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Considerada a capital da lavagem do ouro, cidade concentra uma das maiores cicatrizes de garimpo do país

Reportagem
4 de outubro de 2024
13:03

Quem chega a Itaituba (PA) pela balsa de transporte de automóveis que faz a ligação com a Transamazônica pelo leito do rio Tapajós pode se assustar com o surgimento de diversos bancos de areia onde antes havia apenas água a perder de vista. Um vendedor ambulante que trabalha na balsa comenta que a navegabilidade só não está pior porque houve uma dragagem de emergência. Nas novas “ilhas” que nasceram de um mês para o outro, como revela a imagem de abertura desta reportagem, os moradores da região montam barracas, fazem churrasquinho e até dormem em redes. É uma distração – que se espera passageira, mas que tem se repetido ano após ano – em um cenário sombrio.

As eleições municipais na bacia do Tapajós transcorrem em meio a uma das secas mais severas dos últimos tempos. Há nove dias, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) declarou “situação de escassez hídrica no rio Tapajós”. O quadro só não é mais grave do que o registrado em 2010 e 2023.

A disputa pela prefeitura de Itaituba também envolve um importante ativo ambiental: o poder de conceder o licenciamento para novos garimpos no município. Caso único na Amazônia Legal, e que hoje está em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF), no estado do Pará as prefeituras é que autorizam áreas de garimpos de até 500 hectares.

Isso foi possível graças a uma resolução de 2015 emitida pelo Conselho Estadual de Meio Ambiente do Pará confirmada em 2021. Na prática, o futuro prefeito de Itaituba terá em mãos a capacidade de dar aos garimpeiros o primeiro passo legal – o licenciamento ambiental – rumo à obtenção de lavra garimpeira da Agência Nacional de Mineração (ANM). Sem o licenciamento, nada feito.

Chamada de “cidade pepita”, Itaituba tem “a maior concentração de cicatrizes de garimpo da Província Aurífera do Tapajós e do Brasil” e registra “41% das permissões de lavra garimpeira outorgadas pela ANM no país de 1990 a 2021”, o que representa 772 títulos minerários, segundo uma nota técnica emitida em 2023 por uma equipe de pesquisadores das organizações não governamentais Instituto Socioambiental (ISA) e WWF. 

Segundo a nota técnica do ISA-WWF, 106 mil hectares já foram degradados pelo garimpo na Província Aurífera do Tapajós desde 1985. “Em 2021, a área de garimpo na Província Aurífera do Tapajós é 1.610% maior que o reportado para o ano de 1985, saltando de 4.213,3 hectares para 72.049,9 hectares. Nos últimos dez anos [2013-2023], a área degradada pelo garimpo aumentou 215%”, diz o estudo.

De acordo com o “Boletim do Ouro 2022-2023”, produzido pelo Centro de Sensoriamento Remoto (CSR) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), no ano de 2022 Itaituba foi, disparado, o município que mais “produziu” ouro no país, com 12 toneladas (o segundo principal município, Poconé, registrou “apenas” 3 toneladas).

Desse total, contudo, apenas 5,6 toneladas foram consideradas “regulares”. O restante foi classificado como “irregular com evidências de exploração” (5 toneladas) ou “irregular sem evidências de exploração” (1,6 tonelada).

Polícia Federal, Ibama e pesquisadores apontam que Itaituba nos últimos anos se tornou a capital da lavagem do ouro, ou seja, o minério tem sido registrado pelo município como se fosse produzido ali mesmo, mas na verdade boa parte dele vem de outras partes do país, incluindo regiões onde a exploração é proibida, como a Terra Indígena Yanomami, em Roraima. A cadeia ilegal do ouro só é possível com a omissão das instituições, conforme apontou um outro estudo do ISA divulgado pela Pública em 2023.

A direita rachou em Itaituba

A prefeitura de Itaituba está, desde 2017, nas mãos de Valmir Climaco (MDB), um declarado incentivador dos garimpos e condenado em 2019 por exploração ilegal de madeira. Numa entrevista ao jornal “O Globo” em 2022, Climaco disse que “demos mais de 500 licenças” aos garimpos “e nunca fomos fiscalizar”.

Reeleito em 2020, Climaco está fora da atual disputa. No seu vácuo, a cena política de Itaituba vive então um profundo racha na direita. O prefeito apoia seu próprio vice na prefeitura, Nicodemos Aguiar (MDB), em uma coligação do tipo salada ideológica que engloba partidos tão díspares, no cenário nacional, quanto o PT e o União Brasil. Nicodemos recebe o apoio do atual ministro das Cidades, Jader Filho (MDB-PA), que é presidente estadual do MDB no estado, e do seu irmão, o governador Helder Barbalho (MDB).

Por que isso importa?

  • A Agência Pública está percorrendo a BR-163, entre os estados de Mato Grosso e Pará, e o município de Itaituba é um dos locais dessa rota onde nossa equipe investiga como o tema das mudanças climáticas e meio ambiente vem sendo discutido nas eleições municipais. A região é extremamente marcada por garimpo, conflitos e desmatamento, com cidades que registram grande adesão ao bolsonarismo.

Até aí, sem novidades, tudo caminhava para repetir a disputa de 2020, quando Climaco derrotou o adversário Ivan D’Almeida, então no PL e hoje no Podemos. Mas houve um abalo nas fileiras do prefeito. A princípio, o nome preferido dos bolsonaristas à prefeitura seria o mesmo D’Almeida. Há dois anos, veio a mexida no tabuleiro. Wescley Tomaz (Avante) decidiu se lançar candidato a deputado estadual. Na época, porém, Wescley era vereador em Itaituba e integrava a base aliada de Climaco na Câmara Municipal. Após o rompimento, Wescley acabou eleito deputado. Agora, com o apoio do PL de Jair Bolsonaro e de outras siglas como Agir, PRD, PSDB e Cidadania, Wescley, 39 anos, se lançou a prefeito.

“Wescley é o nosso candidato a prefeito”, aparece dizendo Bolsonaro, ao lado do deputado, em um vídeo divulgado pelo perfil de Wescley no Instagram na semana passada. A direção nacional do partido de Bolsonaro já destinou R$ 400 mil à candidatura de Wescley (de um total de R$ 479 mil em receitas).

Na atual campanha, portanto, o grupo de Climaco-Nicodemos enfrenta duas oposições à direita: Wescley e D’Almeida. A disputa corre no escuro, pois pesquisas de opinião não estão sendo divulgadas. Mas uma coisa é certa: todos os candidatos defendem a expansão da atividade garimpeira no município, que eles também chamam eufemisticamente de “legalização”.

Na tarde do último sábado, os corredores da TV Tapajoara, afiliada do SBT em Itaituba (PA), fervilhavam com assessores entrando e saindo dos camarins e do estúdio principal do último debate dos candidatos a prefeito. Em frente à emissora, dezenas de cabos eleitorais agitavam bandeiras e gritavam os jingles dos seus candidatos.

No debate, que foi acompanhado pela Pública, os três principais candidatos deixaram explícito seu apoio ao garimpo. Wescley já divulgou inúmeros vídeos e mensagens de apoio aos garimpeiros durante e depois do governo Bolsonaro. Ele costumava ir a Brasília para fazer pressões políticas em torno da pauta mineral, conforme a Pública revelou em 2022.

Durante o debate, o vice-prefeito e adversário Nicodemos revelou o que seriam ligações ainda mais profundas entre Wescley e os garimpeiros. “[Wescley] ganhou para deputado enganando os garimpeiros, dizendo que ia resolver os problemas dos garimpeiros e nunca fez nada pelos garimpeiros. O que ele fez foi terceirizar a energia [elétrica] lá para a família dele na região garimpeira e cobrar energia mais [cara]”, disse o candidato do MDB.

A equipe do candidato Wescley acompanhou o debate em um dos estúdios da TV Tapajoara

A Pública tentou por várias vezes, incluindo pessoalmente no camarim do candidato, na TV Tapajoara, entrevistar Wescley sobre a campanha e o tema ambiental, porém ele preferiu não falar. No sábado, sua assessoria disse que ele só falaria à Pública na semana posterior à eleição deste domingo – a reportagem informou que seria tarde demais, mas a entrevista foi novamente negada.

Embora tenha feito a acusação contra Wescley durante o debate, o próprio Nicodemos não é, de modo algum, um crítico dos garimpeiros. Muito pelo contrário. “Eu quero ser prefeito para manter a Transgarimpeira, inverno e verão, com a estrada trafegável. Eu quero ser prefeito para levar a saúde lá na região garimpeira. Eu quero ser prefeito para continuar levando àquelas pessoas que mais precisam, uma assistência social digna, para aquelas pessoas humildes que precisam do nosso carinho”, discursou Nicodemos no debate.

A Transgarimpeira referida pelo candidato é a estrada de terra no distrito de Moraes de Almeida que dá acesso aos principais garimpos do município.

O garimpo vai continuar funcionando”, diz candidato apoiado por Bolsonaro

Wescley se apresenta como um árduo defensor da expansão imediata da atividade garimpeira na região. No plano de governo registrado na Justiça Eleitoral, ele diz que vai retirar a atividade de licenciamento ambiental das mãos da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e repassá-la à Secretaria de Desenvolvimento Econômico. Promete “trazer a formalidade de volta ao comércio local da mineração”.

Escreveu que, se eleito, vai “criar um programa de regularização para as operações de mineração informais, com incentivos para a formalização e apoio técnico para a adequação ambiental” e também vai “buscar um canal de comunicação com a ANM para desoneração das áreas prioritárias, conforme os dados obtidos em fases anteriores de estudos”.

Durante o debate na TV Tapajoara, Wescley disse que rompeu com Valmir Climaco porque seu governo seria “de esquerda” e, sem citar o nome do presidente Lula, sugeriu que “ele disse que ia acabar com o garimpo e acabou”.

“Primeiro [quero] dizer que nós não vamos acabar com o garimpo. Nós temos mais de 70% das nossas áreas que podem ser documentadas. Infelizmente, a atual gestão perdeu prestígio. Governo federal, governo estadual e o internacional não respeitam mais o garimpeiro de Itaituba”, disse Wescley.

Ele sugeriu que, durante o seu mandato como vereador do município, foi um dos responsáveis pela decisão do Conselho Estadual do Meio Ambiente do Pará que deu aos municípios paraenses o poder de conceder o licenciamento ambiental. Tal poder é alvo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) número 1.104, ajuizada no STF pelo Partido Verde e relatada, ainda sem decisão final, pelo ministro Luiz Fux.

De forma contraditória com o que está dito no seu programa de governo, durante o debate na TV Wescley falou em investir na Secretaria de Meio Ambiente.

“Quero dizer ao povo de Itaituba: o garimpo vai continuar funcionando e nós vamos investir na Secretaria de Meio Ambiente para que ela possa ter condições e estruturações de incentivar o garimpeiro a trabalhar da forma legal e buscar o governo para cá, para ajudar a legalizar o garimpo.”

O terceiro principal candidato na disputa pela prefeitura, Ivan D’Almeida, também tem ligações históricas com o garimpo. Segundo o estudo “O cerco do ouro” (2021), o político, então filiado ao PL de Bolsonaro, também era “dono de garimpo” e afirmava ter sido o primeiro presidente da Associação dos Mineradores de Ouro do Tapajós (Amot). Ainda conforme o estudo, “sua atuação pública pró-legalização de garimpos na região de Itaituba se estende há muitos anos”.

Fiel da Assembleia de Deus, candidato do PSOL pede votos às “regiões garimpeiras”

O único nome de esquerda na disputa pela prefeitura, o “Irmão José Alves” (PSOL), no debate também pediu votos às regiões garimpeiras e disse que “atende” os garimpeiros “há 26 anos”. “E eu quero, no dia 6 de outubro, [ver] o pessoal votar no [número] 50, Irmão José Alves, no [garimpo] Crepurizão, no Jardim do Ouro, no Bom Jardim, na região garimpeira, que eu atendo todo esse pessoal na área da saúde, que até hoje nós temos convênio com vários médicos em Itaituba. […] Eu não estou indo na região garimpeira, mas eu conheço muito por lá também e as pessoas estão levando a mensagem minha através da internet, porque eu não tenho dinheiro.”

Nascido no Maranhão e radicado em Itaituba há 37 anos, José é fiel da igreja Assembleia de Deus, daí o nome que adotou de “irmão”. Ele disse que já foi vigilante e há mais de 30 anos trabalha com uma feira de pequenos produtores rurais no município.

No intervalo do debate, a Pública perguntou ao candidato do PSOL sobre o que ele pensava a respeito dos garimpos, se eles deveriam continuar ou parar em Itaituba.

“A região [é] garimpeira, nós não tínhamos outra fonte de renda em Itaituba. Mas de agora pra frente eu acredito que também vai ter uma fonte na área da agricultura, na área de outros segmentos qualquer. Outras pessoas fazerem novos investimentos que é pra ir maneirando também a outra área, né, a área do garimpo. […] Muita gente trabalhava na região e esquecia da geração de emprego e renda na outra área, como na agricultura, um saneamento de qualidade e tudo. Eu acredito que essa demanda ficou pra trás. A Bíblia me diz que o senhor não deve olhar pra trás, né? Quem olhou pra trás foi a mulher de Ló, e ela virou uma estátua. Então eu acredito que nós temos que caminhar pra frente de acordo com o nosso sistema nacional, estadual e municipal.”

Além de Wescley e de Nicodemos, que foram procurados e negaram entrevistas, a Pública também tentou várias vezes, inclusive pessoalmente, entrevistar o prefeito Valmir Climaco, mas ele argumentou acúmulo de compromissos na sua agenda nos quatro dias em que a reportagem esteve em Itaituba.

Edição: | Fotógrafo:
Magno Borges/Agência Pública
José Cícero/Agência Pública
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