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Família achou ter ganhado chance de defender pedido de tratamento de filho caçula nos EUA, mas não pode voltar para casa

Reportagem
14 de fevereiro de 2025
04:00

“Papai, eles estão falando que nós vamos embora para o Brasil”, disse Brayan, de 10 anos, aos pais, Alisdete Santos e Sandra Souza. A família havia acordado cedo para chegar às 8h30 em um Centro de Remoções da Polícia de Imigração e Alfândega dos Estados Unidos (ICE), em Miramar, sul da Flórida, a cerca de 53 km de onde viviam. Como os adultos não falam inglês, coube ao filho mais velho do casal entender o que diziam os agentes migratórios. 

“Eu desabei, sabe? Eu não esperava”, disse Sandra à Agência Pública. “Eu não me considerei uma ameaça para eles”, acrescentou.

“Fomos enganados”, resumiu Alisdete. Quando o filho o comunicou do real motivo da visita, ele se arrependeu de seguir as regras: “Desde quando eu cheguei, eu sempre andei certo. Nos Estados Unidos, quem anda certo, vocês podem ter certeza, a maioria é deportado. Eles falam que é quem apronta, [mas] é o contrário, porque quem apronta já sabe que está aprontando e fica sempre correndo. A gente que está sempre [se] apresentando vira alvo”, desabafou. 

Por que isso importa?

  • Migrantes indocumentados têm sido criminalizados por governos extremistas, que os desumanizam para justificar medidas que desrespeitam seus direitos.
  • Os primeiros casos de deportação no governo Trump já comprovam que a realidade é outra.

Além da necessidade de se apresentar periodicamente ao ICE, o brasileiro era acompanhado pelas autoridades desde que entrou no país e solicitou refúgio. Antes da deportação, ele usava tornozeleira e era rastreado via aplicativo – medidas comuns para acompanhar o deslocamento de migrantes indocumentados no país. A família se mudou para os EUA em 2021, quando a pandemia dificultou a busca por emprego. “Tinha muita coisa para pagar e não estava dando”, disse Sandra. Eles combinaram a viagem pela fronteira com México por meio de um coiote – como são conhecidos os contrabandistas de pessoas.  

A história da família de Alisdete e Sandra contrasta com a narrativa defendida pelo presidente republicano Donald Trump, que tem criminalizado os migrantes para justificar sua ofensiva de deportações. Em 27 de janeiro, por exemplo, ele disse sobre os deportados: “Cada um deles é um assassino, um traficante, algum tipo de chefão do crime, um chefe da máfia ou um membro de gangue”.

Do local, naquele dia 23 de janeiro, a família seguiu direto para o avião, para uma viagem que só terminaria no dia 26. Não houve tempo de passar em casa nem de recuperar pertences conquistados durante os mais de três anos nos Estados Unidos. O plano de comemorar o aniversário do filho caçula do casal, Gael, que fazia 4 anos naquele mesmo dia, acabou cancelado.

“Armadilha” usou esperança de família por tratamento de criança

Quando saíram de casa, na cidade de Pompano Beach, por volta das 7h, Sandra e Alisdete tinham outra expectativa para o dia. A família já havia recebido uma ordem de deportação em 2022, mas estava em processo de recurso e acreditava que havia conseguido uma oportunidade de apresentar argumentos e documentos probatórios para buscar o direito de permanência legal por mais tempo no país sob justificativas “humanitárias”. Os brasileiros alegavam a necessidade de continuar um tratamento para Gael, que tem autismo e dificuldade de comunicação.

O encontro com as autoridades na manhã daquela quinta-feira havia sido marcado 15 dias antes por meio de uma chamada telefônica. Entretanto, diferentemente das outras visitas, na qual Alisdete compareceu sozinho representando a família, o agente pediu que todos se apresentassem “para tirar fotos”. O brasileiro achou estranho, mas decidiu cumprir a ordem.

A instrução foi para que eles levassem documentos que comprovassem os pedidos, incluindo informações sobre a neurodivergência de Gael e seu histórico médico. Durante a preparação, os pais juntaram “500 folhas” com informes de saúde do caçula, além de registro de matrícula de Brayan na escola e depoimentos de amigos e outros integrantes da comunidade em favor de seu caráter e participação em atividades comunitárias. 

“Eu endoidei o neurologista dele, a pediatra, todo mundo. Todo mundo me deu um relatório falando da situação dele, que [o tratamento] já estava em andamento, que já estava evoluindo bem, porque ele estava fazendo a terapia ABA [Análise do Comportamento Aplicada ao Autismo] em casa todos os dias. A moça ficava lá em casa horas, ficava de 9h às 14h, todos os dias”, explicou Sandra.

Apesar de ser o motivo primordial para o pedido de permanência no país, Gael não era o único em tratamento. Naquele dia, Sandra estava no meio de um exame para detalhar uma condição relacionada ao estresse, caracterizada por convulsões e fortes dores de cabeça. Ela foi à reunião com a cabeça repleta de fios de ao menos oito cores, cobertos por uma touca branca e algumas gazes, ligados a um aparelho, que acompanharia sua atividade mental até o dia seguinte, enquanto uma equipe a acompanharia por meio de uma câmera. 

“A incerteza e a tensão emocional causadas pela nossa situação de imigração tiveram um impacto significativo na minha saúde física”, argumentava ela em um dos documentos.

Alisdete também estava sendo acompanhado, pois no fim de 2024 havia passado três dias hospitalizado com suspeitas de um ataque cardíaco. “Esta situação adicionou um impacto emocional significativo e pressão financeira sobre a nossa família”, explicou a família em um dos documentos. 

Enquanto as duas crianças haviam sido incluídas no Medicaid, plano público dos EUA, os adultos pagavam por seus tratamentos no sistema de saúde mais caro do mundo, segundo o Commonwealth Fund.

“Mais uma vez peço misericórdia em nome dos meus filhos e da minha esposa, que são a minha vida. Eu sigo todas as regras do ICE e minha família não representa nenhum risco para os Estados Unidos. Pelo contrário, sempre nos esforçamos para dar o nosso melhor à nossa comunidade e trabalhamos duro para retribuir o apoio que recebemos desde a nossa chegada”, pedia Alisdete em um documento. 

O esforço foi em vão. As autoridades não os ouviram nem analisaram os documentos. “A gente foi atraído com essa esperança do caso de Gael ser aceito para gente ficar mais um tempo. Chegou lá e acabou tudo”, finalizou Sandra. 

Além dos argumentos médicos, a família pedia uma segunda chance às autoridades, pois teria tido seu processo de regularização do status migratório supostamente lesado por um advogado, que não teria prestado os serviços combinados e perdido prazos do processo. Denúncias de aplicação de golpes a migrantes por pessoas que se dizem advogados são comuns e afligem uma população já vulnerável. 

A reportagem pesquisou o nome do suposto advogado e de seu escritório na lista de profissionais credenciados na Flórida e a busca não gerou resultados. O site indicado por ele em seu email não existe. Após o retorno da família com cobranças, ele teria parado de responder.

Um golpe que atinge bem mais que uma família

Passadas algumas horas, as pessoas começaram a sentir falta dos quatro integrantes da comunidade brasileira. Quando as preocupações dos amigos e vizinhos começaram a chegar ao pastor Marcelo Pompeu, responsável pelos cultos para a comunidade brasileira na Church on Atlantic Português, em Margate, na Flórida, ele pensou que a família deveria ter viajado a algum lugar ou saído para comemorar o aniversário do caçula. “E o pessoal da igreja me ligando: ‘Cadê eles? Cadê eles?’.” 

No outro dia, Marcelo resolveu ir à casa da família. “Eu passei lá às seis e meia da manhã, não vi o carro deles. E o Brayan também não foi à escola, que a minha filha não viu ele lá. Aí realmente eu fui ficando mais apavorado.”

Parado na frente da casa, o pastor chamou a polícia e decidiu entrar na antiga moradia da família. Logo na entrada, assustou-se quando viu uma câmera ligada, parte do acompanhamento do exame de Sandra. Seguiu para os quartos, sala, cozinha, tudo normal, mas entrou “realmente em parafuso” quando encontrou os passaportes do casal. “Toda pista que eu tinha, eu não tenho mais”, pensou. Cogitou fazer um boletim de ocorrência, mas o policial disse que, naquele caso, não faria diferença. As autoridades migratórias também disseram não saber se algo havia acontecido.

A angústia da comunidade durou até o dia 25, dois dias depois do início da deportação, quando Sandra, em um grupo de WhatsApp, explicou o que se passou. Às 19h do sábado, ele fez uma nota oficial da igreja e informou a comunidade.

Nesse intervalo de dois dias, o laboratório dono do aparelho que examinava Sandra também estava preocupado, já que ela havia encerrado o exame sem comunicá-los. Às 14h13, eles enviaram uma mensagem pedindo que ela os informasse assim que chegasse em casa após reunião. O retorno só veio dois dias depois: “Fomos deportado [sic]”.

Volta ao Brasil: calor, fome, uma longa espera e um medo coletivo

Foi quando esperavam o momento de embarcar para Belo Horizonte, na madrugada do dia 24, no estado da Luisiana, que Sandra ficou mais tensa. Eles já haviam voado da Flórida na noite anterior e não tinham do que reclamar, mas o cenário era outro. “No aeroporto, eu vi aquele pessoal tudo subindo, corrente no pé, na mão, de todo jeito. Aí eu surtei.” 

Uma das últimas a embarcar, a família e algumas outras pessoas não foram algemadas, pois estavam com crianças. O uso de algemas na deportação de migrantes indocumentados não está ligado ao cometimento de crimes. Trata-se de uma imposição antiga dos EUA, que já foi questionada pelo Itamaraty algumas vezes, sem resultados. 

O avião parou duas vezes em sua viagem de volta ao Brasil. A primeira parada foi no Panamá, para reabastecimento, onde o avião que trazia 88 migrantes indocumentados ficou por algumas horas antes de levantar voo – o que fez com dificuldade. Pouco depois, o voo pousou em Manaus, já em terras brasileiras, por problemas técnicos. Foi na segunda parada que parte dos migrantes, algemados há horas, começou a protestar contra as condições às quais estavam sendo submetidos. Dentro do avião fazia muito calor e alguns migrantes relataram ter ficado horas sem comer. 

“Ficou mais de três horas lá parado e não resolvia nada. [O avião] ficava andando pra lá e pra cá e não fazia nada. Aí as crianças começaram a chorar. O meu maior, ele tem asma. Ele tava sentindo muita falta de ar, e aí os meninos lá atrás começaram a xingar: ‘Não tá respeitando nem as crianças’”, explicou Sandra.

Para Alisdete, a situação foi apavorante. “A gente viu que tinha algo errado. Quando o avião pousou, a gente viu que não estava tendo força para decolar, e eles tentavam decolar. Eles pegou a pista para começar a decolar e o avião não estava seguindo, não estava tendo força para pegar voo, mas eles tentou [sic] de toda forma, aí essa hora que começou todo mundo apavorar, aí não deixou o avião decolar”, explicou.

Quando alguns migrantes saíram do avião, a Polícia Federal (PF) foi chamada e o governo decidiu enviar um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) para buscar os migrantes e levá-los até o destino, em Minas Gerais. Entretanto, mesmo já desembarcado, Brayan seguia passando mal. A exposição ao calor intenso e ao caos na aeronave fez com que ele tivesse de ser levado por seu pai ao pronto-socorro em Manaus, onde ele foi medicado. 

Gael também ficou muito assustado. “Se gritar aqui dentro de casa, ele já fica apavorado, imagina 80 pessoas gritando, 100 pessoas, não é fácil”, disse Alisdete.

Naquele dia, a família dormiu no aeroporto, em colchões que foram colocados no chão. A viagem continuou na tarde seguinte. Após chegar em Belo Horizonte por volta das 21h, o grupo ainda enfrentaria ao menos mais nove horas de viagem de ônibus para chegar à cidade onde viviam, Itambacuri (MG), no Vale do Mucuri. Sem apoio governamental, os migrantes que chegam até o aeroporto de Belo Horizonte têm que buscar seus próprios meios de viajar até suas cidades, sejam elas no estado ou não. A família viajou até Itambacuri com passagens compradas a partir de uma doação.

Em nota, o Ministério das Relações Exteriores (MRE) afirmou que o governo está atuando “para garantir regresso digno e seguro” dos migrantes deportados. Após os incidentes no voo que trouxe a família de Alisdete e Sandra, o Executivo criou um grupo de trabalho com membros brasileiros e estadunidenses para discutir os futuros procedimentos. O último voo de deportados que chegou ao Brasil, em 7 de fevereiro deste ano, pousou em Fortaleza, no Ceará, para reduzir o tempo em que brasileiros permanecem algemados. Um avião da FAB terminou o translado até a capital mineira. 

A reportagem questionou o MRE se haveria alguma mudança na política de acolhimento dos migrantes para levá-los à sua cidade de origem, mas o ministério não respondeu a essa questão. 

O casal e outros migrantes agora pretendem processar a empresa que conduziu as deportações em nome dos Estados Unidos, a Global X. “Faltou o respeito, a gente não teve dignidade”, justificou Alisdete. “A gente não pode esperar que outras pessoas façam [essa nossa defesa], então a gente mesmo que tem que fazer isso”, concluiu Sandra. 

Migrantes planejam processar a empresa Global X, contratada pelo governo dos EUA para conduzir deportações
Migrantes planejam processar a empresa Global X, contratada pelo governo dos EUA para conduzir deportações

Realidade e recomeço no Brasil

Já em sua cidade natal, Alisdete e Sandra agora estão em busca de resolver as primeiras burocracias da volta à vida, como encontrar um auxílio médico para Gael e se reorganizar em sua nova moradia. Algumas dúvidas, sobre como pagar o resto da dívida com o contrabandista contratado para a ida aos EUA em 2021, seguem. “Tem que conversar, porque agora não tem mais de onde sair”, disse Sandra.

Assim como outros migrantes brasileiros entrevistados pela Pública antes da posse de Donald Trump, tanto Alisdete quanto Sandra duvidavam de que o atual presidente fosse aplicar as políticas anti-migratórias que prometeu em campanha, como a promessa de deportar 1 milhão de migrantes por ano.

“Eu achei que aquilo fosse só coisa para ganhar politicamente. E também ele bateu muito na tecla que seria deportar a pessoa que tinha [cometido] um crime, alguma coisa que tivesse errado no Brasil ou lá. Mesmo que a gente tenha entrado de forma errada, mas eu não cometi crime, eu não imaginava esse sentido”, disse Sandra. 

Depois de passar por tudo isso, Sandra reforça a importância de não tratar migrantes como criminosos. “Mesmo aquelas pessoas que vieram acorrentadas, aquilo ali é pai de família, que foi tentar comprar uma casa para a sua família, foi tentar pagar um estudo para o seu filho. Aquilo ali é um sonho”, afirmou. 

Edição:
Isac Nóbrega/PR
Google Earth/reprodução
Sandra Souza/acervo pessoal
Portal da Copa/Wikimedia Commons
Coldstreamer20/Creative Commons

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