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Sem proteção de nenhum dos dois governos, imigrantes que perderam o emprego dependem de ajuda voluntária; outros são obrigados a trabalhar em locais atingidos pela pandemia e, se adoecem, não têm condições de pagar o tratamento

Reportagem
13 de julho de 2020
12:00
Este artigo tem mais de 3 ano

Em 17 de janeiro, dois dias antes do primeiro caso de coronavírus ser identificado em Washington (DC), nos Estados Unidos, Elisa* saía do Brasil. Tentaria a travessia pela fronteira do México para buscar “um sonho”, mas teve seus planos barrados na cidade de El Paso; ficou presa por três meses antes de ser deportada. Só chegaria ao Brasil em 15 de maio, mais de um mês depois de os Estados Unidos se tornarem o país recordista em número de mortes. No dia em que pegou o avião que a deportaria, já eram quase 85 mil óbitos por Covid-19 nos EUA.

Quando foram informadas de que o pai, Leandro*, indocumentado nos Estados Unidos desde 2004, havia contraído coronavírus no trabalho, as filhas, no Brasil, ficaram muito preocupadas. “Fiquei totalmente sem chão, meu pai é asmático, a gente fica pensando no pior”, disse uma delas. Leandro trabalha na construção civil e estava morando com outros imigrantes no condomínio que reformava. Constantemente via ambulâncias buscarem moradores contaminados pelo Covid-19. Houve óbitos, mas os trabalhadores precisavam continuar a reforma. Dos cinco que se ocupavam da obra, três tiveram a doença.

Já Marina* e Arthur* estão indocumentados nos Estados Unidos há quatro anos, quando se mudaram pensando nos dois filhos pequenos, de 8 e 10 anos. “Queria que os meus filhos vivessem a experiência de estar em um país de primeiro mundo para poder ter acesso a boas escolas e uma condição melhor de escolha.” Porém, com a pandemia causada pelo Sars-Cov 2, foram justamente as crianças que preocuparam a mãe: “Tinha medo delas pegarem”.

Com a crise sanitária, impossibilitados de receber o auxílio tanto do governo brasileiro quanto do americano, os imigrantes indocumentados encontram dificuldades para sobreviver nos Estados Unidos – e manter a família no Brasil. Muitos dos que pararam de trabalhar passaram a depender de ajuda para sobreviver; por outro lado, os trabalhadores essenciais, muitas vezes não protegidos por seus empregadores, se tornaram vítimas da doença.

As contas dos hospitais privados – os Estados Unidos não têm um sistema público de saúde como o SUS no Brasil – causam ainda mais receio de se contaminar. “Meu maior medo era adoecer, ter que ir para o hospital e gerar uma conta altíssima”, disse Marina, que parou de fazer faxinas durante a pandemia.

A Agência Pública conversou com imigrantes, documentados e indocumentados, seus familiares no Brasil e voluntários em projetos de auxílio. A maior parte deles de Itambacuri, cidade da região mineira cujo maior expoente é Governador Valadares, a última conhecida por “exportar” imigrantes para os EUA. Os relatos foram de vidas de “incerteza” e “insegurança”, o que se intensificou com o surto de coronavírus.

O governo Trump suspendeu vistos de trabalho e a obtenção de green cards

“[O maior medo] era ter que ir para o hospital”

Marina e os dois filhos pequenos atravessaram a fronteira americana como turistas em 2016, mas já tinham a intenção de estabelecer moradia. Em um apartamento de quatro cômodos na cidade de New Jersey, esperaram por 60 dias a chegada de Arthur, o marido de Marina, que não conseguiu o visto e fez a travessia pelo México, rota adotada por cerca de 20 mil brasileiros em 2019, de acordo com dados do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos.

A família, que havia saído do Brasil em busca de “oportunidade de crescimento”, viu sua renda minguar com a pandemia. Marina, que limpava até cinco casas por dia, foi obrigada a ficar “dois meses parada”. A maior parte dos clientes suspendeu o pagamento, mas alguns o mantiveram “porque eles sabem da minha real situação, que o governo não me ajuda, eu tenho dois filhos e continuo tendo despesas”.

Com a remuneração de Arthur na construção civil – algumas obras não pararam – e as economias de ambos, mantiveram a família. Marina não precisou de ajuda comunitária, como viu acontecer com muitos. “Muita gente passou fome, foi despejado, foi morar na rua. O país ajuda o americano a segurar a onda financeira, mas o imigrante ele não ajuda”, constata.

Ela conta que teve medo de adoecer e não ter como cuidar das crianças, já que “somos sozinhos aqui”, e de os filhos contraírem a doença. “O governo daqui dá um seguro [de saúde] para quem é cidadão, e os meus filhos não têm direito a esse seguro porque eles são ilegais. Não era [medo] só de pegar a doença e ser tratado. Depois do tratamento a gente ia ter uma dívida muito alta com o governo”, explica Marina.

Em junho, o New York Times revelou que um mesmo laboratório no Texas chegou a cobrar US$ 199 (R$ 1.064) de uma pessoa e US$ 6,408 (R$ 34.282) de outra por um teste de coronavírus – as duas foram juntas, uma pagou em dinheiro e a outra, com o seguro de saúde. A matéria atribui tal discrepância à falta de regulação federal nos preços da saúde privada.

O receio de ir ao hospital foi um elemento constante nas entrevistas feitas pela Pública. E não apenas pelo custo do tratamento: há ainda o medo de ser descoberto pela polícia da imigração. Mas, mesmo entre os que conseguiram os documentos para permanecer legalmente no país, há quem não confie no atendimento reservado aos imigrantes. “Se não tem respirador para todo mundo, entre um americano e um imigrante, quem vai ser escolhido para ficar no respirador?”, pergunta Hugo Benjamin.

“Eu acredito que peguei no trabalho”

Leandro*, outro brasileiro e um mexicano pegaram coronavírus enquanto trabalhavam juntos na reforma de um condomínio, mesmo depois que as mortes entre os moradores infectados começaram a ocorrer. Por isso, acreditam que a contaminação ocorreu no trabalho. “Eu não sei se entrei em algum apartamento de alguém que tinha morrido de corona”, diz Leandro. Ele continuou a morar com os colegas de trabalho na obra, mesmo depois que um deles já manifestava sintomas. “Não tinha como eu colocar ele em isolamento, em quarto separado.”

Os dois continuaram morando juntos, mas Leandro conta que ainda “teve forças” para levar outro trabalhador, que apresentava sintomas ainda mais severos da doença, para a casa dele, que fica em outra cidade. “Como ele é mais velho, ficou bem pior do que eu.” Nenhum deles procurou o hospital nem foi testado, mas identificaram a doença em função da proximidade com outros casos e por conta dos sintomas “bem fortes”.

Depois de curado, Leandro viu os clientes minguarem por medo da contaminação. Em Nova York, um dos epicentros do vírus, as comunidades de Bronx, Queens e Brooklyn foram as mais afetadas. São bairros de trabalhadores que abrigam grande número de negros e latinos. Leandro gostaria de voltar para casa, mas diz que precisa do dinheiro que ganha nos Estados Unidos para sustentar as filhas. Apesar das condições difíceis em que vive, ele explica que no Brasil não tem emprego enquanto nos EUA o trabalho do imigrante é muitas vezes preferido em função tanto da qualidade quanto do preço mais baixo.

Patrícia Manasia, brasileira e voluntária em diversos projetos de auxílio aos imigrantes, concorda: “Eles [os estadunidenses] não querem pagar para os imigrantes o valor que oficialmente pagariam para um cidadão. Então eles usam do imigrante para pagar pouco e abusar deles. A galera trabalha muito, muito mesmo, e eles falam que te amam, mas o primeiro sinal da pandemia eles não te querem dentro da sua casa porque é você que é o infectado”. Ela conta que “como a maioria é indocumentada, a comunidade brasileira trabalha nos serviços essenciais, entregando comida ou no posto de gasolina, por exemplo”.

É o caso dos frigoríficos, que foram impedidos de fechar por Trump em 29 de abril. A Liga de Cidadãos Latino-Americanos Unidos, Lulac, estima que 80% dos trabalhadores dessas empresas nos Estados Unidos são imigrantes indocumentados ou refugiados. Marcas como a brasileira JBS que, como mostrou reportagem da Pública, contribuíram para disseminar o vírus em comunidades indígenas e pequenas cidades e a americana Tyson registraram até 2 de julho 3.106 e 8.517 casos, respectivamente, de acordo com dados do Centro de Jornalismo Investigativo Investigate Midwest. São ao todo 26.500 casos confirmados de coronavírus relacionados aos frigoríficos, em 254 empresas de 33 estados diferentes. Noventa e cinco trabalhadores morreram.

Em entrevista sobre o assunto à Fox News, a governadora republicana da Dakota do Sul afirmou que os trabalhadores contaminados nos frigoríficos foram contaminados nas próprias casas. Já representante da Tyson Foods afirmou ao Buzzfeed News que a contaminação elevada nas comunidades latinas ligadas aos frigoríficos se deu em função das “condições de vida de certas culturas”.

Fronteira internacional entre Estados Unidos e México

“O presídio de imigração que fiquei tinha 23 casos de coronavírus”

Em janeiro deste ano, Eliza, na tentativa de iniciar a vida nos Estados Unidos sem os documentos requeridos pelo governo, foi detida pelo que considera “um vacilo” do coiote – aquele que recebe os emigrantes no México e os guia na travessia. Se tivesse chegado depois do dia 30 daquele mês, poderia ter aguardado análise de seu pedido de asilo em terras mexicanas, conforme portaria do governo Donald Trump.

Ela, porém, passou três meses em detenções nos Estados Unidos. Por dois deles, esperou retorno na Joe Corley Processing Center, em Houston, onde trabalhava na cozinha. Enquanto estava detida, contou, foram contabilizados 23 casos de coronavírus na instituição, todos na ala masculina.

De acordo com relatório do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos a respeito da Covid-19 nas detenções da Agência de Controle de Imigração e Fronteiras (ICE), no dia 26 de maio eram 1.312 contaminados em detenções de imigração. Esse número era 220 em 20 de abril, representando um percentual de crescimento de 496% em apenas quatro semanas. Durante a pandemia, alguns imigrantes conseguiram ser liberados e outros têm buscado a deportação.

“Quando começou, eles não tomaram nenhuma providência. Nenhuma. Os oficiais não usavam máscara, a gente tinha muito contato com eles, eles podiam levar a doença para a gente.” Alguns dias antes de voltar ao Brasil, porém, com o número de casos aumentando em todo o país, algumas providências começaram a ser tomadas. “Eles começaram a dar máscaras, a medir a temperatura também, só de quem trabalhava na cozinha. Os oficiais também começaram a usar a máscara”, diz.

Eliza conta que sentiu medo de pegar a doença: “A água não é boa, a nutrição não é adequada. Me senti em risco sim”. Ainda assim, afirmou que, se não fosse o sofrimento gerado à família, voltaria a tentar entrar nos EUA sem o visto.

Para Victor Pereira, imigrante hoje documentado, mas que viveu nos Estados Unidos de 2001 a 2011 sem permissão do governo, estar “ilegal” é como estar preso. “Eu costumo falar que quem está aqui ilegal é a mesma coisa de estar em uma cadeia comendo queijo gourmet. Está aqui bem, com carro novo, mas ao mesmo tempo você está preso e sente muita insegurança.”

Por isso mesmo, Letícia* busca manter sua situação regular. Ela se mudou para os Estados Unidos há cinco anos para fazer faculdade e, atualmente, depois de formada, busca conseguir o green card patrocinado por seu trabalho. Porém, em função do desemprego gerado pela pandemia, a obtenção de green cards foi paralisada por Donald Trump. Letícia contornou a situação aplicando por um visto de estudante ao entrar no mestrado.

No dia 6 de julho, o governo norte-americano modificou de novo as normas: os estudantes estrangeiros cujas faculdades tivessem 100% das aulas on-line deveriam voltar ao país de origem. Letícia seria afetada, mas a faculdade garantiu que as aulas presenciais retornarão em breve. “É muita insegurança de não saber se vão mudar as regras”, conclui.

Os vistos de trabalho já estavam suspensos desde 22 de junho. A ordem de Donald Trump inclui as categorias de trabalhadores especializados, professores, pesquisadores e até profissionais transferidos aos EUA por empresas. Desde março, não ocorrem entrevistas para a obtenção de vistos nos consulados e na embaixada.

Psicóloga que atende brasileiros durante pandemia afirma que “o pânico se instalou”

Jussara Pessoa, psicóloga voluntária na ONG Mantena Global Care, afirma que as doenças mentais podem ser consideradas uma “epidemia oculta” decorrente da crise sanitária causada pelo coronavírus. Essa “epidemia, segundo ela, afeta a todos, mas os imigrantes indocumentados são ‘mais vulneráveis’”.

“O imigrante ilegal aqui vive com muito medo, com pânico, sem saúde, trabalha muito fora da área dele. Mesmo se ele tem uma profissão, ele vai fazer qualquer coisa, porque ele precisa sobreviver. E aí a autoestima dele fica bem prejudicada”, explica. Para Jussara, “a falta de suporte e o medo de perder a fonte de renda intensificam a vulnerabilidade do imigrante indocumentado durante a pandemia.” “Quem tem isso [suporte financeiro e médico] e perde o emprego já está em uma situação difícil. Imagina a pessoa que já vem em um processo de cansaço emocional durante anos, porque a vida do imigrante por si só não é uma vida fácil”, afirmou.

A psicóloga classifica os efeitos nesse grupo em duas categorias: “aqueles que estão legais e receberam ajuda do governo conseguem passar por isso de maneira tranquila”, já “aquele [o indocumentado] que nem ao médico pode ir, e não tem direito à ajuda do governo, conta com a ajuda da comunidade”.

Thiago Vaz, imigrante documentado, foi um dos que receberam apoio quando teve coronavírus. “Onde eu estava morando tem uma comunidade de brasileiros muito unida. Entregaram cestas básicas, recebemos ajuda de pessoas. Isso ajudou muito.” Já a psicóloga Jussara organizou uma carreata para comemorar o aniversário de um imigrante que havia sobrevivido à Covid-19: “A gente dá um jeitinho para mostrar nosso amor”.

Mesmo trabalhando em muitos projetos, a voluntária Patrícia reconhece que nem todos aqueles que precisam de ajuda conseguem ser atendidos: “Foram algumas ações aqui e ali que foram tapando os buracos. Mas bastante gente passou bastante necessidade, sim”.

Sueli Siqueira, pesquisadora da Universidade Vale do Rio Doce (Univale) sobre migração na microrregião mineira que inclui cidades como Alpercata, Campanário, Itambacuri, Jampruca e cuja referência é Governador Valadares, explica que o impacto atinge também as famílias dos imigrantes no Brasil. “A cada notícia que recebem da morte de alguém, é medo que se acrescenta para quem está lá e quem está aqui. Como eles são mais vulneráveis essa angústia e o adoecimento é muito maior.” A pesquisadora, que é contra chamar os imigrantes de “ilegais”, já que são “trabalhadores” que “estão em busca de uma vida melhor”, finaliza: “O maior número de mortes é exatamente entre aqueles que são mais vulneráveis, e não do ponto de vista biológico, mas do ponto de vista social”.

*Os nomes dos imigrantes indocumentados foram trocados por segurança.

Colaborou: Ethel Rudnitzki.

Atualização (13/07/2020 às 12h30): O sobrenome da pesquisadora Sueli Siqueira estava incorreto. Atualizamos o nome.

Air National Guard
Wikimedia Commons

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