Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a newsletter Xeque na Democracia, enviada toda segunda-feira, 12h. Para receber as próximas edições, inscreva-se aqui.
O avião decolou do aeroporto de Brasília às sete da noite, a lua estava gigante e avermelhada como eu nunca vira antes. Nascia, mas nascia em um céu castigado pela semana mais brutal das repetidas ondas de calor que acossam o Brasil este ano. Era 19 de setembro, o Parque Nacional de Brasília pegou fogo por cinco dias, consumiram-se 2 mil hectares, e a cidade ardeu durante toda a semana. Semanas depois, minhas roupas ainda cheiram a fogo e fumaça. Segue comigo o pavor de termos já passado do ponto de não retorno da emergência climática.
Chegando à cidade, sentia-se o cheiro de queimado em todo lugar – na casa do amigo que me hospedou, nos gabinetes de ministérios, nos engarrafamentos do Eixão. Ao longe via-se, para aonde quer que se fosse, espirais de fumaça negra partindo de vários pontos no horizonte. Ao cruzar para a região de mansões do Lago Norte, o cenário parecia apocalíptico, enormes extensões de terra seca, grama amarelada feito palha, árvores negras, duras, queimadas. Tossíamos nas reuniões, todos os umidificadores de ar eram ligados assim que entrávamos nas salas, as pessoas passaram a usar máscara o tempo todo. Minha cabeça doía ao fim do dia.
Certa noite, voltava de um bar com o dito amigo. Ao entrarmos no seu apartamento, tomava-o não só o cheiro de queimado, com o qual já nos havíamos acostumado (quando uma pessoa está metida em um cenário extremo, ela esquece qual é o sentido normal das coisas): a casa estava tomada pela fumaça. Não víamos um palmo adiante do nariz, tudo estava branco, os gatos olhavam-nos assustados. A fumaça não pede licença nem se interrompe por pouca coisa, as janelas fechadas não bastaram. Ao acordar, tudo havia sumido, o céu de Brasília, traço do arquiteto, era de novo azul, achei que fora tudo um sonho ou devaneio. Foquei nas tarefas do dia a cumprir, sempre ocupada demais para ter tempo de sentir desespero.
Mas o cheiro revoou de novo quando parti da capital e vi a lua vermelha. Pensei: estamos fodidos.
A visão da fumaça era seguimento de outra semana devastadora, dessa vez do lado da minha casa, na Grande São Paulo, onde tive que lidar com o fogo em si e não só a fumaça. Moro numa área bastante verde, um subúrbio metido a besta criado para ser o sonho da classe média paulistana lá nos anos 1980 e que hoje é o suprassumo da estupidez humana, com entrada e saída interditadas por um trânsito insuperável. Na minha região ficam alguns dos municípios que mais desmatam, como Cotia e Embu das Artes. A Mata Atlântica vira pó diante dos nossos olhos.
Em setembro, as árvores do meu quintal amarronzaram. A jabuticabeira decidiu dar seus frutos mais cedo, um pouco menores e mais azedas, com medo do que estava por vir. As folhas caíram ao chão. Eu apaguei a vela que mantinha acesa continuamente desde a virada do ano, as coisas melhores, não sei se virão, mas não quero causar um incêndio pelo meu pedido mal-ajambrado.
Uma tarde, a avenida que fica ao pé do morro foi tomada pela fumaça, o fogo dominou uma área enorme onde cavalos, burros e até algumas vacas vão passear. Eu parei o carro, não exatamente para ajudar – como eu podia ajudar? –, mas para estar com as pessoas que se reuniam na calçada, celular nas mãos, depois de mais de duas horas chamando os bombeiros. O que eu podia fazer é o que faz uma jornalista: tirei fotos, peguei contatos de quem estava por lá, enviei aflita pra todos os meus contatos, as fotos e entrevistas chegaram a alguns dos portais, como o UOL, e nas redes sociais da Pública. Se não posso conter o fogo, que pelo menos a informação se espalhe com a mesma fúria.
Um homem passou em uma bicicleta na avenida e soltou:
– Quem bota fogo no mato devia ir pra a cadeia!
Recebeu apoio e aplausos.
Todos vimos como as labaredas foram tomando conta do prédio da marcenaria que constrói idílicos móveis rústicos para todos os moradores da região, e como o tentava contê-las com um mero aparelho de lavar com alta pressão. Os bombeiros chegaram apenas alguns minutos antes do incêndio se espalhar para uma casa de shows vizinha e dominar todo o salão principal, desabando o teto.
Eu liguei também para o telefone de emergência, e a atendente aborreceu-se comigo:
– Senhora, já te disse, a emergência já foi registrada no sistema… Não, não dá pra prever quando os bombeiros vão chegar. Há muitas chamadas.
São Paulo inteira está queimando, ela queria me dizer. E eu vi que a gente não vai conseguir parar o fogo, ele um dia vai atravessar a avenida até chegar na minha casa e consumir todas as pequenas coisinhas que eu amo e que me fazem lembrar quem sou eu, não temos a menor chance contra ele.
Sei que não estive sozinha na minha vivência do fim do mundo. Este ano, 51,8% dos brasileiros ficaram ao menos 39 dias sem chuva, segundo levantou o UOL. Chegamos à oitava onda de calor, o desastre não tem definido região nem classe social; esta semana a temperatura pode alcançar 39 graus no interior de São Paulo, no Centro-Oeste, em Tocantins e no interior do Nordeste, enquanto o Sul enfrenta chuvas acima da média.
Ainda bem, existem jornalistas que trabalham diuturnamente para melhorar nossa compreensão sobre a catástrofe climática e apontar caminhos. Minhas colegas Marina Amaral e Giovana Girardi, que tocam a cobertura da Pública sobre o clima – nos últimos anos, um dos principais eixos do nosso jornalismo –, lançaram há algumas semanas o Bom Dia, Fim do Mundo, programa semanal no YouTube e nos tocadores de podcast que pretende “transformar a apatia em inquietação” e daí, espero, em ação. Toda quinta-feira um banho de informação bem calcada.
Além disso, neste ano eleitoral de desastres, toda nossa equipe está focada em analisar os planos climáticos dos candidatos às prefeituras. Nossas perguntas incômodas, que precisam ser feitas, levaram até à expulsão do repórter Caio Freitas Paes e do fotógrafo João Canizares de um evento de campanha do prefeito de Nova Mutum (MT). Esta cobertura, inclusive, está sendo financiada pelos nossos apoiadores, pessoas que também entendem que a emergência climática precisa estar no centro dos debates. Por isso, peço que se junte a nós e contribua com a cobertura da Pública também. Clique aqui para doar.
É com a informação que se combate o desespero; e é só com bom jornalismo que podemos ainda ter alguma esperança de que saberemos escolher nossos governantes e, assim, nos planejar para um futuro que seja “criadeiro” tanto quanto a chuva cantada por Tom Jobim em Chovendo na roseira, canção que deixo para meus leitores no finalzinho desta coluna como um voto de melhores futuros. Esta coluna entra agora de férias e retorna no dia 4 de novembro.