Na noite do dia 29 de abril de 1981, a estudante Luciana (nome fictício), então com 28 anos, recebeu alguns amigos em casa no bairro da Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro. O grupo costumava se reunir às quartas-feiras para jogar pôquer. O assunto daquela noite era o grande evento que ocorreria no dia seguinte no Centro de Convenções Riocentro, em comemoração ao Dia do Trabalhador. Luciana estava animada com a possibilidade de ver muitos dos artistas que admirava e comentou que havia combinado de ir ao show com um grupo de amigas. O que ela não sabia era que ao seu lado estava um dos militares que levariam uma bomba até o local: o então capitão Wilson Luiz Chaves Machado.
Hoje general reformado, Wilson Machado dirigia o carro que transportava o explosivo por volta das 21h no estacionamento do Riocentro, em 30 de abril. Ele ficou gravemente ferido após a explosão. O sargento Guilherme Pereira do Rosário, que o acompanhava, morreu. O atentado fracassado fazia parte do plano de militares da extrema direita insatisfeitos com o processo de abertura do regime militar. O objetivo do “Grupo Secreto” era o de incriminar movimentos contrários à ditadura para justificar um recrudescimento da repressão.
Passados quase 43 anos, Wilson Machado é a única testemunha militar viva do atentado que marcou o período. Ele nunca foi punido pelo envolvimento no crime, que sempre negou.
“Ele foi na minha casa, escutou eu falar um dia antes que eu ia para o show e assim mesmo levou uma bomba para me matar. Como é que pode uma pessoa que estava tramando isso joga pôquer no dia anterior, como se fosse uma coisa normal? Pra mim ele é uma pessoa muito fria. Meu Deus, como é que existem pessoas assim?”, questiona Luciana com indignação, em entrevista à Agência Pública, na tarde do dia 5 de março.
É a primeira vez que Luciana, 71, conta a história publicamente. Ela pediu anonimato porque o restaurante da família, frequentado por alguns dos envolvidos no atentado, foi “duramente” atacado após ter sido associado ao regime militar. “Pessoas passavam na porta e cuspiam, picharam as paredes, foi horrível”, lamenta. Ela diz temer novas retaliações, “diante do momento político de polarização do país”.
Para Luciana, Wilson Machado era “Patinho”, como ele próprio se apresentou, no início do verão de 1981, na praia da Barra. Lá, um grupo de amigos mantinha uma rede de vôlei, em frente à famosa torre redonda projetada por Oscar Niemeyer, na avenida das Américas. “Ele jogava bem vôlei e começou a se entrosar com o pessoal. Depois, passou a aparecer para tomar chope em um bar que funcionava onde hoje é o Chico’s, na rua General Canabarro, onde morávamos.”
Segundo Luciana, naquele 29 de abril, Machado passava pela rua General Canabarro, quando encontrou com um amigo, já falecido, que frequentava a jogatina semanal. De acordo com ela, foi esse amigo que “inocentemente” o convidou para o jogo. “Não sabíamos e nem desconfiávamos que o Patinho era do Exército. Ele era cabeludo, barba por fazer, não tinha nenhuma ‘pinta’ de militar”, recorda. “Eu fiquei muito irritada e chocada quando vi [pela TV] que era ele.”
Luciana também reconheceu nas imagens o carro do capitão, um Puma marrom metálico, em que a bomba explodiu. “Ele andava com esse Puma, chamava a atenção. Era um carro lindo, ninguém tinha carro conversível naquela época. A gente se perguntava: ‘Será que ele ganha dinheiro como?’ e pensávamos: ‘esse cara deve ser muito rico’, mas ninguém sabia o que ele fazia e ninguém perguntava também.”
Ela suspeita que Wilson Machado, à época agente do Destacamento de Operações de Informações do 1º Exército (DOI-I) – órgão de inteligência e repressão da ditadura –, se aproximou para monitorar seu grupo de amigos, que, apesar de não participar diretamente de nenhum movimento político, se posicionava contra o regime militar. “Naquela época, tinha olheiro em todo lugar”, recorda. Ela disse que não sabia nada da vida pessoal de Patinho, nem mesmo seu nome.
A Pública apurou que eles eram praticamente vizinhos. Machado vivia à época, com a esposa e a filha de 7 meses, em um apartamento na rua Visconde de Itamaraty, também na Tijuca, a cerca de dez minutos de distância a pé da casa de Luciana. No mesmo bairro funcionava o DOI-I, de onde o militar teria partido para executar a missão de explodir uma bomba no complexo Riocentro.
Mais de 40 anos de impunidade e R$ 29 mil de salário
Dr. Marcos, codinome de Wilson Machado no Exército, foi nomeado agente do DOI-I em agosto de 1980, oito meses antes do atentado do Riocentro. Ele nunca foi punido pelo envolvimento no episódio; pelo contrário, progrediu na carreira militar e recebeu honrarias, como a Medalha de Pacificador, concedida a ele pelo Exército em julho de 2001.
Após a explosão, o oficial passou pelo Colégio Militar de Brasília e pela Diretoria de Movimentação do Exército. Em 2002, ele entrou para a reserva e na sequência foi contratado no Instituto Militar de Engenharia para “exercer a tarefa de análise funcional dos cargos de engenheiro militar”, em que ficou até 2012, quando se aposentou. Hoje, Wilson Machado recebe salário bruto de R$ 29,6 mil, conforme informações do Portal da Transparência do governo federal.
Os jornalistas Chico Otávio e Cristina Tardáguila revelam no livro Você foi enganado: mentiras, exageros e contradições dos últimos presidentes do Brasil que Machado sonhava seguir carreira no Pelotão de Motociclistas, responsável pela escolta dos presidentes. Um acidente de moto, em 1979, no entanto, prejudicou o movimento de uma de suas mãos, o que o obrigou a mudar de plano.
Com a possibilidade de ir para a reserva após a explosão no Riocentro, Wilson Machado, à época com 33 anos, chegou a confidenciar a amigos que, caso fosse obrigado a deixar a caserna, faria faculdade de educação física. Queria dar aulas.
A Pública conversou com um militar que se formou com Machado na Academia Militar das Agulhas Negras, em 1972. Ele lembra que o ex-colega, torcedor do Fluminense, sempre gostou de praticar esporte, principalmente vôlei. “Ele era um excelente companheiro, um cara alegre e brincalhão. Acho difícil você encontrar um colega que vá falar mal dele”, afirmou o coronel da reserva, que pediu para ter o nome reservado.
Mesmo depois de tantos anos do atentado do Riocentro, o silêncio sobre o caso ainda paira no Exército. No Clube Militar que Wilson Machado frequentou por muitos anos e entre seus ex-colegas, o assunto é tabu. “Quando o Wilson se viu acuado após o caso do Riocentro, ele falou: ‘O que eu posso fazer é me preservar’”, contou o coronel, que diz ter perdido contato com o colega de turma.
Atualmente, Machado vive em um prédio imponente na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Aos 76 anos, o general reformado mantém uma rotina discreta, ao menos à vista de vizinhos e funcionários do condomínio onde mora, que, abordados pela reportagem, disseram desconhecer a história pregressa do militar.
Em 2017, ele registrou em seu endereço uma microempresa para prestar serviços administrativos. A atividade do negócio, conforme informação da Receita Federal, é “preparação de documentos e serviços especializados de apoio administrativo não especificados anteriormente”.
Procuramos Wilson Machado pessoalmente em sua residência, mas ele se recusou a nos receber. Também se recusou a responder a uma série de perguntas, por escrito, deixada em seu condomínio. Após diversas tentativas frustradas de contato, por mensagem de texto, o oficial escreveu apenas “não” ao pedido de entrevista.
Machado nunca falou com a imprensa, apesar da insistência de jornalistas. Um documento do Departamento de Polícia Federal de 1986, que está no Arquivo Nacional, orientava militares, entre eles Machado, a ficar em silêncio diante da procura por entrevistas desde aquela época. “Nestes casos, o CIE [Centro de Inteligência do Exército] orienta que os elementos contatados nada declarem, principalmente, que não se preocupem em defender-se de possíveis acusações pessoais de que esses repórteres têm se valido para provocar os contatados. A única alegação deve ser que as atividades por eles desempenhadas sempre o foram por ordens superiores”, orienta.
Um coadjuvante silencioso
Desde 1981, Wilson Machado prestou cinco depoimentos sobre o caso: três à Justiça Militar e dois ao Ministério Público Federal (MPF). Em setembro de 2014, o oficial foi convocado pela Comissão Nacional da Verdade, mas não se manifestou. “Enquanto o Estado brasileiro não exigir respostas às Forças Armadas, esse silêncio vai ser eterno. As condições econômica, social e da família dele dependem do silêncio”, destacou Nadine Borges, que presidiu a Comissão da Verdade do Rio.
Embora indiciado por duas vezes, Machado nunca foi punido. Em 2000, o Superior Tribunal Militar (STM), em decisão confirmada pelo Supremo, entendeu que ele estava coberto pela Lei da Anistia. Quatorze anos depois, o caso foi reaberto pelo Ministério Público Federal (MPF), que denunciou seis militares envolvidos no ataque, por tentativa de homicídio, associação criminosa e transporte de explosivos, mas a ação acabou arquivada pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 2ª Região.
No último processo a que respondeu, ele foi defendido pelo advogado Rodrigo Roca, conhecido por sua atuação na defesa de militares do Exército e também por ter defendido pessoas do entorno do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), como o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e o ex-ministro da Justiça Anderson Torres.
Wilson Machado sempre sustentou a narrativa do primeiro inquérito policial militar, de 1981 – à época manipulado para inocentar os militares –, de que ele e o sargento Rosário estavam no local para uma missão de cobertura do evento, com objetivo de monitorar os artistas e os participantes. A versão foi desmentida pelo MPF, por meio de relatos de pessoas que testemunharam ou participaram do atentado.
“Eu nunca carreguei nenhum explosivo, não sei mexer com nenhum explosivo, nunca mexi na minha vida. Não estou encobrindo ninguém, e ninguém vai dizer que deu essa ordem pra mim”, afirmou Machado durante o longo depoimento prestado ao MPF, em dezembro de 2014. Em conversa com a Pública, o procurador que coordenou a investigação, Antonio do Passo Cabral, contou que ele “foi ficando muito irritado” durante a inquirição.
Trechos em vídeo do relato do militar foram divulgados pelo Fantástico em fevereiro de 2014. De frente para o procurador, Wilson Machado também negou a existência da bomba que explodiu em seu veículo. “Para mim, não estourou bomba, não, amigo. Se você ver aí na declaração, não sei se está aí, quando eu fui interrogado, eu achava que tinha estourado o motor do carro”, afirmou.
A explosão, além de ter matado o sargento Guilherme Pereira do Rosário, causou graves ferimentos a ele. O então capitão foi socorrido pela neta de Tancredo Neves, Andrea Neves, que estava no evento com o namorado Sérgio Vale. Mais de 20 mil pessoas assistiam ao show que reuniu grandes artistas da música popular brasileira, promovido pelo Centro Brasil Democrático (Cebrade), ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB).
A grande farsa do Riocentro
Segundo a denúncia do MPF, o planejamento da ação criminosa incluía a fabricação de provas para atribuir a grupos armados, que resistiam à ditadura, a autoria do atentado. A ação consistiria em explodir a casa de força do Riocentro para provocar um apagão e gerar pânico nos presentes. Além disso, três bombas seriam colocadas dentro do pavilhão, provavelmente no palco, para completar o clima de pânico e comoção. A ideia era não apenas detonar próximo aos artistas, mas que a explosão se desse no foco de atenção dos espectadores. Os militares também prenderiam inocentes, e o entorno do Riocentro teria placas e muros pichados com palavras de ordem e siglas de movimentos de resistência e militância contra o regime militar. Tudo praticado por agentes do Estado.
“Pretendia-se forjar um ‘ato terrorista subversivo da esquerda armada’, atribuindo o atentado a bomba falsamente a uma organização da militância contra o regime de exceção, e assim justificar um novo endurecimento da ditadura militar brasileira diante da ‘ameaça comunista’”, concluiu o MPF.
A investigação concluiu ainda que o atentado ao Riocentro começou a ser planejado um ano antes, no começo de 1980, pelo “Grupo Secreto”, do qual faziam parte civis e militares do DOI-Codi e do Serviço Nacional de Informações (SNI). “Com efeito, o caso do Riocentro enquadra-se num contexto muito maior de atuação da organização criminosa em dezenas de atentados no Brasil entre os anos de 1979 e 1981”, destacou o MPF.
Para a execução do atentado, segundo o órgão, a organização criminosa tinha um núcleo de planejamento e um núcleo operacional, do qual Wilson Machado fazia parte, de acordo com os procuradores.
A partir dos depoimentos e provas documentais levantadas, é possível afirmar que Machado era “peixe pequeno”, diante do aparato do grupo de extrema direita que tentava impedir o fim da ditadura militar.
O já falecido coronel de artilharia Alberto Carlos Fortunato, um dos líderes do “Grupo Secreto”, comentou sobre a participação de Machado no caso Riocentro em depoimento a José Argolo, Kátia Ribeiro e Luiz Alberto Fortunato, autores do livro Direita explosiva no Brasil:
“Quanto ao capitão, creio que ele atuou como coadjuvante na operação (que, bem-sucedida, interromperia o espetáculo, criaria pânico na assistência e desestimularia outras realizações do gênero), limitando-se a transportar o colega. Esse comportamento, embora não excludente de culpa, é o mais discutido e, ao que suponho, pode ter sido o motivo pelo qual ele não teve sua carreira interrompida e exerceu atividades como instrutor em unidades do Exército no Rio de Janeiro e aqui em Brasília”.