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A inteligência artificial tem sede – e está de olho no Brasil

Big Techs buscam lugares para construir data centers, que consomem muita água e energia

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30 de julho de 2024
06:00
Ouça Natalia Viana

Natalia Viana

30 de julho de 2024 · Big Techs buscam lugares para construir data centers, que consomem muita água e energia

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A história se repete. Assim como no caso da Lei das Fake News (PL 2.630/20), a proposta de regulamentação da inteligência artificial (PL 2.338/23) foi adiada já três vezes na Comissão Temporária sobre Inteligência Artificial do Senado, criada pelo presidente Rodrigo Pacheco apenas para esse fim. As coincidências não acabam aí. Também houve assédio online contra quem se colocou a favor da regulamentação, bolsonaristas disseram que a proposta seria algum tipo de censura. Além disso, a falta de votação beneficia as mesmas empresas, sim, as Big Techs.   

No caso da lei de regulamentação de IA, quem melou a votação, agendada para ocorrer em 9 de julho, foi a Confederação Nacional da Indústria (CNI). A CNI resolveu boicotar o projeto de lei alegando que o Brasil iria perder a competitividade e investimentos e corria até “risco de sofrer um isolamento e atraso tecnológico”. A CNI, ecoando as Big Techs, ainda afirmou que não houve discussão ampla sobre o tema. 

Para quem estava atuando diretamente na negociação, o pronunciamento de 18 páginas publicado pelo CNI foi um choque – afinal, as Big Techs e a própria CNI foram ouvidas ao longo de dois anos, houve 14 audiências públicas, um seminário internacional, mais de cem manifestações de especialistas e dezenas de emendas parlamentares. 

Segundo apuração da jornalista Patrícia Campos Mello, as Big Techs teriam ameaçado não trazer seus data centers para o Brasil caso a lei fosse aprovada.

De fato, quem leu o documento da CNI encontrou uma perspectiva aterradora – que beira um escândalo. Segundo ele, o Brasil tem dois grandes diferenciais competitivos para IA:  “O tamanho e a heterogeneidade da população, que pode alimentar com informações as bases de dados que treinam as aplicações de IA generativa”, e a matriz energética “impa, segura, barata e abundante” para “atender à demanda dos data centers”. 

Acontece que, desde o lançamento do ChatGPT, começou uma verdadeira corrida do ouro para a construção destes centros de processamento de dados, em locais com acesso aos recursos naturais que são necessários para eles funcionarem: energia barata – e de preferência renovável – e água. Muita água. 

Isso porque a IA processa muito mais dados para cada resposta que envia do que, por exemplo, o algoritmo de busca do Google. Para se ter ideia, entre 2021 e 2022, quando a Microsoft abraçou a OpenAI, seu consumo de água aumentou em 34%. A sede por água é acompanhada pela demanda por energia – tanto que Sam Altman, CEO da OpenAI, alertou para uma “crise energética catastrófica” e sugeriu um plano de investimento massivo em energia nuclear.  

A corrida por novos data centers tem movimentado até o mercado imobiliário norte-americano. Vale ler este elogioso artigo do site Market Watch, por exemplo, descrevendo que, agora, as áreas mais hot para empreendimenros comerciais “não estão em Manhattan ou Miami. Em vez de hotéis elegantes ou torres de escritórios reluzentes, os novos queridinhos do setor são os data centers, que consomem muita energia, frequentemente localizados em lugares como o norte da Virgínia; Columbus, em Ohio, e Salt Lake City”. Especialistas consultados pelo site afirmam que há mais investimentos indo para data centers do que para qualquer outro tipo de construções, como hotéis ou hospitais. 

Claro que os olhos se voltam para a América Latina, e em especial para o Brasil, que possui 12% da água doce do mundo e uma matriz energética considerada limpa. Abundam pela internet relatórios de mercado demonstrando como a América Latina é o local ideal para a construção dessas infraestruturas.  Chile, México e Brasil são os principais centros “devido às suas localizações estratégicas, infraestrutura robusta e políticas governamentais favoráveis”, como aponta este relatório da consultoria Helmi.

Nada disso ocorre sem um enorme impacto social e ambiental. No Uruguai, o Google planejava construir um data center em um terreno de 29 hectares em Montevidéu, mas protestos eclodiram na capital quando houve uma seca que durou meses. O projeto teve que ser reformulado pela empresa, incluindo refrigeração por ar, e não por água, para ser aprovado. No Chile, a Justiça suspendeu outro projeto de um data center em Cerrillos, área central do país, que previa o uso de 169 litros de água por segundo. 

Aos poucos, outras comunidades começam a questionar o uso dos recursos naturais para servir às sedentas máquinas de IA – que, claro, atendem muito mais a consumidores do Norte Global que às populações locais. 

No estado mexicano de Querétaro, já há dez data centers em funcionamento, e planos para outros 18, segundo Ana Valdivia, especialista em inteligência artificial do Instituto para Internet da Universidade de Oxford, disse ao site Mongabay. Um dos principais investidores é a Microsoft, que promete “acelerar a transformação digital do México” ao oferecer “para todas as organizações em todo o mundo, acesso local a serviços em nuvem escaláveis, altamente disponíveis e resilientes”.

Com a emergência climática, o estado mexicano está sob risco de seca – e boa parte da sua população já tem que caminhar horas para encontrar água. Segundo Ana Valdivia, “os centros de dados estão extraindo água potável para seus negócios econômicos”, enquanto os moradores “têm que caminhar quase um dia para regar seus feijões”. 

(Aliás, para quem nunca viu um data center: é algo pavoroso, digno de filme de ficção científica, fileiras e fileiras de hardwares cercados de sistemas de resfriamento, com pouquíssimo trabalho humano envolvido, uma infinidade de máquinas, sozinhas, consumindo energia e água enquanto processam todas as perguntas da humanidade.

Voltemos ao documento da CNI, uma peça que poderia figurar num museu do entreguismo nacional.

Uma das maiores discordâncias das Big Techs e do CNI sobre a lei proposta pelo Senado é o fato de que ela prevê pagamento para uso de conteúdo que tem copyright para treinamento de IA. A ideia é não permitir que ferramentas como ChatGPT usem e abusem do fruto do nosso trabalho, para depois lucrar com ele sem recompensar os autores. 

Daí aquele item sobre sermos uma nação grande e diversa que pode alimentar as maquininhas de IA preditiva. Apesar da LGPD apontar no sentido oposto, parece que os donos da indústria estão contentes em vender os nossos dados bem baratinho – ou melhor, de graça. 

Essa é apenas uma das preocupações que fizeram a lei adotar uma filosofia “principiológica” em vez de prescritiva: como não se sabe o que ainda se vai inventar no campo da inteligência artificial, estabelecem-se princípios ao desenvolver tais ferramentas. E, a isso, a CNI respondeu no texto do seu pronunciamento da seguinte maneira: “O modelo regulatório sui-generis voltado para direitos do cidadão leva à insegurança jurídica”. 

Nada de novo sob o sol, por mais que se escondam sob novos termos coo ESG, “economia descarbonizada” e , agora, powershoring – termo que significa que empresas estão terceirizando suas plantas e data centers para países onde a energia é “limpa”, bem localizada, mas, principalmente, barata.   

Afinal, se nossa natureza, nossos recursos, nosso trabalho, nossos corpos valem muito menos do que dos trabalhadores do Norte, assim também será com nossos dados. 

É a boa e velha Macondo de sempre, já diria o escritor Gabriel García Márquez. 

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