Casas vazias ou à venda, móveis estragados e as marcas nas paredes dos imóveis ainda demonstram o que foi a pior enchente dos últimos 15 anos no Jardim Pantanal, extremo da zona leste de São Paulo, em fevereiro deste ano. Pouco mais de um mês depois dos alagamentos, as famílias ainda tentam reconstruir, com o apoio uns dos outros, os seus lares, que foram devastados pelas fétidas e contaminadas águas do Tietê, o rio que corta a região.
A solidariedade entre os moradores é o que tem amenizado os impactos. “O que chega [de doações de móveis] eu vou passando para quem tem mais necessidade”, disse à Agência Pública a líder comunitária Eliane Libânio, de 51 anos, que perdeu tudo na enchente.
Na primeira semana de fevereiro deste ano, os moradores do Jardim Pantanal ficaram ilhados por sete dias. A Pública esteve no bairro durante as enchentes e contou que os moradores estavam agindo por conta própria para fazer resgates, distribuir alimentos e água, além de enfrentarem filas de cinco horas para receber o auxílio de emergência de R$ 1 mil fornecido pela prefeitura de São Paulo.
O auxílio não foi o suficiente para recompor a mobília perdida no desastre, diz a líder comunitária. “O meu genro me deu uma geladeira e ganhei uma beliche. Nós estamos usando os colchões doados pela prefeitura e dormindo pelo chão, por enquanto”, contou.

No período em que os moradores estavam ilhados no Jardim Pantanal, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) disse que estudava a remoção deles sob indenização entre R$ 20 mil e R$ 50 mil. A proposta não foi bem recebida por quem vive no bairro. “Tem casa que o morador gastou muito mais […] Para a gente, seria melhor que fizesse a melhoria do local [do Jardim Pantanal]”, disse Libânio.
A prefeitura voltou atrás e informou em nota que agora são estudadas outras possibilidades para solucionar as enchentes no bairro: a recuperação da região; a construção de reservatórios para a contenção das cheias; o reassentamento de famílias, devolvendo a área de várzea do rio e a recuperação ambiental. O custo dessas intervenções vai de cerca de R$ 1 bilhão a R$ 2 bilhões.
Por que isso importa?
- Moradores do bairro Jardim Pantanal, na zona leste de São Paulo, ficaram ilhados durante as chuvas de fevereiro, na pior enchente dos últimos 15 anos.
- Pouco mais de um mês depois que as águas baixaram, famílias ainda tentam reconstruir suas casas e vidas, mas falta apoio do poder público.
Mais de um mês após o fim da enchente, a líder comunitária ainda abriga a filha Erika Libânio da Silva Pedroso, de 27 anos, e os dois netos, de 7 anos e 7 meses, que ainda não conseguiram recuperar totalmente a casa de madeira onde viviam.
A casa de Erika Pedroso fica às margens do rio Tietê. Na madrugada do sábado, 1 de fevereiro, ela só teve tempo de salvar os filhos e os documentos. Assim que vizinhos a avisaram sobre a água que subia, ela deixou o imóvel de apenas um cômodo e tentou se abrigar na casa da mãe. Pensou que lá estaria segura, mas o rio subiu tanto que a família precisou sair às pressas, com a água na altura da cintura, e improvisar um barco com uma caixa-d’água que passou boiando pela rua.
A alternativa para a família foi se deslocar para a Escola Municipal de Educação Infantil (Emef) Mururés, que serviu de abrigo nos dias em que o bairro esteve ilhado. Lá os moradores recebiam refeições e dormiam nas salas de aulas.
Mas, logo nos primeiros dias, Erika Pedroso percebeu que a comida distribuída pela prefeitura estava estragada. “250 marmitas que eles mandaram e estavam estragadas”, contou. “Aí nós fizemos o mutirão e uma cozinha solidária”.
Somente oito dias depois da enchente, ela conseguiu voltar à sua casa, após a água ter baixado. “Quando eu cheguei aqui, só tinha uma parede, as roupas e o box da cama, porque até o colchão foi embora [na correnteza]”, disse.
Até agora, ela diz que não recebeu ajudas da prefeitura além dos R$ 1 mil de auxílio. “Fizeram um monte de promessas, mas até hoje não apareceu ninguém aqui nem pra desejar ‘bom dia’”, desabafou.

Erika Pedroso está reconstruindo a casa de um cômodo com a ajuda de doações de tijolos e com investimento de recursos próprios. Ela sobrevive com pouco mais de R$ 500 por mês, fruto do trabalho esporádico de auxiliar de limpeza.
“Eu não tinha pra onde ir e a população se sensibilizou, porque a prefeitura não fez nada, eles queriam me mandar para um abrigo, mas era muito longe e os meus filhos estudam aqui [no Jardim Pantanal]”, contou a auxiliar de limpeza, que é mãe solo. A expectativa dela é que os dois filhos possam voltar à sua casa ainda neste mês, quando concluírem a obra.
Refazer a vida com pouco
O segurança Mateus Josué Barbosa de Castro, de 26 anos, passou a semana da enchente sem poder trabalhar. Como o pagamento é feito por diária, para se alimentar ele precisou atrasar o aluguel do imóvel de dois cômodos pequenos, que custa R$ 500. Castro e os outros dois moradores ouvidos pela reportagem contaram que não receberam o auxílio aluguel da prefeitura de São Paulo.
A água chegou a quase 1 metro de altura na casa do segurança, que perdeu o guarda-roupa, roupas e teve a geladeira danificada. Na noite da enchente, ele empilhou o sofá, o fogão e o colchão da cama em caixas de cerveja vazias, abandonadas no quintal, na tentativa de reduzir os impactos da tragédia.

O que ajudou o morador do Jardim Pantanal foi o auxílio de emergência da prefeitura. “Ajudou, porque querendo ou não eu tinha aluguel atrasado por causa da enchente”, contou.
As roupas de Castro estão temporariamente amontoadas em cima do sofá, porque ele ainda não conseguiu um guarda-roupa e não tem previsão de quando deve comprar um novo. “Ou você compra móveis ou paga o aluguel”, desabafou.
O segurança afirmou que não tem recursos financeiros para arcar com um aluguel mais alto fora do bairro. “Se eu sair daqui e procurar por outra casa de aluguel, vai sair bem mais caro. Além de água, luz e a comida que você vai comer”, disse. “Só de eu estar vivo já está bom demais”, concluiu.
Rafael Rocha Nascimento da Silva, de 34 anos, ajudante geral de um supermercado, vai pagar R$ 450 a mais para morar fora do Jardim Pantanal, onde residiu por mais de 20 anos. Todos os móveis e as roupas dele, da esposa e dos quatro filhos, entre 3 e 15 anos, foram perdidos na enchente. Assim como para a maioria dos moradores do bairro, a mobília reconquistada veio por meio de doações.
“Eu espero que melhore, porque piorar não tem como mais”, disse Silva sobre as expectativas de um novo lar distante do rio Tietê. A casa da família passou mais de dez dias com água acumulada, porque o terreno onde foi erguida fica na parte mais baixa do bairro e com os fundos às margens do rio.

Silva não é o único morador a deixar o Jardim Pantanal depois da enchente histórica. Na rua Bahia, uma moradora fez a mudança da casa onde vivia com duas filhas adolescentes e o marido no dia em que a água poluída do rio baixou. “Ela perdeu tudo”, contou a influenciadora digital Lucilene dos Santos, que conhecia a ex-locatária. “Foi para um lugar mais caro”, completou.
No entanto, não são todos os moradores que podem deixar o bairro em busca de uma área mais segura para viver. Robson Brasílio, copeiro, de 39 anos, também é parte dos que perderam toda a mobília em fevereiro deste ano.
A Pública esteve na casa durante a enchente, quando a água havia baixado o suficiente apenas para que ele pudesse mensurar o que ainda poderia ser salvo. Ele e a família tiveram pouco tempo para deixar a casa térrea onde vivem para se abrigarem em um imóvel vizinho na parte superior do terreno.
“Caiu R$ 1 mil [do auxílio da prefeitura] e eu estava precisando de panela, copo, pratos e garfos. Eu gastei R$ 800 só nisso daí. Agora a parte de alimentos, foi tudo para o lixo. Uma cesta básica veio da vizinha e até fralda ela deu pra gente”, contou Brasílio. “Agora nós entramos em uma dívida de dez vezes de R$ 570, pelo guarda-roupa e as camas [das crianças]”, disse.
Um mês após a enchente, o copeiro foi comunicado pelo proprietário do imóvel de que o valor do aluguel aumentaria em R$ 100, mas, com o alto custo de vida fora do Jardim Pantanal, ele e a família optaram por ficar.
Reciclagem de móveis perdidos
Enquanto a reportagem visitava o Jardim Pantanal, um idoso, que segundo os vizinhos, perdeu todos os móveis na enchente, carregava uma televisão em direção à rua Esperança. É nela que fica o depósito de reciclagem de Emerson José Rocha, de 33 anos, que tem servido de ponto de venda de móveis perdidos nos alagamentos.
“Nós compramos muita coisa que o pessoal perdeu na enchente. O nosso trabalho é comprar essas coisas, porque querendo ou não gera o nosso sustento, e isso evita deixar [lixo] na encosta do rio”, disse o reciclador.

Em virtude da tragédia, a demanda no ferro-velho de Rocha aumentou e, com isso, o número de funcionários também cresceu de duas para cinco pessoas, que auxiliam na pesagem, separação e carregamento dos produtos vendidos pelos moradores do Jardim Pantanal.
As peças e eletrodomésticos estragados são pesados de acordo com o material de que são feitas. Quanto maior o peso, mais a pessoa recebe. Após as enchentes, a Rocha Reciclagens precisou aumentar o número de prestadores de serviços, porque o volume de eletrodomésticos e itens de casa estragados pelas águas contaminadas levados por moradores também cresceu.
“Gera renda para os moradores, que, ao invés dele jogar fora, eles vendem. Por exemplo, uma televisão velha, por R$ 10, já é o dinheiro dele comprar o pão amanhã”, disse Rocha.