O engenheiro Gilberto Molina, 81, passou 34 anos dedicado a localizar, exumar, identificar e sepultar dignamente o corpo do irmão, o estudante de química Flávio Carvalho Molina. O militante do Movimento de Libertação Popular (Molipo) de 23 anos foi morto sob tortura no DOI-Codi de São Paulo em novembro de 1971.
Gilberto descobriu, ainda em 1981, que os restos mortais de Flávio estavam entre as ossadas jogadas na vala clandestina de Perus, buraco criado pela ditadura no Cemitério Dom Bosco, em Perus, na zona norte de São Paulo. A ideia era usar o lugar para amontoar os “indesejados” do regime: os opositores enterrados com nomes falsos ou como indigentes, as vítimas do surto de meningite que assolou a cidade na década de 1970 e os assassinados pelos esquadrões da morte e pela polícia.
Desde a morte do irmão, o engenheiro diz ter passado pelo que chama de “um velório que durou quase 40 anos”, o que incluiu um processo de identificação cheio de idas e vindas que durou 15 anos. A vala clandestina foi aberta oficialmente em 4 de setembro de 1990, durante a gestão municipal de Luiza Erundina.
Por que isso importa?
- O reconhecimento do Estado é um passo fundamental para processos de reparação e para que se estabeleçam políticas que previnam violações de direitos por regimes autoritários.
- No caso da vala de Perus, pode também pressionar os envolvidos a promover a identificação de até 42 desaparecidos políticos na ditadura.
Até o reconhecimento, Gilberto e a mãe, Maria Helena, passaram por momentos de tristeza e constrangimento. A idosa teve que ser submetida a sucessivas coletas de sangue, e um erro em um dos exames de DNA, realizado por um laboratório estrangeiro, rendeu à família o questionamento se os filhos seriam da mesma mãe.
Já o engenheiro chegou a ser chamado para “reconhecer” restos mortais no Instituto Oscar Freire, ligado à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), onde foi apresentado a um esqueleto sobre uma mesa: “O legista virou-se para mim e perguntou ‘você acha que este aqui é seu irmão?´. Quando voltei para o Rio, cheguei em casa, sentei na cama e chorei. É por isso que eu digo que é um velório”, lamenta.

Apenas em 2005, os restos mortais do militante da Molipo foram identificados, após amostras do material genético da vítima e da mãe terem sido analisadas pelo laboratório paulista Genomic, o mesmo que atuou em casos relacionados à ditadura chilena.
Segundo o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, entre as 1.049 ossadas localizadas na vala, 42 podem ser de desaparecidos políticos. Desde 1990, apenas cinco ossadas foram identificadas: Dênis Casemiro (1991), Frederico Eduardo Mayr (1992), Flávio Carvalho Molina (2005), Dimas Antônio Casemiro (2018) e Aloísio Palhano Pedreira Ferreira (2018).
Outros quatro desaparecidos foram identificados após a abertura da vala, mas os restos mortais foram exumados de covas comuns do cemitério. Foram os casos de Sônia Moraes Angel Jones (1991), Antônio Carlos Bicalho Lana (1991), Luiz José da Cunha (2006) e Miguel Sabat Nuet (2008).

Brasil reconhece violações na ditadura; 42 desaparecidos seguem sem identificação
Devido a negligências e atrasos na identificação de restos mortais de vítimas que ainda podem estar na vala de Perus, a União aceitou, em 2024, uma conciliação judicial com o Ministério Público Federal (MPF), que questiona a demora do processo desde 1999 e ajuizou uma ação civil pública em 2009. O pedido de desculpas oficial foi feito aos familiares de desaparecidos durante cerimônia pública realizada no dia 24 de março.
“O Estado brasileiro reconhece as graves violações de direitos humanos perpetradas por agentes de segurança que resultaram no desaparecimento de brasileiras e brasileiros, conforme registrado no relatório final da Comissão Nacional da Verdade. O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, em nome do Estado brasileiro, pede desculpas aos familiares dos desaparecidos políticos durante a ditadura militar brasileira, iniciada em 1964, e à sociedade brasileira pela negligência, entre 1990 e 2014, na condução dos trabalhos de identificação das ossadas encontradas na vala clandestina de Perus, localizada no cemitério Dom Bosco”, leu a ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo.

A procuradora regional da República e presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), Eugênia Augusta Gonzaga, disse haver a expectativa de novas identificações pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), cuja criação, em 2014, também foi fruto da ação do MPF. “Há dois ou três casos com alta probabilidade”, disse em entrevista à Agência Pública.
Gonzaga é também uma das autoras da ação civil do MPF que visava responsabilizar a União Federal, o estado e o município de São Paulo, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Estadual Paulista (Unesp) e quatro servidores públicos por negligência na condução dos trabalhos de identificação dos restos mortais na vala de Perus. A ação incluía um pedido para que os réus se desculpassem com os familiares das vítimas.
Segundo o procurador regional da República Marlon Alberto Weichert, também autor da ação do MPF, o pedido de desculpas “é um dos elementos essenciais de praticamente toda a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Toda sentença do tipo tem determinação de que o Estado faça um ato de reconhecimento de responsabilidade”.
O procurador esclarece que esse tipo de medida não se confunde com o perdão, mas simboliza que o Estado reconhece “o sofrimento das vítimas e quer demonstrar coletivamente que aquilo foi um erro no passado, o que aponta para a ideia da não repetição”.
Ao ser questionada, a ministra Macaé Evaristo apontou dois caminhos para a não repetição: a tipificação do crime de desaparecimento forçado, proposta pela comissão de reforma do Código Penal, o que facilitaria a punição de agentes públicos que contribuem para a destruição e ocultação de corpos de vítimas de violência, e a necessidade de criação de um banco nacional de DNA de familiares de vítimas de desaparecimento, processo que pode ser facilitado pela carteira nacional de identidade.
A ministra anunciou avanços em três processos de memória com recursos obtidos pela pasta para a implementação dos memoriais na Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), e na antiga auditoria militar de São Paulo, e o apoio para os trabalhos de arqueologia pública na sede do antigo Doi-Codi da capital paulista.

Ação levou à manutenção de pesquisas e novas identificações
A ação do MPF resultou em uma série de medidas relacionadas à identificação das ossadas. Em outubro de 2017, por exemplo, uma conciliação firmada no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), em São Paulo, garantiu financeiramente os trabalhos do Caaf e dois desaparecidos foram identificados. Entretanto, durante o governo de Jair Bolsonaro, que dizia que “quem procura osso é cachorro”, os trabalhos pararam por falta de recursos.
Com a posse de Lula, em 2023, a retomada dos trabalhos do Caaf e a recomposição da CEMDP, a turma de conciliação do TRF3 voltou a discutir a questão, cujo acordo foi aceito pelo MPF e pela Advocacia-Geral da União (AGU). O governo Tarcísio de Freitas, entretanto, abandonou o acordo. Segundo o mandatário, não haveria razão para o ato público do último dia 24 de março, data definida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como Dia Internacional pelo Direito à Verdade sobre as Violações dos Direitos Humanos e pela Dignidade das Vítimas.
Na cerimônia pública, estiveram presentes familiares de mortos e desaparecidos políticos, sobreviventes da repressão política, autoridades do governo federal e dos poderes legislativos federal, estadual e municipal, juízes federais e membros do MPF, moradores de Perus, inclusive o antigo administrador do cemitério Antônio Eustáquio, que criticou a privatização dos cemitérios paulistanos. O prefeito Ricardo Nunes, aliado de Tarcísio e de Bolsonaro, mandou representantes à cerimônia.
Vala obscura: nomes falsos, contexto político e nove anos de muita espera
O Cemitério Dom Bosco, em Perus, a 30 km do centro da cidade, foi inaugurado em 1971 na gestão de Paulo Maluf, nomeado prefeito pela ditadura militar. O uso do local para sepultar as vítimas do regime era conhecido dos familiares de mortos e desaparecidos desde os anos 1970. As primeiras sepulturas foram localizadas e os corpos começaram a ser resgatados ainda no início dos anos 1980.
Em 1981, Gilberto Molina soube que o irmão estava enterrado em Perus e que havia usado na clandestinidade o nome falso Álvaro Lopes Peralta. Fazia sentido para a família: “Álvaro era o nome de papai, Lopes era um sobrenome de família que não usávamos e Peralta era um apelido [de Flávio] de criança”.
“Vim aqui em Perus e conheci o Antônio Eustáquio, que descobriu nos registros onde havia sido sepultado Álvaro Peralta e me disse que os restos mortais foram exumados em 1976 e levados de lá para a ‘vala comum’. Eu pedi e ele me mostrou onde era a vala e que a abrisse. Ele me mostrou um fêmur, depois um crânio, os sacos plásticos e a minha perna começou a bambear, e pedi para parar, pois era o bastante”, lembra.
O engenheiro compartilhou a informação com outros familiares de mortos e desaparecidos, mas o entendimento foi que, com Paulo Maluf governador, não havia clima político para a abertura da vala. Após o jornalista Caco Barcellos ter tomado conhecimento do local, pesquisando documentos para o livro Rota 66, no final dos anos 1980, e com Luiza Erundina como prefeita de São Paulo, se criaram as condições políticas para abrir a vala, anunciar a descoberta e iniciar a identificação dos restos mortais.
Iara Xavier Pereira, que teve os dois irmãos, Iuri e Alex, e o marido, Arnaldo Cardoso Rocha, assassinados pela repressão entre 1972 e 1973, resgatou os corpos nos anos 1980. Antes, Iara já havia ajudado Suzana Lisboa a encontrar os restos mortais de seu marido, Luiz Eurico Tejera Lisboa, o primeiro desaparecido que teve o corpo localizado no Brasil, em 1979.
Iara e Suzana localizaram o registro do sepultamento de Nelson B. nos livros do cemitério e a segunda intuiu que o B seria de Bueno, uma das identidades usadas por ele para viver na clandestinidade.
O registro em Perus indicava o local da morte: uma pensão no centro de São Paulo, e Suzana foi até lá com uma foto do companheiro. “Assim que a gente se apresentou, mostrei a foto dele e todo mundo reconheceu que aquele era o Nelson Bueno”, disse Suzana à Comissão Estadual da Verdade de São Paulo, em 2012. Após uma ação judicial, os restos mortais de Luiz Eurico foram recuperados e sepultados em Porto Alegre em 1982.