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Os números são do Atlas da Violência: 104 mil crianças e adolescentes de 0 a 19 anos foram assassinados entre 2012 e 2022, 81,5 % deles por armas de fogo. As armas estão presentes em 20% dos homicídios de bebês (0 a 4 anos); em 70,2 % dos crimes contra crianças de 5 a 14 anos; e em 83,8% dos assassinatos de adolescentes de 15 a 19 anos.
O impacto da liberação das armas nesses números é evidente não apenas por facilitar os crimes domésticos e tiroteios (que causam a maior parte dos assassinatos de crianças e adolescentes até 14 anos), mas também por fornecer armas para os delinquentes: uma pesquisa do Instituto Sou da Paz de 2022 mostrou que mais da metade das armas mais usadas em crimes têm origem legal.
Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrou que, antes de ser destruído pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, o Estatuto do Desarmamento, que se tornou lei em 2004, evitou 197 mil mortes em 15 anos. Uma iniciativa que, à época, entusiasmou líderes políticos evangélicos como Silas Malafaia, que não apenas participou da mobilização, mas se declarou “a favor de Bolsonaro e contra as armas” na campanha eleitoral de 2022, depois de provocado pela campanha de Lula.
Por que, então, católicos como a deputada Chris Tonietto e evangélicos como Sóstenes Cavalcante, ambos do PL do Rio de Janeiro, que encabeçaram a ofensiva contra o aborto legal a pretexto de defender a vida, integram a chamada “bancada da bala” no Congresso Nacional?
Fiz essa pergunta sobre o assunto a uma autoridade, o teólogo Ronilso Pacheco, diretor de programas do Instituto de Estudos da Religião (Iser), que integra o Conselho Consultivo da Agência Pública. A resposta passa por Jair Bolsonaro que impulsionou a pauta das armas entre os cristãos, sobretudo os evangélicos.
“Bolsonaro oferta o nacionalismo cristão, com uma influência grande dos pastores americanos conservadores, há pastores expressivos que são membros da NRA [National Rifle Association of America]. Uma pauta que ganhou adesão no campo reformado [protestantes históricos] e aos poucos se incorpora ao vocabulário das igrejas pentecostais e neopentecostais no Brasil”, explica.
Ou seja, é uma pauta mais política do que religiosa, em que “se bebe mais na fonte da CPAC [Conservative Political Action Conference] do que na Bíblia”, como define a colega Cecília Oliveira, fundadora do Intercept e do Fogo Cruzado – iniciativa que monitora a violência armada nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e do Recife.
“Crente não se importava com isso, não, tinha outras preocupações”, diz a jornalista. “Isso vem do conservadorismo político, com aquela ideia do pai provedor que tem que proteger a família, e faz essa conexão entre armas e religião”, analisa.
Cecília Oliveira faz questão de destacar a adesão à pauta armamentista – e ao PL contra o aborto legal – também dos católicos conservadores. “Uma das manifestações mais antigas no Brasil unindo armas e religião é do ex-deputado Peninha [Rogério Peninha de Mendonça – MDB-SC], um católico que colocava a arma em cima da Bíblia e apresentou, faz tempo [2012], um PL para revogar o Estatuto do Desarmamento”, diz. “Hoje tem padre influencer com arminha na mão e a bancada católica sempre esteve ali”, comenta.
O ativismo político da bancada evangélica e a união do campo conservador – em que as bancadas do boi, da Bíblia e da bala se juntam para aprovar projetos guiados por interesses privados e frequentemente ilegais –, acabam expondo esses fiéis, sem atentar para o uso político da religião, muitas vezes à revelia do rebanho.
Até porque a maioria dos integrantes da bancada evangélica do Congresso vem de grandes igrejas, e não dos pequenos templos, “as igrejas de bairro”, que acabam tendo uma influência muito maior entre as comunidades evangélicas.
“O povo evangélico verbaliza muito pouco sobre as lideranças, contrapor-se a elas seria visto como rebeldia, mas no privado é outra coisa. Eles podem ser até contra o aborto mas não vão dizer para uma mulher de sua comunidade que fez um aborto, ‘você é uma criminosa’. Eles também sabem fazer o jogo, mas tem intimidade com Deus. O pastor diz, ele ouve, mas decide no privado”, explica Ronilso.
Um alerta importante para políticos que não se afinam com o CPAC, mas adulam lideranças evangélicas no Congresso e para os jornalistas incautos que insistem em usar “evangélicos” em títulos sem a precaução de diferenciar políticos e bancadas dos seguidores da religião.
São os políticos de extrema direita que apoiam projetos de lei que prejudicam mulheres e meninas e defendem com argumentos religiosos o porte indiscriminado de armas que mata crianças e adolescentes. Rotulá-los como evangélicos é colocar mais água no moinho deles.