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Povo venezuelano foi forçado a deixar seu país e vive história de resiliência e invisibilidade no Brasil

Reportagem
9 de agosto de 2024
04:00

Não há mais 305 povos indígenas no Brasil. Desde a segunda metade da década de 2010, um novo povo passou a integrar o conjunto de etnias brasileiras: os Warao, o povo da canoa. Forçados a deixar seu país de origem, a Venezuela, pela situação de grave e generalizada violação de direitos humanos ali vivida, 9 mil indígenas migraram para o Brasil desde 2016, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Destes, 7 mil são Warao. No total, 7,7 milhões de venezuelanos deixaram seu país desde o início da crise humanitária.

“Contávamos 305 povos indígenas e agora temos 306 com os Warao que já estão nascendo aqui e passam a ser indígenas brasileiros”, afirmou Sonia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas (MPI), em entrevista à Agência Pública. Quase metade da população indígena venezuelana no Brasil é composta por crianças e adolescentes, de acordo com o Acnur. Os altos índices de pobreza, inflação e escassez de alimentos e medicamentos no país de origem justificam a migração forçada. 

Com suas raízes ancestrais espalhadas ao longo do delta do rio Orinoco, no noroeste da Venezuela, a etnia Warao é diversa em suas formas de organização social e costumes, mas compartilha uma língua comum, também chamada warao. O nome significa “povo da canoa”, refletindo seu uso histórico dessa embarcação como principal meio de transporte. Atualmente, totalizam cerca de 49 mil indivíduos em seu país de origem, sendo a mais antiga comunidade da Venezuela caracterizada por suas habilidades em pesca e agricultura. 

Desde o início da colonização até o século XVIII, os Warao incorporaram à sua sociedade outros povos que fugiam do massacre colonial, intensificando sua diversidade interna e influenciando suas práticas culturais. Agora chegam ao Brasil e se unem aos povos originários nacionais em sua luta por território. 

“Queremos ter um lugar onde possamos fazer rituais, cantar, dançar, um lugar que tenhamos para fazer artesanato, para semear e, sobretudo, para produzir. Nós, como povo indígena, temos sido milenarmente autônomos”, explicou o cacique Aníbal Pérez, que é professor e chegou ao Brasil junto a sua família em 2016. Ele considera que é necessário reconhecer a nova etnia: “Já existe Warao brasileiro”. Como muitos migrantes, Pérez já passou por vários estados desde que entrou no Brasil pela fronteira de Roraima. Hoje vive em Alagoas.

Por que isso importa?

  • Indígenas do povo Warao emigraram em peso para o Brasil e necessitam de acolhimento específico que respeite seus direitos e costumes tradicionais.

Em março deste ano, os Warao conquistaram uma importante vitória: a concessão de um terreno de 35 mil metros quadrados pela prefeitura de Cuiabá, no Mato Grosso, a 52 famílias. No local, os indígenas poderão exercer sua autogestão, viver conforme seus elementos culturais e éticos e resolver seus próprios conflitos de forma autônoma. O terreno simboliza não apenas um novo lar, mas a inclusão do povo nas políticas públicas municipais.

“Queremos ser os protagonistas de nossas histórias e vidas. Nós mesmos contamos nossas próprias histórias, porque o não indígena tem muito que aprender e conhecer de nós. É isso que estamos fazendo, abrindo e construindo caminhos, porque já faz muito tempo que estamos sendo tutelados. Nós, os líderes indígenas, projetamos a nossa liberdade”, acrescentou o cacique Warao.

Apesar de a Constituição Federal assegurar aos povos originários o direito de manutenção de seus estilos de vida, línguas, crenças e tradições, o caso de Mato Grosso é uma exceção. A falta de um lugar digno para morar em outras cidades brasileiras tem levado os venezuelanos a se instalarem em abrigos, ocupações e casas precárias ou nas ruas, sob viadutos e nas proximidades dos terminais rodoviários. Nesses espaços, enfrentam uma série de dificuldades, como a falta de água potável, comida, atendimento à saúde e medicamentos, além de serem alvo de violência e xenofobia. 

Invisibilizados pelas políticas públicas e ações humanitárias, à margem das estatísticas dos fluxos migratórios, os indígenas venezuelanos deslocam-se invisíveis e silenciosos pelo Brasil, mas carregam consigo histórias de profunda resiliência, esperança e luta pela sobrevivência. Mesmo depois do deslocamento forçado e das longas jornadas enfrentadas, o povo resiste para manter seus costumes, língua, crenças e relações milenares. Longe de seu país de origem, travam uma batalha diária pelo direito ao território e por uma vida digna.  

Dificuldades de um novo recomeço no Brasil

O Brasil se tornou um dos países mais procurados pelos refugiados Warao, que entram pela fronteira terrestre da cidade de Pacaraima, em Roraima. Há registros da presença desses povos desde 2014, em especial em estados do Norte do país, como Roraima, Amazonas e Pará, ainda que estejam espalhados por várias unidades federativas. Trazendo consigo uma diversidade cultural, linguística e habilidades originárias, o fluxo migratório venezuelano enriquece a cultura brasileira. 

O cacique Iván Torres Morales mora no Brasil há quatro anos. Ele partiu do município de Antonio Díaz, no estado do Delta Amacuro, na Venezuela. Agricultor e pescador, trabalhava cultivando a terra e vendia verduras e frutas para sustentar sua família. “Não podemos voltar para a Venezuela, a situação lá é muito difícil. Eu e minha família vamos permanecer no Brasil, [mas] precisamos construir nossas casas”, afirmou.

Torres vive atualmente em uma barraca de lona em uma ocupação na cidade mineira de Betim, a Retomada Terra Mãe, onde faltam comida, apoio médico e estrutura e sobram violência e insegurança. “Nos alimentamos quando saímos para pedir na rua e, com a ajuda que recebemos, conseguimos comprar comida”, explicou o cacique em espanhol. De acordo com ele, que também fala warao, as barreiras linguísticas e culturais dificultam a busca por emprego. 

Assim como no caso de Iván Torres, algumas entrevistas feitas para esta reportagem foram conduzidas em espanhol ou warao, para que os migrantes se expressassem da forma mais confortável possível. 

“Não temos trabalho, por isso estamos vivendo assim”, explicou o artesão Raumir Pedrosa, que mora na retomada há alguns meses. Para viver, ele depende da venda de artesanatos, mas não tem conseguido fabricar os produtos, pois “falta material”.

“Minha família é grande, somos sete pessoas, e ainda não temos barracas aqui, estamos morando na barraca de um parente. Eu quero morar aqui porque meus filhos estão estudando na escola, e por isso quero construir uma casa para viver com nossa família. Queremos uma terra para viver”, explicou Nino García, que chegou no Brasil há um ano. 

Daybellis Yurimar Villalba, que também vive no local, destacou que “muitos da comunidade sofrem com doenças como gripe e diarreia, mas enfrentam dificuldades para acessar medicamentos essenciais nos serviços de saúde”, pois “não têm dinheiro”. Villalba afirmou que seu povo “tem uma saúde frágil”, que se agrava em períodos frios e chuvosos, quando a falta de infraestrutura deixa todos expostos a enfermidades. “Precisamos de casas dignas para enfrentar o inverno rigoroso e proteger nossas crianças”, defendeu.

De acordo com Villalba, a princípio, o grupo recebeu apoio de alguns órgãos estatais, como o Ministério Público, a Defensoria do Estado de Minas Gerais e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), em especial para matricular as crianças e adolescentes na escola – sem um comprovante de endereço, as instituições não aceitavam as matrículas. “Mas, além disso, é uma rede de apoio vazia e sem continuidade”, desabafou. 

Cleiton Rattia Quinones, por exemplo, convive com “muita dor nas pernas e pés inflamados”, após ter passado muito tempo “pedindo ajuda na rua”, quando viveu em Mossoró, no Rio Grande do Norte. “Estou [há] um ano assim, tomando medicamento. O dia que não tomo, a dor volta. Decidimos vir para Betim e queremos ficar aqui, construir uma casa, trabalhar a terra… Deus vai nos ajudar”, disse. Já María de Los Angeles resolveu buscar um novo futuro na retomada após ter perdido um filho por fome na Venezuela. “Por isso decidi sair do meu país”, afirmou. 

A Retomada Terra Mãe se iniciou em 7 de setembro de 2023, quando os Warao se uniram a indígenas brasileiros Ticuna e ocuparam menos de 1 hectare de um terreno registrado em nome de um empresário local. A área já havia passado por uma ocupação em 2014, mas o proprietário conseguiu a reintegração de posse na Justiça. Os indígenas defendem que o terreno seguia sem uso passados nove anos da reintegração, o que os motivou a lutar por um novo começo ali. 

Hoje as 23 famílias indígenas da retomada vivem em barracas de madeira e lona confeccionadas por eles próprios, em um espaço com condições precárias e subumanas, com acesso mínimo à infraestrutura e saneamento e um entorno repleto de lixo. O local também é palco de conflitos com alguns não indígenas, que tentam expulsar os Warao da região por meio de ameaças e abordagens violentas. 

O drama nos abrigos 

Muitas das famílias que vivem na retomada em Betim já passaram pelos abrigos, principal estrutura de recebimento dos migrantes no Brasil. Entretanto, a experiência de acolhimento nesses locais tem se mostrado pouco eficaz e culturalmente insensível às necessidades das comunidades de encontrar um novo lugar para recomeçar, em que possam preservar suas tradições e promover sua autossuficiência. 

O cacique Santo Tovar e sua família, por exemplo, viveram alguns meses em um abrigo na capital mineira. Em entrevista à Pública em 14 de abril deste ano, ele denunciou que a estrutura do local não comportava as famílias numerosas e que os abrigados tinham que conviver com vazamentos de água e esgoto. 

“Estamos cansados de ser maltratados. Eles tentam nos manter debaixo dos pés deles. Não podemos viver mais aí, não somos uns animais, somos humanos, temos autonomia, somos indígenas Warao”, disse. Ele afirmou que havia solicitado à prefeitura que emprestasse “um terreno para construir casas para as famílias” que viviam no abrigo, mas não obteve retorno. 

Poucos dias depois, em 22 de maio, Tovar e sua família, composta por quatro adultos e cinco crianças, foram expulsos por 15 dias do abrigo por conflitos internos. A reportagem conversou com o cacique no centro de Belo Horizonte. Seus familiares, sentados na calçada, seguravam seus pertences e buscavam uma forma de ir até a retomada para que não tivessem que dormir na rua. 

Ainda assim, o cacique considera que vive “um pouco melhor” no Brasil do que na Venezuela. “Lá a situação está muito complicada, muita carência, sofrendo de fome, de [falta de] roupas, de medicamentos e atendimento médico”, afirmou naquele dia.

Tovar e sua família conseguiram voltar para o abrigo em 6 de junho, mas foram desligados definitivamente no dia 25 do mesmo mês e hoje moram na ocupação em Betim. O abrigo em questão fica no bairro Serrano da capital e é administrado pela Cáritas-MG, que passou a ser a única organização a receber os Warao após a finalização do convênio da prefeitura com o Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (SJMR Brasil) por denúncias de violações de direitos humanos.

“Os governos federal, estadual e municipal criaram vários abrigos. Entendemos e estamos conscientes que foram criados para solucionar problemas emergenciais, não para que os povos indígenas, migrantes e refugiados ficassem morando por tempo indeterminado”, explicou o cacique Warao Aníbal Pérez. 

“A população não precisa de mais abrigo, não precisa de mais estruturas físicas de encerramento delas dentro do espaço padrão. Elas precisam ter terra, que elas possam se organizar nesse território, exercer a sua capacidade de autogestão e o direito de viver com seus elementos culturais e étnicos”, afirmou o especialista Marcelo Lemos, que pesquisa a mobilidade do povo Warao no Brasil em seu doutorado na Universidade de Brasília (UnB). 

As condições insalubres de alguns abrigos e casas onde os migrantes são recebidos na capital são conhecidas pelas autoridades. A Subsecretaria de Direitos Humanos, vinculada à Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de Minas Gerais, do governo do estado, afirmou via Lei de Acesso à Informação (LAI) que, em setembro de 2021, a prefeitura de Belo Horizonte alocou um grupo de 80 indígenas venezuelanos no abrigo São Paulo, gerido pela Sociedade de São Vicente de Paulo, ainda que o local tivesse “problemas de insalubridade”. Depois, informou o governo, a prefeitura os transferiu para uma organização da Cáritas. 

A situação não é exclusiva de Belo Horizonte. Reportagem do especial “Segredos da Operação Acolhida”, da Pública, revelou que, em Roraima, migrantes venezuelanos têm escolhido dormir na rua ao invés de ficar nos abrigos oferecidos. De acordo com a pesquisadora Carolina Leite, da Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe), entrevistada na reportagem, “praticamente 100%” das mulheres Warao que fizeram parte de sua pesquisa haviam sofrido “algum tipo de violência sexual e de gênero – no mínimo assédio – em sua passagem” na operação. 

Em entrevista, a ministra Sonia Guajajara afirmou que o MPI tem recebido e monitorado denúncias de “violência”, “desentendimentos” e “brigas internas” nos abrigos, mas que elas “fogem de nosso controle”. “Por exemplo, temos em São Paulo o maior número de pessoas que vivem na rua, e o Estado não consegue resolver isso”, afirmou. 

A Subsecretaria de Direitos Humanos de Minas Gerais afirmou via LAI que a “superlotação”, que ocorre “devido à chegada contínua de novos familiares”, é um desafio a ser enfrentado pelos órgãos municipais e estaduais no acolhimento dos Warao. Afirmou ainda que há cerca de 300 indígenas da etnia em Minas Gerais, nas cidades de Belo Horizonte, Betim, Montes Claros, Uberaba e Uberlândia, e elencou algumas ações de acolhimento. 

No início de 2023, lideranças indígenas denunciaram ao Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e ao Ministério Público Federal (MPF) que estariam sofrendo violações de direitos humanos e tendo que viver em condições precárias, em abrigos e casas alugadas pela prefeitura de Belo Horizonte. Um grupo de trabalho foi criado para investigar as denúncias, mas até então ninguém foi responsabilizado. 

Em retorno à reportagem, a prefeitura de Belo Horizonte afirmou que os dois abrigos que atendem 131 indígenas migrantes venezuelanos estão “organizados de forma a respeitar a cultura e os costumes das famílias indígenas acolhidas” e que a prefeitura e a Cáritas, que administra os locais, têm realizado “diversas ações de conscientização contra a discriminação nos bairros onde estão os abrigos”. Citou a promoção da educação de jovens e adultos (EJA), a matrícula das crianças nas escolas, o planejamento familiar para as mulheres, a promoção de festas comemorativas, a inserção no mercado de trabalho e no Programa Bolsa Moradia como projetos desenvolvidos para o grupo.

Sobre a suspensão do cacique Santo Tovar, a prefeitura afirmou que ela “se deu por descumprimento das regras do local que são estabelecidas pelos próprios usuários”, que incluem banimentos a agressões e consumo de álcool. “No descumprimento há inicialmente uma advertência, seguida pela suspensão e na reincidência o desligamento”, afirmou a prefeitura. O órgão disse também que a família de Santo é contemplada com o Bolsa Moradia, Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada (BPC), “como estratégias de proteção e fortalecimento da autonomia”. 

A Cáritas-MG, a prefeitura de Betim e o governo do estado não responderam aos questionamentos enviados pela reportagem. 

“Somos parentes”: indígenas brasileiros e venezuelanos se unem

Em sua luta por território, os Warao têm se unido aos povos indígenas brasileiros, como os Ticuna, os Kamakã Mongóio e os Xukuru-Kariri, que também têm batalhado por um lugar onde viver em Minas Gerais. A necessidade de estabelecer moradia de acordo com suas tradições é uma realidade pungente que atravessa a vida dessas comunidades e reflete muitas vezes o despreparo e o descaso do poder público e da Justiça para oferecer saídas dignas na garantia dos direitos dos povos originários. Em resposta, a migração surge como uma forma de os povos buscarem proteção e direitos. 

Darupuuna Magüta, do povo Ticuna, é uma das lideranças da Retomada Terra Mãe, onde seu povo morou por um tempo, mas saiu por medo da violência. Os Ticuna deixaram seu território ancestral na região do Alto Solimões, localizado na Amazônia brasileira, por falta de oportunidades de emprego e melhores condições. “Estamos aqui para dizer que vamos viver em nosso território, dentro e fora das cidades, e estamos em luta”, afirmou. 

“Somos parentes dos Warao venezuelanos, eles contam conosco e nós contamos com eles. A luta que se perde é a luta que se abandona”, acrescentou Paulo Puēūruō, pajé do povo indígena Xukuru-Kariri. Ele vive hoje em uma retomada indígena na cidade mineira de Brumadinho, após deixar seu território ancestral na aldeia Palmeira dos Índios, em Alagoas, com outras dez famílias, pela perseguição de fazendeiros e falta de oportunidades. 

“Aqui é nossa casa. Para sobreviver, nós plantamos mandioca, batata-doce, feijão, milho, pescamos na lagoa. Nós temos aqui escola com professores indígenas, temos a oportunidade de ensinar o que nós sabemos para que as novas gerações aprendam sobre nossa língua, cultura e tradição.” “Para nós não existem fronteiras. Quando os invasores chegaram aqui, nós já existíamos”, afirmou.

Quem liderou e nomeou a Retomada Terra Mãe foi o cacique Merong Kamakã, do povo Kamakã Mongoió. Ele defendia que toda ocupação é uma retomada dos povos originários às terras às quais têm direito, não importando a nacionalidade. Merong, um dos articuladores da união de vários povos em Minas Gerais, faleceu em março deste ano em circunstâncias suspeitas – as autoridades declararam sua morte como suicídio, o que é contestado pela família, visto que ele sofria ameaças por sua atuação como liderança. 

“Eu reafirmo a luta travada por meu filho. Tiraram de nós um guerreiro, trabalhador, lutador,  que gostava de ajudar a todo o mundo independentemente da etnia. Para mim, meu filho era cacique de vários povos. Era conhecido aqui no Brasil e fora do Brasil, falava cinco línguas indígenas e virou referência de vários povos por fazer retomadas. Antes da sua partida, estava difícil. Agora está mais difícil ainda pela perda dele”, disse sua mãe com lágrimas nos olhos. “Ele não morreu, ele encantou, está cuidando de nós agora.” 

A cacica conta que ela e os seus saíram da Bahia expulsos por fazendeiros e então foram para Minas Gerais, onde se estabeleceram em um território posteriormente afetado pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho. Depois, fizeram a retomada onde vivem, em um território que oficialmente pertence à mineradora. “Viemos pelo chamado da terra. Eu peço a compreensão da Justiça. Todos os povos indígenas precisam de seus territórios para dar continuidade a sua cultura”, enfatizou Katorã. 

Ações estatais são insuficientes para proteger os direitos indígenas 

O fluxo de refugiados indígenas tem apresentado novos e desafiadores cenários para governos, organizações humanitárias e a sociedade civil. Faltam até mesmo dados sobre a quantidade, gênero e idade de indígenas venezuelanos no Brasil. Questionado sobre o número de solicitações de refúgio feitas por indígenas Warao entre 2016 e 2024, o Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), que produz os dados utilizados pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), informou à reportagem que não coleta “dados sistematizados sobre etnia/raça/cor”.

A Pública tentou obter as informações via LAI com os estados de Minas Gerais e Mato Grosso, onde há presença de Warao, mas as entidades federativas informaram que não contavam com esses números. 

A defensora pública federal Sabrina Nunes Vieira se dedicou ao tema do acolhimento Warao em sua pesquisa de mestrado, que abordou a população no estado de Minas Gerais. O estudo concluiu, por exemplo, que a prefeitura de Belo Horizonte tem buscado atender à população com recursos alocados, mas, no âmbito do estado, há um maior afastamento do tema, enquanto a União ainda se mantém realmente distante, apesar dos indícios de maior engajamento do MPI. 

Dessa forma, de acordo com ela, cabe à Defensoria Pública da União (DPU) “negociar com os entes federativos, a União, o estado e o município, para assegurar a proteção da população [Warao] e garantir seus direitos”. A pesquisa de Nunes ainda indicou que, apesar dos investimentos em acolhimento, persistem situações de violações de direitos, particularmente manifestadas como xenofobia racializada contra os indígenas na capital mineira. 

Em entrevista, a ministra Sonia Guajajara assumiu que ainda “não há um atendimento suficiente e adequado” para os Warao, mas afirmou que o MPI tem tentado “encontrar uma melhor forma”. “Ainda existem vários povos indígenas brasileiros que não conseguiram seu território, mas isso não deve ser usado para excluir outros povos de conseguirem o seu”, afirmou. 

Para a ministra, um dos grandes desafios da pasta tem sido “debater com o Congresso Nacional, que critica e questiona” as demandas indígenas. “Se isso acontece para [os povos do] Brasil, imagine para os indígenas que chegaram”, ressaltou.

“As ações ainda são muito incipientes. Aquelas ações que tiveram alguma iniciativa ainda não estão estruturadas efetivamente como políticas”, acrescentou André Ramos, coordenador do Grupo de Trabalho criado pela presidência da Funai para acompanhar os venezuelanos, em entrevista à Pública. Ele afirmou que, no governo passado, de Jair Bolsonaro (PL), a Funai tinha uma “atitude de não assumir efetivamente essa pauta”, o que mudou com a nova gestão, presidida por Joenia Wapichana. 

Em abril do ano passado, a presidente da Funai se reuniu com indígenas venezuelanos. Foi a primeira vez, desde o início da crise migratória, que uma comitiva Warao foi recebida pelo governo em Brasília.

“A presidência da Funai assumiu que, de fato, a entidade precisa atuar junto com os indígenas venezuelanos porque há um desafio, que é o desafio do próprio processo de dominação colonial. Essa dominação colonial não atingiu só os indígenas do Brasil, atingiu toda a América. Não podemos, de forma alguma, tratar os indígenas latino-americanos como se fossem estranhos à nossa realidade”, afirmou Ramos. 

Conheça a autora

Yolis Lyon

Yolis Lyon é jornalista, indígena venezuelana da etnia Warao, defensora dos direitos humanos e, há mais de dez anos, trabalha com a população migrante e refugiada no Brasil. Atuou como trabalhadora humanitária em Pacaraima (RR); foi tradutora e assessora na Secretaria Estadual de Assistência Social de Amazonas, em Manaus (AM); e trabalhou como tradutora e ponto focal no abrigo de migrantes indígenas Warao no Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados de Belo Horizonte. Também atuou como Articuladora Social na Cáritas-MG, na atenção direta à comunidade Warao acolhida no abrigo Vila Pinho. É liderança indígena Warao reconhecida pelo seu povo, conselheira do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial – PBH e Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial – CONEPIR/MG. Yolis também fundou a organização Casa Común del Pan, que presta assistência e capacitação profissional a migrantes e refugiados.
Edição:

Esta reportagem foi produzida como resultado do Programa de Formação para Repórteres Indígenas da Pública.

Ricardo/Wikimedia Commons
Myke Sena/DPU
Matheus Pigozzi/Agência Pública
Yolis Lyon/Agência Pública
Laura Scofield/Agência Pública
Guilherme Bergamini/ALMG
Guilherme Bergamini/ALMG
Laura Scofield/Agência Pública
Laura Scofield/Agência Pública
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