Uma legislação que deve gerar impactos em todo o país foi aprovada com urgência no fim de maio. No dia 31, durante o feriado de Corpus Christi, o governo federal sancionou a Lei 14.876, que tirou a silvicultura – isto é, o manejo e plantio de monoculturas de árvores para fins comerciais – da lista de atividades potencialmente poluidoras e utilizadoras de recursos ambientais. Em outras palavras, a lei retira a atividade da exigência de licenciamento ambiental para práticas como a plantação de eucaliptos para produção de madeira e papel.
Segundo a Agência Pública apurou, a sanção do presidente Lula (PT) pegou de surpresa grupos que negociavam com o governo sobre o tema.
“É mais uma boiada, e das grandes, e com o aval do governo federal”, critica o biólogo João de Deus Medeiros, representante de ONGs ambientalistas no Conselho Nacional do Meio Ambiente. Medeiros, que é professor de botânica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e foi diretor dos departamentos de Áreas Protegidas e Florestas do Ministério do Meio Ambiente, conta que estava preparando um texto para falar na tribuna livre cobrando o veto presidencial. “Isso é um absurdo. Aproveitaram o feriadão para publicar no DOU [Diário Oficial da União] sem muita repercussão”, avalia.
O presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, atribui a aprovação ao lobby de empresas que plantam árvores para fins comerciais. “O setor de silvicultura queria há muito tempo aprovar esse projeto de lei”, afirma.
À reportagem, Agostinho disse que o Ministério do Meio Ambiente e do Clima pediu o veto à lei, mas os ministérios do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC) e da Agricultura e Pecuária (Mapa) pediram a sanção. “Eles alegam que outras culturas agrícolas não possuem essa classificação. Alguns estados exigiam licenciamento de todos os plantios, mas, na maioria, apenas licenciamento de plantios com mais de mil hectares, como acontece em outras culturas”, observa Agostinho.
O presidente do Ibama explica que outro efeito da lei é a isenção da Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental —– uma cobrança feita pelo órgão de atividades que entra na categoria de potencialmente poluidoras ou utilizadoras de recursos ambientais. Com a nova legislação, o plantio fica de fora dessa cobrança.
Segundo a Pública apurou, essa tarifa já havia sido reduzida – e com um resultado positivo para as empresas. Desde 2016, os empreendimentos agrosilvopastoris, incluindo a silvicultura, têm desconto de 85% no pagamento da taxa. No ano passado, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) recolheu cerca de R$ 90 mil com a taxa, valor que, para o técnico do órgão Rafael Fernandes, é muito baixo devido aos impactos causados pelo negócio. “Para se ter uma ideia, o setor de geração de energia desembolsa cerca de R$ 5 milhões por ano”, estima Fernandes, que também é diretor do Sindicato dos Empregados em Empresas de Assessorias, Perícias, Informações e Pesquisas e das Fundações Estaduais do RS (Semapi).
No Rio Grande do Sul, o impacto ambiental da silvicultura é maior justamente nas regiões com campos nativos: do Pampa e nos Campos de Altitude, um ecossistema associado à Mata Atlântica. A crítica de ambientalistas é que o plantio de eucalipto e pínus em grandes áreas é danoso a recursos hídricos, agravando a erosão do solo, e diminui a diversidade de espécies vegetais e animais. Além disso, a plantação de eucaliptos frequentemente requer o uso de agrotóxicos. Há também o fato de que o pínus, uma das espécies mais plantadas, é considerado uma espécie invasora. No RS, 61% da silvicultura é de eucalipto; 30% de pínus e 9% de acácia e outras espécies, conforme levantamento da Secretaria da Agricultura.
No Rio Grande do Sul, ambientalistas e lobby da silvicultura se chocam há décadas
O professor de Botânica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Paulo Brack acompanha o debate sobre a regulamentação da silvicultura no estado há décadas. Como representante do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais no Conselho Estadual de Meio Ambiente [Consema], ele vem participando das negociações do Zoneamento Ambiental da Silvicultura (ZAS) – que são diretrizes para a atividade no estado – desde o início, em 2006.
“O ZAS foi um produto de alta qualidade, com debate entre a academia, órgãos do governo e ampla participação do setor”, recorda. Ele foi elaborado por técnicos da Fepam, em conjunto com a Fundação Zoobotânica e uma consultoria, a pedido do Ministério Público Estadual.
Depois de muito debate, o ZAS foi estudado na Câmara Técnica de Biodiversidade do Consema, definindo-se alguns limites para a atividade, a fim de considerar a realidade geológica e as condições da biodiversidade. Em áreas acima de mil hectares, a silvicultura teria que passar por licenciamento, com apresentação de Estudo de Impacto Ambiental (EIA/Rima). Outro parâmetro foi o estabelecimento de uma porção de terra, chamada de unidade de paisagem, em que se define um percentual de ocupação, que criaria um mosaico de plantios mais administráveis do ponto de vista de licenciamento e fiscalização.
“Mas esses dois conceitos foram derrubados, na avaliação do Consema, e foi aprovada uma proposta que gerou a criação de 108 áreas densamente plantadas, o que descaracterizou o estudo inicial apresentado. Isso tornou o licenciamento quase um procedimento subjetivo”, relembra a ex-diretora de qualidade ambiental da Fepam Ana Rosa Bered.
“O lobby foi tão forte que três presidentes da Fepam e três secretários de Meio Ambiente caíram por pressão do setor”, afirma Bered. Ela se refere à saída da presidência da Fepam de Renato Lauri Breunin, que foi substituído por Irineu Ernani Schneider e depois por Carlos Brenner de Moraes. Durante o governo de Yeda Crusius (PSDB), de 2007 a 2010, passaram pela Secretaria de Meio Ambiente (Sema) Vera Callegaro, Carlos Brenner de Moraes, Francisco Simões Pires, Berfran Rosado e Giancarlo Tusi Pinto.
Após essa dança das cadeiras, a presidência da Fepam passou para Ana Pellini, em 2007. Ela já ocupou diversos cargos no Executivo estadual e hoje está à frente da Secretaria de Parcerias da Prefeitura de Porto Alegre, que tem promovido privatizações no governo de Sebastião Melo (MDB).
Segundo Brack, sob a gestão de Pellini na Fepam as principais condicionantes relevantes da ZAS quase foram removidas, em uma decisão contestada na Justiça pelas entidades ambientalistas, que teve como resultado a Resolução do Consema 187 de 2008. Consultada pela reportagem, Pellini disse não se lembrar do fato e afirmou que depois essa resolução foi alterada pela 227 de 2009 e, recentemente, pela 498 de 2023.
Antes de a matéria ter sido apreciada, como havia pressão contrária a essa medida, técnicos da Fundação Zoobotânica formularam uma proposta que tentava conciliar interesses. A disputa foi judicializada e, em 2008, a 4ª Vara da Fazenda Pública anunciou que as propostas dos técnicos seriam acatadas no plano. O resultado, para a alegria dos ambientalistas, foi a aprovação da Resolução do Consema 227 de 2009, que reincorporou os pontos retirados pelo governo.
No governo de José Ivo Sartori (MDB), entre 2015 e 2018, foi estabelecido o processo de extinção da Fundação Zoobotânica, com Ana Pellini acumulando os cargos de secretária estadual de Meio Ambiente e presidente da Fepam. Em 2017, um decreto alterou o regimento da Fepam para retirar do Departamento de Licenciamento Florestal, da Secretaria do Meio Ambiente, a aprovação do manejo, da supressão de vegetação. Segundo fontes ouvidas pela reportagem, essa medida fragilizou o controle da silvicultura, pois a Fepam não contava com técnicos para esse tipo de fiscalização. A conclusão da extinção da Fundação Zoobotânica ocorreu em 2018.
Em 2020, um novo ZAS foi debatido na Câmara Técnica de Agropecuária e Agroindústria, onde estão os setores mais interessados na flexibilização das normas para monoculturas arbóreas. Em julho de 2022, um grupo de técnicos da Fepam divulgou uma nota alertando para os riscos do modelo que a Câmara Técnica havia aprovado. “Cobrei que a Fundação Zoobotânica fosse chamada, mas nunca nem responderam”, frisa Brack.
Em setembro do ano passado, o Consema aprovou a ampliação da área de plantio de 1 milhão para 4 milhões de hectares. O resultado foi a aprovação de um zoneamento mais permissivo à silvicultura, na visão dos ambientalistas e de alguns técnicos da Secretaria de Meio Ambiente.
“A história da interferência da silvicultura no governo talvez seja o melhor exemplo da intervenção do poder econômico na gestão ambiental gaúcha, que tem passado por cima dos interesses coletivos e da proteção do meio ambiente. No fim das contas, é uma história sobre corrupção moral”, critica o presidente da Associação dos Servidores da Sema (Assema), Pablo Pereira.
Para ele, o Consema segue a pauta estabelecida pelo empresariado. Pereira diz que os técnicos do quadro não são ouvidos, nem os pareceres são considerados pela atual administração.
Ele ainda acrescenta que as vagas destinadas ao corpo técnico da Secretaria do Meio Ambiente, na época da recente alteração do zoneamento da silvicultura, não estavam ocupadas por aqueles escolhidos pelo quadro de servidores, e sim por quem o governo decidia. “Essas decisões do Consema não representam a opinião dos técnicos, diferentemente do que o governo diz,”
Em resposta à reportagem, a assessoria de imprensa da Secretaria de Meio Ambiente do Rio Grande do Sul disse que “a sanção em esfera federal não significa implementação imediata da lei, visto que o Estado possui uma legislação ambiental mais restritiva. A possível retirada ou não da obrigatoriedade de licenciamento ambiental para a atividade de silvicultura será levada para a pauta no Consema”.
Atualmente, o secretário adjunto de Meio Ambiente e Infraestrutura, que preside atualmente as sessões do Consema, é Marcelo Camardelli, conhecido representante da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul). Quando foi anunciado para o cargo, pesquisadores e ambientalistas protestaram devido a sua relação estreita com setores empresariais.
PL teve tramitação apressada durante desastre no Rio Grande do Sul
A proposta que facilitou o licenciamento da silvicultura no Brasil foi originalmente apresentada em 2015 no Senado pelo Projeto de Lei 214, de autoria do senador Álvaro Dias (Podemos-PR). Depois, em 2022, foi remetido à Câmara dos Deputados, onde recebeu a designação de PL 1.366, tendo como relator final o deputado Covatti Filho (PP-RS). Em 9 de abril deste ano, o parecer do relator foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ).
No dia 7 de maio, durante o desastre climático no Rio Grande do Sul, o requerimento do deputado Doutor Luizinho (PP-RJ) solicitou urgência na tramitação do projeto. No dia seguinte, 8 de maio, ocorreu a votação, com aprovação em turno único, e a matéria foi enviada à sanção presidencial.
O presidente da Associação Gaúcha de Empresas Florestais (Ageflor), Daniel Chies, reconhece que o projeto de lei era uma antiga demanda do setor. Ele defende que a nova lei vai ajudar na “desburocratização” da atividade. “O PL veio no sentido de corrigir o equívoco histórico em nossa legislação que enquadrava a atividade como potencialmente poluente”, diz.
Já Medeiros avalia que a rápida sanção presidencial, num momento em que o Brasil inteiro está voltado a minimizar os prejuízos do desastre climático gaúcho, é a “explícita falta de sintonia de nossos administradores públicos com os interesses difusos da sociedade brasileira”. Ele aposta que a lei deve levar à judicialização e é um perigoso precedente na Política Nacional do Meio Ambiente.
A Associação Brasileira de Membros do Ministério Público (Abrampa) havia emitido uma nota, em agosto do ano passado, alertando para a inconstitucionalidade de vários pontos do texto, o que geraria batalhas judiciais intermináveis e, especialmente, agravos ambientais sem precedentes.
O documento, assinado pelo presidente da Abrampa, Alexandre Gaio (MPRJ), Ana Maria Marchesan (MPRS) e Carlos Alberto Valera (MPMG), salienta que o PL considerou apenas os aspectos positivos da atividade, deixando de lado as recomendações dos cientistas. A lei sancionada por Lula “viola a legislação nacional e internacional a respeito da proteção da biodiversidade, em especial o Decreto Federal 4.339/02, que regulamenta a Convenção Internacional sobre Diversidade Biológica”, aponta a manifestação.
Um dos aspectos levantados pelos especialistas é o grande consumo de água que espécies como eucalipto demandam, o que pode agravar as consequências da estiagem. O próprio estado do Rio Grande do Sul frequentemente sofre com a distribuição irregular de chuvas. Só no biênio 2022 e 2023, 393 municípios declararam situação de emergência por estiagem, conforme a Defesa Civil gaúcha.
Ana Marchesan, coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente do MPRS, entende que o momento exige mais precaução. Devido à sensibilidade ambiental do estado diante da crise climática, ela acrescenta que esse assunto já foi levado adiante por uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF), que questionou diversos dispositivos do Código Estadual de Meio Ambiente, inclusive o artigo que altera a lei estadual de política florestal e que dispensa de licenciamento plantios conforme o tipo de árvore de 30 ou de 40 hectares. “Entendemos que o Estado pode ser mais exigente” defende.