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O rastilho de pólvora até o cadáver na Praça dos Três Poderes

O suicídio de Francisco Wanderley Luiz reflete a radicalização e violência alimentadas pelo bolsonarismo

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20 de novembro de 2024
06:00

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Na noite da última quarta-feira (13), eu e o colega na Agência Pública Caio de Freitas nos dirigimos à Praça dos Três Poderes a tempo de ver de longe – a área mais próxima já estava interditada pela polícia – o cadáver do catarinense de 59 anos Francisco Wanderley Luiz estendido no chão de pedras portuguesas.

Ao nosso lado, um cidadão de barba, com paletó e chapéu pretos, carregando na lapela um broche em forma de um revólver dourado, começou a gravar um vídeo para seu perfil no Instagram. Ele pediu ao seu auxiliar que desse “um zoom” no local em que o corpo estava. “[Hoje] tivemos diversas pautas armamentistas importantes e não estamos entendendo o que aconteceu aqui. Duas explosões e uma morte. Isso precisa ser investigado com muito rigorismo”, disse o homem aos seus seguidores.

Depois fui saber que é um deputado estadual do União Brasil e delegado de polícia no Paraná chamado Tito Barichello, que se apresenta como “Delegado Xerifão”. Nas suas publicações, exibe como marca o desenho de uma caveira com chapéu. O parlamentar é um bolsonarista fervoroso que defende a ampliação do acesso às armas pelos colecionadores, atiradores desportivos e caçadores (CACs).

Horas depois, com a divulgação das imagens de câmeras de vigilância, foi possível confirmar que Francisco Wanderley Luiz, um chaveiro de Rio do Sul (SC), jogou dois artefatos explosivos na direção do prédio do Supremo Tribunal Federal (STF) antes de se deitar na praça e se matar com um explosivo colocado perto da cabeça.

Filiado ao PL do ex-presidente Jair Bolsonaro, ex-candidato a vereador pelo partido, Luiz era bolsonarista empedernido e radicalizado. Disse à sua ex-mulher que gostaria de matar o ministro do STF Alexandre de Moraes, escreveu ameaças a diversas pessoas e autoridades e prometeu destruir, com “TNT”, a bela escultura A Justiça, feita por Alfredo Ceschiatti (1918-1989) a partir de um bloco de granito que se tornou um dos ícones de Brasília desde que foi colocada, em 1961, na frente do Supremo.

Luiz é o retrato acabado da radicalização política trilhada pela extrema direita brasileira nos últimos anos. Contaminado por ódio, intolerância e desinformação, Luiz entrou num labirinto niilista sem saída. Sua radicalização chegou a tal ponto que a única resposta que encontrou para os problemas políticos que ele julgava existir no Brasil, em especial no Judiciário, era a sua própria extinção. A destruição do sistema político vigente, pregada amplamente pelo bolsonarismo, passou então pela destruição do próprio ser humano Luiz. Ele foi um suicida político.

Horas depois das explosões, Bolsonaro rapidamente correu para tirar o cadáver do seu colo. Condenou a violência, mas propôs uma “reflexão” das instituições em busca de uma “pacificação”. Dessa forma, indiretamente acabou por legitimar o ato de Luiz como um recado que precisa ser “refletido” pelas autoridades.

Bolsonaro continua, assim, pregando a saída violenta como ferramenta válida na disputa política. Sugere que as instituições estão a serviço de uma agenda oculta, obviamente contrária a ele e seu grupo político, e que a “normalidade” só voltará quando isso for “pacificado”. Tendo em conta as várias investigações nas quais é alvo na Polícia Federal, trata-se de uma chantagem política que agora ele quer disfarçar como pacifismo.

Bolsonaro se tornou presidente da República exatamente com um discurso disruptivo, divisivo e mentiroso. Apresentou soluções fáceis para problemas complicados. Numa mente confusa como parecia ser a de Luiz, com dificuldades óbvias de lidar com seus sentimentos, mensagens simplistas ganham amplo espaço para germinar e frutificar.

Uma das ideias centrais do bolsonarismo é a violência como forma de intervenção na arena política. Isso está fartamente documentado nos discursos e atos de Bolsonaro.

É um longo caminho que começa lá na segunda metade dos anos 1980, quando Bolsonaro foi acusado de tramar a explosão de bombas no Rio de Janeiro a fim de abalar o Comando do Exército e o próprio governo civil de José Sarney. Tudo porque ele queria um aumento salarial.

O culto à violência permeia a carreira de Bolsonaro, a começar pela “arminha” que faz com as mãos. Em 1998, na Câmara dos Deputados, disse que “a cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a Cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema no país”.

Em 1999, Bolsonaro disse que o voto “não vai mudar nada neste país”. “Só vai mudar, infelizmente, se um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez: matando uns 30 mil, começando pelo FHC, não deixar para fora não, matando! Se vai morrer [sic] alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente.”

Na mesma ocasião, esclareceu que era “a favor, sim, de uma ditadura, de um regime de exceção”.

Em 2003, afirmou que “enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo”. Cinco anos depois, lamentou que “o erro da ditadura foi torturar e não matar”.

Especialmente a partir de 2016, na época do impeachment de Dilma Rousseff, Bolsonaro explorou mais e mais a saída violenta no seu discurso. Repetiu que o torturador da ditadura Carlos Brilhante Ustra era “um herói”. Em 2017, defendeu que “as minorias têm que se curvar às maiorias. As minorias se adequam ou simplesmente desaparecem”.

Em agosto de 2018, já candidato à Presidência, disse o seguinte: “[O apóstolo] Paulo fala: ‘venda suas capas e compre espadas’. Está na Bíblia. É que naquele tempo [da Bíblia] não tinha arma de fogo, senão com toda certeza seria ponto 50 e fuzil”. A citação, aliás, está errada (algo semelhante não está em Paulo, mas no Evangelho de Lucas).

Cinco meses antes, em março, a caravana do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva havia sofrido um atentado a tiros numa estrada no Paraná.

Em 1º de setembro do mesmo ano, durante um comício em Rio Branco (AC), Bolsonaro pegou o tripé de uma câmera de vídeo e fingiu que era uma metralhadora. “Vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre”, incentivou.

A mensagem de intolerância e truculência de Bolsonaro foi captada por diferentes ouvintes e entendida de formas variadas. Apenas cinco dias depois do discurso no Acre, Adélio Bispo de Oliveira, que vivia entrando e saindo de empregos, de pedreiro a sushiman, tentou matar Bolsonaro com uma facada na barriga em Juiz de Fora (MG). A investigação da polícia concluiu que Adélio agiu sozinho e era portador de transtorno delirante persistente. O inquérito policial apontou que Adélio foi movido por “inconformismo político” a respeito das posições políticas de Bolsonaro.

(Não há comparação possível entre aquele atentado e o recente suicídio na frente do STF. Em 2018, não havia nenhum líder político expressivo da esquerda incentivando a extinção da democracia ou o assassinato de opositores políticos, incluindo Bolsonaro.)

Três semanas depois, o mestre de capoeira Romualdo Rosário da Costa, o Môa do Katendê, eleitor de Fernando Haddad (PT), foi assassinado a facadas por um bolsonarista, Paulo Sérgio Ferreira de Santana, após uma discussão sobre a preferência política do capoeirista.

Esses fatos em nada mudaram a estratégia política de Bolsonaro de confrontar as instituições e o processo eleitoral. Dia após dia, elevou o tom contra o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o STF. No segundo turno das eleições, disse nada menos que isto: “Não aceito resultado diferente da minha eleição”.

Na mesma época, circulou um vídeo no qual um de seus filhos, Eduardo Bolsonaro (então PSL-RJ), apareceu dizendo que, para “fechar o STF”, basta mandar “um soldado e um cabo”. Seu irmão, Carlos Bolsonaro (PSC-RJ), escreveu em rede social que “por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos”.

Mesmo eleito e empossado na Presidência dentro de todo o sistema há muito estabelecido, Bolsonaro continuou questionando o processo eleitoral e jogando seus eleitores contra o STF e o TSE.

A crescente violência política continuou fazendo vítimas em diferentes partes do país. Ainda que nem todos os casos fossem praticados por bolsonaristas, instalou-se um clima de hostilidade permanente até em manifestações políticas das mais singelas.

Em 2019, Antônio Carlos Rodrigues Furtado, de 61 anos, morreu após ter sido agredido por um “simpatizante da direita” e eleitor de Bolsonaro. Em julho de 2022, o então policial penal e bolsonarista Jorge Guaranho invadiu uma festa e matou a tiros o aniversariante e admirador de Lula Marcelo Arruda, guarda municipal e tesoureiro do PT em Foz do Iguaçu (PR). Em setembro passado, apenas dois anos depois do crime, Guaranho foi autorizado pela Justiça a cumprir prisão domiciliar.

Ao longo de todo o seu mandato na Presidência, Bolsonaro atiçou a indisciplina nas Forças Armadas, colocou em dúvida a isenção do TSE e a integridade das urnas eletrônicas e mandou mensagens enigmáticas para tornar seu eleitorado ficar em prontidão para algo grave que estava prestes a acontecer. Em junho de 2020, um grupo de extrema direita pró-Bolsonaro denominado “300 do Brasil” soltou fogos contra o prédio do STF e fez ameaças a ministros do tribunal.

Com a possibilidade de uma derrota eleitoral cada vez mais concreta em 2022, Bolsonaro ameaçava virar a mesa e não aceitar o resultado. Promoveu reuniões golpistas com militares e civis, como a realizada em julho de 2022 no Palácio do Planalto e depois denunciada, em acordo de delação premiada, pelo seu ex-auxiliar Mauro Cid.

No final de outubro, o aliado de Bolsonaro e ex-deputado federal Roberto Jefferson arremessou três granadas e deu cerca de 50 tiros de fuzil contra uma equipe da Polícia Federal que foi prendê-lo por diversas ameaças que fez a ministros do STF.

No início daquele mês, numa live na internet, Bolsonaro disse aos seus seguidores: “Não preciso dizer o que estou pensando, mas você sabe o que está em jogo. Você sabe como você deve se preparar, não para o novo Capitólio, ninguém quer invadir nada, mas sabemos o que temos que fazer antes das eleições”. Estava em curso toda uma tramoia golpista, já fartamente investigada e exposta pela Polícia Federal.

O eleitorado de Bolsonaro respondeu à derrota eleitoral a princípio com o bloqueio de rodovias, sobre o qual o presidente evitou, até quando foi possível, uma condenação expressa. Em paralelo, foram instalados acampamentos na frente de unidades militares que os comandantes do Exército aceitaram passivamente. Os bolsonaristas queriam dar um golpe militar com o termo eufemístico de “intervenção”, uma inconstitucionalidade.

No final de 2022, descobriu-se um complô terrorista que quase detonou uma bomba nas proximidades do aeroporto internacional de Brasília. Dias antes, um grupo bolsonarista tentou invadir o prédio da Polícia Federal em Brasília e incendiou carros e um ônibus. Bolsonaro se recusou a passar a faixa presidencial e voou para os EUA. Em 8 de Janeiro, veio o ataque massivo frontal e uma grande destruição nos prédios representativos dos três Poderes: Palácio do Planalto, STF e Congresso Nacional.

Não há evidências, até o fechamento deste texto, de que Francisco Wanderley Luiz tenha participado de uma conspiração mais ampla com outras pessoas e financiadores para cometer o ato de 13 de novembro.

Bolsonaro pode não ter acendido, como de fato não acendeu, o pavio do explosivo que matou Luiz. Mas o rastilho de pólvora até sua morte foi espalhado muito antes. O autor dessa marcha insensata tem nome e sobrenome.

Muito embora os políticos bolsonaristas possam garantir aos seus seguidores, perto do cadáver de Luiz, que “não estamos entendendo o que aconteceu”.

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