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Diretor do combate à invasão garimpeira defende que Starlink compartilhe dados para facilitar identificação de garimpos

Reportagem
4 de julho de 2024
04:00

Antenas produzidas pela Starlink, a empresa de comunicação via satélite do bilionário sul-africano Elon Musk, se espalham pelos garimpos ilegais na Terra Indígena Yanomami, em Roraima, facilitando a atividade do crime organizado e dificultando as operações de repressão aos crimes ambientais. O governo federal já apreendeu, desde março, um total de 50 antenas em poder dos garimpeiros.

O número se refere apenas às apreensões registradas após o início das atividades da Casa de Governo, instalada pelo governo federal em março passado na cidade de Boa Vista como uma estratégia para coordenar e centralizar as ações contra a invasão do território. Em maio último, o Ibama divulgou ter apreendido, em todo o país, outras 32 antenas Starlink em garimpos ilegais do início de 2023 até março de 2024. Desse total, nove foram encontradas na terra Yanomami. 

Por que isso importa?

  • A Starlink detém dados preciosos que permitiriam identificar e localizar envolvidos no garimpo ilegal em terras indígenas, o que poderia facilitar as ações de combate na região.

No início do ano passado, o governo federal desencadeou operação contra o garimpo no território Yanomami junto com uma declaração, pelo Ministério da Saúde, de uma emergência sanitária.

“O Ibama fez muita apreensão, há um depósito cheio dessas antenas e outros utensílios apreendidos em 2023. Agora, a partir da instalação da Casa de Governo, temos um painel para centralizar as informações e sabemos que foram apreendidas 50 antenas desde março último”, disse, em entrevista à Agência Pública, o diretor da Casa de Governo, Nilton Luís Godoy Tubino.

A Pública indagou a razão pela qual as antenas são tão visadas pelo esquema do garimpo ilegal.

“A Starlink hoje tem um papel fundamental na comunicação entre os garimpeiros e as suas bases fora do território indígena e vice-versa. Em boa parte da região em que fazemos as operações de desintrusão, não existe sinal de celular. Dentro da terra indígena, não há. Fora, nas cidades do entorno, há dificuldade de utilizar telefone celular e internet, por isso os garimpeiros buscam locais onde há conexão de wi-fi, como postos de gasolina. Com a chegada da Starlink, isso mudou totalmente.”

Além de tornarem mais ágil a cadeia de suprimentos, os garimpeiros agora recebem informações importantes sobre operações do governo em andamento. Há poucos dias, contou Tubino, quando garimpeiros foram levados presos à Polícia Federal já havia todo um grupo de advogados à espera na delegacia.

Para Tubino, a Starlink poderia colaborar com as operações de retirada dos invasores se compartilhasse a localização das suas antenas dentro da Terra Indígena Yanomami. A geolocalização permitiria um mapeamento da presença dos garimpos ilegais. Muitos garimpos passaram a operar à noite, com medo da fiscalização. Isso leva pilotos da Força Aérea a se arriscarem a fazer voos noturnos.

“Por livre e espontânea vontade, acho que ela não consegue [compartilhar suas informações]. Mas que seria importante, seria. É uma informação importante para a gente [saber] o que está dentro ali [no território]. A gente está esperando um pouco para saber qual é o encaminhamento que a AGU pode fazer.”

Segundo Tubino, a Advocacia-Geral da União (AGU) tem avaliado “uma forma de ver como a Anatel [Agência Nacional de Telecomunicações] pode conseguir as informações” da Starlink. “Nosso pessoal, desde o mês passado, já tinha levantado essa questão junto à AGU para eles fazerem uma discussão, analisar tecnicamente como é que poderia se pegar ao menos as coordenadas desses locais, que a empresa poderia fornecer.”

Antes da chegada da Starlink à terra Yanomami, no final de 2022, os garimpos usavam antenas de outras empresas. Eram equipamentos maiores, mais pesados, difíceis de transportar e cujo sinal de comunicação oscilava muito. Por isso, era mais rara a presença, no território, desse tipo de material.

Hoje, o transporte, a operação e a eficiência das antenas Starlink atendem aos objetivos imediatos dos garimpeiros. Já houve apreensão de antenas Starlink até em barcos na terra Yanomami, segundo Tubino. Antenas móveis são comercializadas pelo site da empresa por R$ 2 mil e uma mensalidade de R$ 280, fora os impostos. Antenas estáveis são oferecidas pela empresa a R$ 1,7 mil, mais uma mensalidade de R$ 184.

No ato da aquisição da antena, o comprador precisa fornecer um número de CPF (Cadastro de Pessoa Física) ou de CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica). A Pública apurou que a Polícia Federal tem feito investigações para identificar tanto vendedores quanto compradores das antenas que acabaram apreendidas em garimpos ilegais na terra Yanomami.

Mudança de estratégia no combate

Com a experiência acumulada em quatro operações de retirada de invasores em diferentes terras indígenas no Brasil desde 2012, o gaúcho Nilton Tubino, 63, foi escolhido em fevereiro como diretor da Casa de Governo em Roraima. Ele é lotado na Casa Civil, em Brasília, mas se mudou para Boa Vista em fevereiro.

A ativação da Casa de Governo foi uma decisão tomada pelo governo após uma reunião ministerial convocada no início deste ano pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que se mostrou contrariado com o alto número de óbitos de indígenas e com a continuidade dos garimpos ilegais no território Yanomami, apesar de uma queda expressiva na atividade após a primeira deflagração da operação, em fevereiro de 2023.

Com o início das suas atividades no prédio da antiga Funasa de Boa Vista, a Casa de Governo agora coordena as ações de retirada dos invasores, hoje desencadeadas por Ibama, Polícia Federal e Forças Armadas com o apoio da Força Nacional e da Funai. Até então, os diversos órgãos públicos envolvidos na operação atuavam de forma descoordenada e descontinuada.

Estratégias foram aperfeiçoadas ou criadas. A destruição das pistas clandestinas de pouso dentro e fora da terra indígena, por exemplo, passou a ser feita com máquinas retroescavadeiras que abrem valas no chão. A mera dinamitação das pistas não fazia mais efeito porque os garimpeiros rapidamente tapavam os buracos e retomavam os pousos e decolagens.

Isso fez com que os garimpeiros passassem a usar mais helicópteros no lugar dos aviões. O governo tem localizado e destruído esses helicópteros, disse Tubino. “Vamos criando dificuldades para eles saírem do território. A gente destruiu nos últimos dias, nesse último mês, de quatro a cinco helicópteros. Eles estão tentando usar helicópteros porque já conseguimos limitar o uso das pistas. Eles começam a se adaptar. E a gente também está se adaptando.”

Agências reguladoras como a Anac (aviação), a ANTT (transportes terrestres) e a ANP (petróleo) intensificaram a fiscalização da compra e venda de combustíveis, o principal item que permite a continuidade dos garimpos ilegais, tanto para o transporte aéreo quanto para o funcionamento de dragas. Os aviões clandestinos também levam para dentro do garimpo alimentação que permite a continuidade da atividade.

Os garimpeiros têm recorrido também a mais quadriciclos, que, por sua vez, passaram a ser apreendidos e destruídos com mais frequência.

Tubino disse que a estratégia é intensificar a atuação nas duas frentes ao mesmo tempo: dentro e fora do território indígena. Ele estima a atividade de cerca de 500 servidores públicos em revezamento nos esforços de desintrusão da terra indígena, sem contar o pessoal do Ministério da Saúde.

“Aqui você tem que casar as duas coisas. Tem que combater o garimpo dentro, mas tem que dobrar o apoio logístico ao garimpo. Se a gente não conseguir sufocar o apoio logístico dentro do garimpo, o efeito dentro do garimpo é muito provisório. Porque tu vai lá, destrói algumas coisas, [porém] são repostas de novo. Mas se tu conseguir, cada vez mais, criar dificuldade pra esse apoio entrar pra dentro do território, tu vai obrigando a pessoa a sair. A gente teve um dia desses o relato de que alguns garimpeiros que foram presos estavam passando fome dentro da terra. 

O estrangulamento da atividade garimpeira está tornando a vida mais difícil e cara para os garimpeiros dentro do território.

“A vida só vai ficar mais difícil lá dentro. A nossa parte, a gente não vai recuar. Só vai ampliar o patrulhamento e as operações. […] Um garimpeiro detido por esses dias disse que ele estava há cinco meses sem receber salário. Ele estava tentando juntar um ouro pra ir embora. É um indício de que os custos estão ficando muito altos. Assim, o pessoal de inteligência já levantou isso. Hoje, pra você entrar na terra, levar comida por barco, o pessoal avalia que está em torno de R$ 25 mil.”

O governo detectou que muitos garimpeiros estão se mudando para extrair minério na Guiana.  

A presença dos órgãos públicos da União dentro da terra Yanomami agora também se intensificou. Segundo Tubino, foram ativadas duas bases em locais estratégicos do território e postos de saúde estão sendo reconstruídos. O patrulhamento nos rios também tem sido intensificado, segundo Tubino.

O diretor da Casa de Governo disse que a operação de desintrusão tem avançado, mas não vai acabar a curto prazo.

“A gente está caminhando. Não é um horizonte fácil. Ainda mais agora, com o período de chuvas [começando]. Há dias em que você consegue voar, há dias em que não. Mas a gente está conseguindo fazer, no mínimo, três vezes por semana uma operação dentro da terra indígena. Com a Polícia Federal, com o Ibama, com as Forças Armadas.”

Antropóloga vê necessidade de mapeamento

A antropóloga e pesquisadora Flora Dutra, fundadora da startup Nave Global, participa de um projeto que já levou 24 antenas Starlink para comunidades indígenas em aldeias na Terra Indígena Vale do Javari e uma para a terra Yanomami. Os equipamentos foram doados pela norte-americana Allyson Reneau, que Dutra descreve como uma filantropa interessada em auxiliar nos sistemas de comunicação dos povos indígenas da Amazônia.

Para Dutra, se bem utilizadas, as antenas Starlink configuram uma alternativa positiva de comunicação em favor dos indígenas. Podem ajudar na própria fiscalização do território e em atividades de saúde e educação, por exemplo.

Dutra vê a necessidade de estabelecer um sistema de controle que permita identificar todas as antenas autorizadas pela própria comunidade indígena a operar dentro de uma terra indígena. Qualquer antena que fosse acionada no território e não aparecesse nos registros da comunidade automaticamente seria identificada como de um invasor. As informações seriam repassadas às autoridades competentes para fiscalização e investigação.

Dutra contou ter procurado a Starlink para iniciar um diálogo em torno de um projeto conjunto, mas não recebeu resposta.

“A gente está lutando para isso. Se a gente conseguir produzir protocolos integrados com a Starlink, se todos os pontos estiverem cadastrados nos sistemas dos próprios territórios indígenas, ficaria mais fácil mapear os que não estão.”

A Pública procurou o representante da Starlink no Brasil, mas não houve resposta a um pedido de contato por e-mail.

Edição:
Bruno Mancinelle/Casa de Governo
Bruno Mancinelle/Casa de Governo
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Bruno Mancinelle/Casa de Governo
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