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Venezuelanos, ex-trabalhadores e pesquisadores denunciam que insegurança nos abrigos é abafada pela organização

Reportagem
22 de julho de 2024
04:00

Crime organizado, violência sexual e de gênero e medo constante: os muros que cercam os abrigos onde vivem venezuelanos que se refugiaram para o Brasil guardam também a insegurança pela qual passa essa população. Na primeira reportagem da série Segredos da Operação Acolhida, a Agência Pública traz denúncias de migrantes e trabalhadores humanitários que levam famílias inteiras a preferir viver nas ruas de Boa Vista a dentro dos espaços de acolhimento. A reportagem esteve no estado e visitou os espaços da operação em junho deste ano.

Foi a crise econômica, social e política da Venezuela que forçou a população de lá a migrar massivamente para outros países da América do Sul. Roraima, estado brasileiro na fronteira, tornou-se a porta de entrada de quem buscava por refúgio ou apenas trabalho no Brasil. A estimativa é que mais de 1 milhão de venezuelanos entraram no Brasil desde 2017, quando a crise migratória teve início, segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública. 

Em resposta, o governo brasileiro montou uma ação de emergência em abril de 2018 chamada de Operação Acolhida. A ação aconteceu em parceria com a Agência ONU para Refugiados (Acnur), o Exército Brasileiro, a Organização Internacional para as Migrações (OIM) e outras cem organizações não governamentais.

Contudo, segundo as denúncias ouvidas pela reportagem, os abrigos se tornaram locais de ameaça e violência para os refugiados.

Por que isso importa?

  • A Operação Acolhida, que recebeu cerca de 1 milhão de pessoas, é a maior operação de acolhida de migrantes da história recente do Brasil.

Com medo, famílias escolhem as ruas no lugar dos abrigos

Ameaçada de morte dentro do Rondon 1, o maior e mais numeroso abrigo da Operação Acolhida, uma mulher buscou ajuda da então trabalhadora humanitária Luana Pedroso (fictício), de 31 anos, para que não fosse executada pelo tribunal do crime. “Eu tive que tomar uma decisão, por minha conta e risco: dei um jeito de conversar com o chefe [da organização criminosa] e de dizer que a situação era uma mentira [para salvar a vítima da morte]”, disse ela. 

A decisão foi tomada após a ex-trabalhadora humanitária ter avaliado que, caso pedisse ajuda ao Exército, responsável por garantir a segurança dos abrigos, poderia deixar a vítima ainda mais exposta. 

“Nos Rondons [abrigos da Operação Acolhida], estão acontecendo coisas trágicas. Têm ocorrido violações de crianças”, disse Luiz Perez (fictício), venezuelano de 50 anos que opta por passar o dia caminhando pelas ruas de Boa Vista, junto da esposa, de 40 anos, e dos filhos de 7 e 10 anos. Eles preferem ficar nas ruas a dentro de um dos abrigos montados para a Operação Acolhida.

Perez e a família deixaram o estado de Anzoátegui, na zona costeira da Venezuela, com o intuito de recomeçar a vida no Brasil. Para chegar à cidade roraimense de Pacaraima, na fronteira, a família contou com caronas nas estradas e longas caminhadas para percorrer pouco mais de mil quilômetros em quatro dias. 

Eles são parte das 680 pessoas que dormem no Posto de Recepção e Apoio (PRA), segundo dados da OIM. O local abriga pessoas que estão sem um teto para que possam utilizar as camas, entre 17h e 6h, receber as três refeições diárias e tomar banho. A estimativa é que outras 200 pessoas venezuelanas vivam integralmente nas ruas, segundo dados compilados pela organização entre 27 e 31 de maio de 2024. 

A preocupação de Perez é compartilhada por outros venezuelanos que optaram por tentar reconstruir a vida no Brasil. Carlos Barbuena, 40 anos, disse que prefere dormir nas ruas da capital de Roraima com a filha de 2 meses e a esposa a ficar nos abrigos, por causa da insegurança. “É perigoso [morar nos abrigos], por conta do crime [organizado] que tem lá”, disse o patriarca à Pública.

Por meio de nota, como forma de resposta às denúncias apontadas na reportagem, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) disse que “a Força-Tarefa Logística Humanitária atua vigiando e monitorando os ambientes e estruturas da Operação Acolhida com o objetivo de dissuadir e identificar eventuais ameaças e acionando com tempestividade as autoridades de segurança pública competentes conforme cada caso”. 

A pasta destacou, também, que “são empregados efetivos militares, além da contratação de empresas prestadoras do serviço de vigilância, que, diuturnamente, realizam a guarda dos abrigos e rondas no interior do perímetro, ações essas complementadas pela realização de frequentes e inopinadas inspeções e, ainda, pelo uso de sistema de câmeras de monitoramento e de barreiras físicas, como concertinas”. Leia a nota na íntegra.

A Acnur disse que não comenta “casos individuais de afronta aos direitos das pessoas sob o nosso mandato”.

Facções atuam nos abrigos, denunciam ex-trabalhadores 

“Uma vez, um dos abrigos amanheceu com os mandamentos do PCC pichados em uma das passarelas”, disse a ex-trabalhadora humanitária quando questionada sobre a presença de organizações criminosas dentro dos abrigos da Operação Acolhida. O caso citado por ela ocorreu em 2022, no abrigo Rondon 1.

No dia em que a pichação foi encontrada, a ex-trabalhadora humanitária contou que o Exército e a Acnur trataram de apagar os mandamentos pichados, mas que não houve nenhuma resposta a mais das instituições sobre o episódio. 

“Algumas pessoas da população [venezuelana que vivia no abrigo] chegaram a ver, mas […] foi só mais um marco do que era a situação de insegurança constante no abrigo e as pessoas falarem: ‘Meu Deus, realmente eles estão aqui […] estou com medo de sair da minha unidade habitacional’”, contou ela. 

A Operação Acolhida disse à Pública, por meio de nota, que “a referida pichação consistiu em apenas um incidente isolado e que não mais se repetiu, tendo sido realizada por um grupo de migrantes, menores de idade, com o objetivo de disseminar boatos”.

Ainda de acordo com a ex-trabalhadora, a população venezuelana abrigada chama as organizações criminosas que atuam dentro dos espaços de acolhimento de “sindicatos”. “A gente tinha ciência de que atuava ali [também] era o Trem de Aragua, [a maior facção criminosa da Venezuela] inclusive, informação compartilhada com a inteligência do Exército [Brasileiro]”, contou. 

“A origem do nome é que os grupos criminosos pegaram o controle dos sindicatos, no início”, explicou o professor da Universidade Central da Venezuela Roberto Briceño Leon, de 73 anos. Ainda de acordo com o professor, a população venezuelana também pode descrever o crime organizado como “pran” – abreviação de pranato, como são chamadas facções criminosas venezuelanas – e “trem”. 

“Eu já vi pessoas que moravam na região da rodoviária que foram decapitadas, que tiveram o braço cortado, tiveram a perna cortada, porque ali tinha uma presença de facção venezuelana”, disse o ex-trabalhador humanitário, que deixou a OIM há pouco tempo, Fábio Cardoso (fictício), de 40 anos.

Pelo menos quatro pessoas foram encontradas mortas próximo à Rodoviária Internacional de Boa Vista, em maio de 2022, segundo a apuração do portal Roraima em Tempo. Todas tinham sinais de violência brutal.

Uma das vítimas é Bryan José de Jesus Hernandez, de 30 anos, que foi encontrado morto e esquartejado próximo a um dos abrigos nas redondezas da rodoviária. Quatro homens foram denunciados pelo Ministério Público de Roraima (MPRR), e a suspeita é que eles integrem a facção criminosa venezuelana Trem de Aragua, conforme reportagem publicada pela Pública em maio deste ano. 

A professora Márcia Maria, da Universidade Federal de Roraima (UFRR), cita que o crime organizado se aproveitou da crise política, econômica e social da Venezuela para entrar nos abrigos. 

“E mesmo o Exército estando dentro dos abrigos, já havia várias denúncias de pessoas ligadas principalmente à Familia Podrida [outra organização criminosa da Venezuela]”, pontuou a docente. “Então, se vende muito essa ideia de que a presença do Exército é uma presença que garante a proteção, mas no fundo não é bem assim”, completou. 

Outro caso denunciado por Luana Pedroso é o de um homem, suspeito de chefiar um grupo de traficantes, que todas as noites entrava em um dos abrigos para fugir de ações policiais. 

“Já teve casos de ter encontrado um grupo de pessoas tentando entrar com munição dentro do abrigo, pessoas usando armas dentro do abrigo, era um ponto de venda também de drogas”, contou Pedroso sobre outra experiência presenciada dentro do Rondon 1. 

Por meio de nota, o Acnur respondeu que “não lida com casos de grupos paralelos de poder, sendo este um assunto de segurança pública”. 

“Até o presente momento, em pouco mais de 6 anos de Operação Acolhida, não houve registro de quaisquer indícios da atuação de facções criminosas no interior dos abrigos. Cabe ressaltar que o combate às ações de organizações criminosas compete precípua e privativamente às instituições do sistema de justiça e dos órgãos do sistema de segurança pública”, disse a assessoria de comunicação social da operação. Leia a nota na íntegra.

Mulheres relatam medo de violência sexual e assédio 

“Não, seguro não é”, respondeu Ana Miranda (nome fictício), de 37 anos, quando questionada sobre a segurança do Posto de Recepção e Apoio (PRA) para as mulheres que lá se abrigam. “Para que nos sintamos seguras, precisamos estar em quatro [mulheres para transitar pelo espaço]”, completou ela. 

Miranda estava sentada ao lado do marido e da filha, de 17 anos, na porta do PRA, com duas malas, quando foram abordados pela reportagem da Pública. Eles aguardavam a diminuição da fila de entrada no posto de acolhimento. 

A entrada é permitida após às 17h e a saída, a partir das 5h. No espaço, em Boa Vista, o café da manhã e almoço são garantidos pela Fundação Cáritas Brasileira, vinculada à Igreja Católica. Em média, são servidas mil refeições diárias em cada turno. O jantar fica por conta do Exército Brasileiro.

Quem administra o PRA é a OIM. A ideia era que o espaço funcionasse como um local de acolhimento provisório. Contudo, com a constante a procura de abrigo por famílias inteiras, com o tempo a organização administradora permitiu que fossem estabelecidas camas fixas aos venezuelanos que possuíam cadastro.  

De acordo com Miranda, o marido dela passou diversas noites sem dormir, para que pudesse proteger ela e a filha, de 17 anos, de violências sexuais que pudessem ocorrer dentro do PRA. 

“Ele [marido] não dormia, cuidando tanto dela [filha] como de mim”, contou a venezuelana. Ainda de acordo com Miranda, “havia muitas pessoas andando e transitando” pelo PRA que não eram militares, e sim venezuelanos abrigados, para segurança do espaço. 

Roberto González (fictício), de 49 anos, marido de Miranda, disse que sente falta de uma ronda dos militares dentro dos abrigos enquanto as pessoas dormem. “A intenção de dizer isso é que as verdadeiras autoridades têm que estar atentas. Porque há muitos que, de certa forma, agem como ovelhas e não o são”, disse ele, ao se desculpar por interromper a esposa, enquanto ela dizia que outros venezuelanos fazem as rondas para garantir a segurança do espaço. 

A equipe de comunicação social da Operação Acolhida respondeu que “as atividades de ronda nos abrigos/alojamentos da Operação Acolhida são realizadas ao longo do dia e da noite, diariamente, por militares e vigilantes, conforme as peculiaridades de cada uma dessas estruturas”.

“É um ambiente que acontece de tudo, de violência sexual, de corte por faca, briga e tudo. Então, essa é uma condição que essa população do PRA vive”, contou Fábio Cardoso, ex-trabalhador humanitário. 

Ele ainda citou que “os casos de abuso sexual, a própria Operação Acolhida fazia de tudo para esconder o que estava acontecendo. Então, a gente, quando sabia, não podia nem tocar no assunto, porque senão iam chamar a nossa atenção e estragar com a imagem da Operação Acolhida”.

“Essa proteção no interior dos abrigos nunca foi feita. Talvez, durante o dia, um pouco de presença ali”, criticou Márcia Maria, da UFRR. A crítica é apontada também por Pedroso, durante o seu tempo de atuação na Operação Acolhida: “A gente tinha, por exemplo, um abrigo de população de 2,1 mil pessoas [o Rondon 1] mais ou menos; no período noturno, ficava um militar de plantão, no máximo dois”.

Sofia Cavalcanti Zanforlin, professora da Universidade Federal do Pernambuco (Ufpe) e integrante de um grupo de pesquisadoras sobre a Operação Acolhida, avaliou que “os abrigos não conferem dignidade”, pois “a primeira coisa que as pessoas perdem, em família ou sozinhas, é o direito à privacidade.”

“[As famílias] continuam vulneráveis a diversos tipos de violência mesmo dentro dos abrigos, como foi documentado pela pesquisa a partir de relatos tanto de migrantes que haviam passado pelo abrigo como por trabalhadores humanitários que atuavam nos abrigos e conversaram com a pesquisa em condição de sigilo”, disse Zanforlin.

Parte do que motivou o estudo das pesquisadoras da Ufpe foi o processo de escuta das mulheres venezuelanas indígenas, da etnia warao, levadas para Paraíba e Pernambuco, que relataram as experiências de violência de gênero dentro dos abrigos da Operação Acolhida em Boa Vista e Pacaraima. 

“Os relatos de praticamente 100% das mulheres warao com que convivemos entre Pernambuco e Paraíba de que sofreram algum tipo de violência sexual e de gênero – no mínimo assédio – em sua passagem pela OPA [Operação Acolhida], em Pacaraima, Boa Vista ou Manaus, alimentaram essa pergunta pra realização de trabalho de campo na fronteira Norte”, disse a pesquisadora Carolina Leite, da Federal de Pernambuco.

No último box do banheiro feminino para banhos no PRA, as peças da fechadura foram retiradas por homens, acreditam as mulheres venezuelanas que o utilizam. Miranda contou que ela e a filha evitam usar, pois têm medo de que sejam espionadas pelas frestas. “[Também] na parte do sanitário, há uma fresta que é possível olhar do banheiro masculino para o feminino”, contou. 

Segundo Miranda, ela havia colocado pedras de sabão para tapar as aberturas do banheiro, mas assim que outra mulher ocupou o box já haviam tirado. “Como nós [ela e a filha] sabemos que esse banheiro tem esse problema, nós sempre avisamos às outras mulheres para que não o usem”, disse.

Miranda afirmou que aguarda uma reunião com a OIM para reclamar das condições dos banheiros, que a deixam insegura, bem como a filha e outras mulheres venezuelanas. 

A OIM, por sua vez, disse que nos espaços administrados pela organização são “realizadas escutas qualificadas e sessões informativas nas quais são repassados os canais de denúncia como o disque 100 ou 180, entre outras informações; são distribuídos materiais informativos e é feita articulação com a rede de proteção local de modo a ampliar a proteção das pessoas acolhidas e a mitigar riscos de violência. A equipe que trabalha no PRA fica à disposição da comunidade acolhida e, caso alguma situação de proteção se apresente, a rede local é acionada”. Leia a nota na íntegra.

Edição:

A reportagem contou com entrevistas em profundidade realizadas pelas pesquisadoras Sofia Zanforlin (PPGCOM/UFPE), Carolina Leite (PPGEO/UFPE), France Rodrigues (PPGSOF/UFRR), Vângela Morais (PPGCOM/UFRR) e Júlia Lyra (PPGCOM/UFRJ), no âmbito do projeto Fronteiras da mobilidade no Brasil contemporâneo, desenvolvido pelo Grupo MIGRA (UFPE) e GEIFRON (UFRR), com financiamento do Edital Universal do CNPq.

Rafael Custódio/Agência Pública
Matheus Pigozzi/Agência Pública
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Marinha do Brasil
Matheus Pigozzi/Agência Pública
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Rafael Custódio/Agência Pública
Matheus Pigozzi/Agência Pública
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