetivo fixo. “Esse encontro demonstra que o governo precisa nos atender principalmente na demarcação de terra indígena. Claro, todas as outras demandas são importantes”, assinala, “mas sem demarcação de terra indígena não tem educação, não tem saúde”.
Aliança nacional entre povos indígenas foi maior avanço
Apesar da insatisfação com o ritmo das demarcações, lideranças reconhecem avanços da garantia dos direitos indígenas nas duas últimas décadas. Um exemplo é a criação da Sesai em 2010, que aprimorou a gestão do Subsistema de Saúde Indígena no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Antes, a atenção básica e as ações de saneamento voltadas aos povos indígenas eram atribuições da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), que sofria muitas críticas por parte do movimento por não atender às necessidades das comunidades.
Outro é a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Indígenas (PNGATI), o instrumento pelo qual as comunidades produzem os Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTAs), que definem as regras para o uso sustentável dos recursos nos territórios.
Esses planos garantem, ao mesmo tempo, a sobrevivência de seus habitantes e a proteção dos ecossistemas e da biodiversidade. Construída durante anos e instaurada em 2012, no primeiro governo de Dilma Rousseff, a política teve sua implementação posteriormente paralisada e foi retomada no ATL de 2023, com a instituição de seu comitê gestor.
O resgate e efetivação do Conselho Nacional de Política Indigenista – cuja primeira reunião depois de sua reinstalação, no ano passado, ocorreu na última semana – também são apontados como conquistas. O conselho, reivindicado desde 2002, foi criado em 2006 no formato de uma comissão que tinha a atribuição de elaborar o projeto de lei para a criação do órgão, que passaria a integrar a estrutura do Ministério da Justiça.
O conselho foi efetivamente fundado em 2015, mas durou apenas até o impeachment de Dilma Rousseff, meses depois. Durante o governo Bolsonaro, foi extinto.
No entanto, Marcos Subaru, liderança Tingui-Botó de Alagoas e articulador político da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), uma das organizações formadores da Apib, aponta que a “grande vitória” dos últimos 20 anos foi a criação de uma aliança entre os povos indígenas do Brasil. Algo que, de acordo com ele, “não existe em nenhum lugar do mundo”.
“Existe o parente na Cabeça do Cachorro [no Amazonas], o parente de recém-contato, e o cara que mora no Real Parque, em São Paulo [onde há uma comunidade Pankararu], o cara que mora no Piauí, no Sul”, exemplifica. “São tempos, visões de mundo, espiritualidades, culinárias muito diferentes. Mas eles aceitaram fazer uma luta juntos. E um pelo outro. Há entre nós uma aliança, mesmo sem, muitas vezes, conhecermos muito um do outro.”
Nesse sentido, o ATL é um momento fundamental de unificação e realinhamento de pautas do movimento indígena. No próprio regimento da Apib, consta que o acampamento é a instância máxima de decisão da entidade. “O ATL é onde se deliberam as pautas, as demandas. É onde cada um deixa de olhar para o seu próprio umbigo”, destaca Montejo.
“É verdade que o seu ponto de referência é o seu território, seus problemas. Mas é necessário ver em que ponto você se encontra com seus parentes e formular as pautas comuns. Tanto é que todas as conquistas [nos últimos 20 anos] – demarcação territorial, sustentabilidade, saúde, educação, cultura, orçamento – são pautas comuns”, diz.
Além de essencial para sua dinâmica interna, o ATL é um momento de demonstração de força do movimento diante das forças anti-indígenas que operam no Congresso Nacional e no próprio governo. “É o momento de dizer para os outros: ‘Vocês acham que vão acabar com a gente? Estamos aqui. Com uma voz unificada e com a nossa própria voz. Já se foi o tempo em que os outros falavam por nós. Hoje, nós é que estamos falando’’, assinala Montejo.