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Os ataques aos indígenas Guarani-Kaiowá, que se repetem há pelo menos quatro décadas, ganharam nova dimensão com o tiro disparado na nuca de Neri Kaiowá, de 23 anos, na madrugada de quarta-feira (18), durante uma operação violenta e ilegal da Polícia Militar.
O assassinato ocorrido na Terra Indígena (TI) Nhanderu Marangatu, noticiado pela Agência Pública, revela uma perigosa união entre o governo de Mato Grosso do Sul e milícias ruralistas para expulsar as comunidades de TIs com processos de demarcação estagnados em municípios como Douradina, Caarapó e Antonio João, palco da violência mais recente.
Em meados de julho, três indígenas já haviam sido baleados por homens em caminhonetes entre os dias 14 e 15, depois de retomadas de território por indígenas em diversas regiões do estado. No dia 3 de agosto, novos ataques de ruralistas na TI Panambi-Lagoa Rica, em Douradina, feriram cinco indígenas.
Paralelamente, ruralistas postaram notícias falsas no Instagram, com apoio do governo de Mato Grosso do Sul, responsabilizando os indígenas Guarani-Kaiowá por incêndios em plantações e conclamando os proprietários de terra a reagir contra os supostos ataques.
“Há não apenas um recrudescimento da violência contra os indígenas, mas uma mudança tática muito preocupante”, diz Matias Rempel, coordenador do Conselho Missionário Indígena [Cimi] em Mato Grosso do Sul. “Antes, a gente tinha ataques dos fazendeiros, depois vieram aqueles das forças de segurança, aí voltaram os fazendeiros, até que eles foram indiciados pelo Massacre de Caarapó [ocorrido em 2016] e novamente apelaram para o uso das forças do estado contra os indígenas”, explica.
“Nesse último momento, a gente tem as duas coisas funcionando ao mesmo tempo: em Douradina, por exemplo, a violência ocorreu à luz do Invasão Zero [movimento organizado por ruralistas], que perfilaram 70 caminhonetes em frente à comunidade, com incitação pública de parlamentares como Marcos Pollon (PL-MS), Rodolfo Nogueira (PL-MS) e a senadora Tereza Cristina (PP-MS); e ao mesmo tempo você volta a ter essa atuação ilegal da PM, que tinha cessado depois da ADPF [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental] da Apib [Associação dos Povos Indígenas do Brasil]”, analisa Rempel.
A ADPF, a que se refere o coordenador do Cimi, foi movida pela Apib por causa da violência das forças estaduais contra os Guarani-Kaiowá, e reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em agosto de 2023.
O pretexto para a atuação da PM na retomada dos indígenas na TI Nhanderu Marangatu, onde Neri foi morto, desta vez veio da Justiça Federal, que acatou ação movida pela advogada Luana Ruiz, para que a PM protegesse a sede da fazenda Barra (sobreposta à terra indígena), enquanto não há decisão judicial definitiva sobre o território em disputa. Detalhe: Luana é assessora da Casa Civil do governo de Mato Grosso do Sul e filha dos proprietários da fazenda.
“Há uma dupla dimensão da ilegalidade, não apenas forçando uma reintegração de posse contra a comunidade, que estava na fazenda, mas não invadiu a sede, e outra ilegalidade muito pior que são os ataques da PM a comunidades que estão fora do perímetro da fazenda Barra, portanto fora do escopo da ação judicial”, explica Rempel, esclarecendo que não há nenhuma ordem judicial de reintegração de posse na área dos conflitos. “Nesse momento em que estou falando com você, a PM está atacando comunidades até nos territórios antigos.”
Mais do que a truculência da PM, a ilegalidade das operações civis e militares e a mobilização para defender interesses da assessora do governo de Mato Grosso do Sul, o que choca o coordenador do Cimi “é o silêncio absoluto do Executivo, que está ciente dos fatos, enquanto os indígenas estão sendo mortos”, diz.
Na noite de quarta-feira, depois da divulgação do assassinato de Neri, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, se reuniu com o ministro Gilmar Mendes, do STF, para reiteirar o pedido de conclusão da demarcação da TI Nhanderu Marangatu. Essa foi a única ação efetiva do governo federal em relação aos conflitos até o momento.
Enquanto isso, a região continua em chamas também pelos incêndios em plantações, que indígenas e o Cimi atribuem aos próprios fazendeiros com o intuito de criminalizar os Guarani-Kaiowá, acirrar os ânimos contra eles e envolver a violência em outra cortina de fumaça. “É período de entressafra, eles não perdem nada com o fogo nas plantações”, explica Rempel. Cerca de 40% dos municípios de Mato Grosso do Sul têm focos de incêndio provocados por ação humana, como, aliás, acontece em todo o país.
A ministra Marina Silva vem apontando a ação de “terroristas climáticos” nas queimadas dos últimos meses sem apresentar provas nem dar nomes aos bois – o que tem sido visto por parte da imprensa como “cortina de fumaça” para ocultar a lentidão e a falta de ações de prevenção do governo nas queimadas.
Casos como a violência em Mato Grosso do Sul e dados de um estudo recente divulgado do MapBiomas – constatando que 24% dos focos de incêndio estão em terras indígenas – podem apontar na direção das acusações da ministra.
Mas, além de investigar a autoria dos incêndios criminosos, é preciso que o governo federal rompa o silêncio constrangedor e aja com firmeza na defesa dos povos originários duplamente ameaçados por fogo e fuzis.