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Neto de liderança assassinada em 2023 e filho de Binho, morto em 2017, denuncia que Estado não protegeu sua família

Reportagem
17 de outubro de 2024
16:02

Liderança quilombola na comunidade de Pitanga dos Palmares, em Simões Filho, na Bahia, Wellington Santos Pacífico, de 23 anos, discursou, na última terça, 15 de outubro, em sessão na sede da Organização das Nações Unidas, em Nova York, nos Estados Unidos. Ele é neto da Mãe Bernadete, como era conhecida Maria Bernadete Pacífico, liderança local e coordenadora da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq). Ela foi assassinada em sua própria casa em agosto de 2023 por dois homens armados, que dispararam 25 vezes contra a senhora. Na ocasião, Pacífico e outras duas crianças da família estavam em casa com Bernadete.

Na ONU, Pacífico pediu ajuda internacional para alcançar justiça para os povos quilombolas. “Pedimos que acompanhem os casos de crimes contra a vida de nossos líderes e coloquem pressão internacional sobre o governo brasileiro para garantir que nossos direitos sejam garantidos e nossos perpetradores sejam punidos com toda a força da lei”, discursou. 

O rapaz foi convidado pela relatora especial sobre a situação dos defensores dos direitos humanos, Mary Lawlor – que visitou o quilombo em abril deste ano. Ele disse que a comunidade e as lideranças se sentem inseguras depois da morte do pai dele, Flávio Pacífico, o Binho, de 36 anos, em 2017, e da avó, no ano passado.

Por que isso importa?

  • Mãe Bernadete era líder quilombola e coordenadora da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq).
  • O município onde está o quilombo de Pitanga dos Palmares, Simões Filho, foi o quinto mais violento do país no Anuário Estatístico de Segurança Pública (2023).

Na sessão na ONU, Pacífico, que está no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), disse que não se sente seguro no Brasil. “Enquanto os chefes de Estado, um após o outro, se alinharam no mês passado para reafirmar seus compromissos com os ODS [Objetivos de Desenvolvimento Sustentável], nós que tentamos garantir que nosso planeta permaneça viável, estamos em sério perigo”, afirmou em discurso lido em inglês. “Pagamos um preço terrível por isso [a defesa dos direitos humanos]”.

A dor do rapaz começou na manhã do dia 19 de setembro de 2017, quando o pai, Flávio Pacífico dos Santos, o Binho do Quilombo, de 36 anos, foi assassinado perto de casa com 16 tiros. “Quando cheguei lá, vi muitas pessoas na rua e o carro de um dos nossos maiores líderes estava coberto de lonas […] Um negro e defensor dos direitos humanos quilombola, que lutava por justiça social e reparações históricas […]. Sua vida foi tirada por pistoleiros cujos mandantes ainda não conhecemos”, discursou. O processo corre em segredo de justiça. Em julho, a Polícia Federal divulgou que havia prendido dois suspeitos do crime.

“O Estado falhou”

Em entrevista à Agência Pública, antes da viagem para Nova York, Pacífico disse que a família não sabe o que está sendo investigado, mas imagina que pode haver diferentes envolvimentos. “Eu penso que esse assassinato, essa covardia que fizeram com meu pai, tem tanta gente poderosa envolvida que até esse sigilo é extremamente respeitado e blindado. Nem a família sabe o que está acontecendo, ninguém tem acesso às informações”, disse.

No discurso na ONU, Pacífico recordou que, depois da morte do pai, a avó passou a fazer parte do PPDDH, desenvolvido pelo governo federal e administrado pela sociedade civil. “Ela continuou exercendo a liderança sem meu pai. Mas, desta vez, ela estava contando com essa proteção e se sentiu segura. Infelizmente, esse sentimento foi apenas um erro”, lamentou, na fala aos estrangeiros.

Bernadete foi assassinada quase seis anos depois, em 17 de agosto de 2023. Pacífico estava com a avó e com mais duas crianças da família assistindo à TV na sala. Quando os executores entraram, as três testemunhas foram trancadas nos quartos e os criminosos ficaram apenas com a idosa. “Eu estava lá. Não havia nada que eu pudesse fazer além de ouvir os tiros e sentir o cheiro da pólvora queimando no ar. Os buracos de bala em seu rosto fazem parte de uma imagem que nunca sairá da minha mente”, recorda o rapaz.

Pacífico afirmou que as câmeras de segurança instaladas pelo programa de proteção estavam quebradas. “O Estado falhou novamente e continua falhando sem fornecer reparações adequadas para nossa família e quilombo. Ainda somos economicamente e socialmente vulneráveis”, afirmou. 

Um exemplo que ele citou foi a presença da Colônia Penal de Simões Filho nas proximidades do quilombo. Ele aponta que isso contrasta com a falta de escolas de ensino médio nas imediações. Para ele, a falta de regularização fundiária está intimamente relacionada aos crimes contra quilombolas. Ele lembrou que, entre 2018 e 2022, pelo menos 30 lideranças foram mortas no país. 

“Está claro que a solução para a maioria dos problemas que enfrentamos está na Justiça, em todas as suas formas. Mas não podemos fazer isso sozinhos. Precisamos de aliados fortes, e é por isso que contamos com as Nações Unidas”, disse. 

Pitanga dos Palmares tem área urbana e rural na cidade de Simões Filho, na região metropolitana de Salvador. Lá vivem cerca de 3 mil pessoas. 

Além de Wellington Pacífico, o tio, Jurandir Pacífico, de 44 anos, filho de Bernadete, também está no programa de proteção do Estado. Jurandir acredita que está sob risco. Para a comunidade, ele lamenta a falta de iluminação, da escola de ensino médio, do saneamento básico e do transporte público. “A comunidade de Pitanga dos Palmares, que será titulada em breve, sofre esses anos todos pela falta de política pública, principalmente na esfera municipal”, reclama. 

O Instituto Nacional de Colonização e de Reforma Agrária (Incra), em nota à Pública, explicou que o território já foi reconhecido e, agora, o próximo passo será “a publicação dos decretos de interesse social, a serem expedidos pela Presidência da República, dos imóveis rurais particulares inseridos no território”. Para Jurandir, a luta de Bernadete pela titulação das terras foi o que motivou a morte da liderança quilombola. 

A investigação policial na Bahia, porém, chegou à conclusão de que os autores do crime eram ligados ao tráfico de drogas e teria sido motivado pela atuação da idosa em defesa da comunidade. O inquérito policial indiciou seis pessoas pelo envolvimento na morte de Bernardete: dois executores, dois mandantes e outros dois participantes.

Para a Pública, o Ministério Público da Bahia avaliou que a investigação ocorreu de forma adequada e, nos autos do processo judicial, todos os documentos apontam para a culpa de integrantes do tráfico de drogas. A polícia e o Ministério Público da Bahia afirmam que estão foragidos Marílio dos Santos e Josevan Dionísio. Quatro homens já foram presos.

Anteriormente, o advogado David Mendez, que representa a família, havia dito que Bernadete sofria ameaças de madeireiros, os quais teriam sido denunciados por extração ilegal de madeira na comunidade.

Município onde vivia Mãe Bernadete é o quinto mais violento do Brasil

Para Wellington Pacífico, o único caminho para que a população se defenda é a educação. “As gerações mais jovens precisam se proteger das informações falsas que correm nas redes sociais. É necessário inserir na educação básica os alicerces da educação política e do letramento racial.”

Ele avalia, por exemplo, ser necessário que a sociedade que luta por uma escola antirracista deve exigir que seja cumprida a obrigatoriedade do que foi definido na Lei 10.639, que trata da obrigatoriedade do ensino da história afro-brasileira e africana nas escolas. 

“A comunidade, logo após a inauguração desse presídio, passou por transformações e deixou de observar aquele lugar tranquilo e pacato”, afirma Pacífico.

A instalação da Colônia Penal de Simões Filho, em 2007, pode ter provocado uma situação semelhante ao que ocorreu em Jequié, também na Bahia, que viu surgirem grupos do crime organizado e tráfico de drogas, tornando a cidade uma das mais violentas do Brasil. 

Simões Filho não é diferente. Segundo o último Anuário Estatístico de Segurança Pública (2023), o município é o quinto mais violento do Brasil, com 75,9 assassinatos a cada 100 mil habitantes.

“Após um ano que minha avó foi assassinada, eu gostaria de ter visto mudanças positivas para honrar a memória e a luta que ela teve e medidas mais urgentes em relação à segurança pública”, diz Pacífico.

Quando o rapaz tinha 18 anos, conseguiu passar no vestibular da Universidade Federal da Bahia (UFBA), no curso de ciências sociais. Só que optou por trabalhar, já que tinha perdido o pai em 2017. “Eu entendi o meu papel de filho mais velho naquele momento. Os anos se passaram e eu continuei acompanhando minha avó.” Depois do assassinato de Bernadete, Pacífico resolveu honrar o legado da família para trabalhar pela associação dos moradores. 

Comunidade se queixa de falta de políticas públicas

O trabalho da família Pacífico é, dentro do possível, lutar a cada dia por conquistas que impactam a comunidade. O tio, Jurandir, reclama que a iluminação pública ainda não é o suficiente. “A cada 30 metros era para ter um poste iluminado. Durante a eleição agora, colocaram uns braços de luz em algum lugar, mas mesmo assim está escuro”, diz. 

A reportagem da Pública esteve na comunidade e ouviu os moradores, que ainda estão assustados com a violência e concordam que a iluminação não é o suficiente. A família do pedreiro José Ricardo Souza, de 42 anos, e da esposa, Carolina Moura, de 29, “acostumou-se” com a escuridão e com a falta de transporte, que passa somente duas vezes ao dia para levar e trazer as crianças da escola. 

“Os candidatos aparecem nessa época, mas sabemos que não estão interessados em nos ajudar. Nossa vida é muito caseira. Não tem como ir longe daqui”, diz Souza. A esposa sente falta da companhia de Bernadete. “Ela queria ajudar todo mundo. Não havia tempo ruim para ela”, relembra.

Outro lado

Questionada, a prefeitura de Simões Filho não respondeu sobre as queixas a respeito da prestação de serviços. 

A Secretaria de Igualdade Racial da Bahia garante que as comunidades quilombolas “sempre tiveram centralidade na agenda da política de promoção da igualdade racial”. 

O órgão acrescentou que o governo da Bahia trabalha de forma transversal para garantir os direitos territoriais e o acesso a serviços básicos, como educação, saúde, cultura, saneamento básico, segurança pública e assistência social para as comunidades quilombolas, “considerando o passivo acumulado nestes 136 anos após a abolição formal da escravidão”. Veja a resposta completa aqui.

Já o secretário nacional de Políticas para Quilombolas, Ronaldo dos Santos, respondeu que o Brasil tem um histórico de violência no campo que não está sempre nos noticiários. “A disputa agrária no Brasil já fez muitas vítimas, e as vítimas são sempre os chamados grupos minoritários”, aponta. 

Ele considera que o governo federal passado, de Jair Bolsonaro (PL), foi marcado ainda por uma incitação à violência no campo, com um discurso da necessidade de autodefesa e de mais armamentos. Ele defendeu a necessidade de intensificar os programas de segurança porque essas lideranças ficam muito expostas e vulneráveis a essa “mentalidade”. “Também [é preciso] intensificar a política de regularização fundiária porque a gente sabe que a regularização protege muito as comunidades dessas ações violentas no campo.”

Edição: | Fotógrafo:

Esta reportagem foi financiada graças ao programa de bolsas para jornalismo investigativo da Meedan.

Arquivo pessoal
Marcello Hendriks/Agência Pública
Marcello Hendriks/Agência Pública
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Marcello Hendriks/Agência Pública
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Arte sobre foto de Walisson Braga/Agência Brasil/Conaq
Marcello Hendriks/Agência Pública
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