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Uma amiga que passa horas ouvindo rádio enquanto está presa no trânsito outro dia perdeu a paciência e resolveu reclamar. Não do congestionamento, realidade cotidiana do paulistano, mas sim de ouvir o argumento de um âncora de um programa jornalístico para defender a realização da 29ª Parada do Orgulho LGBT+ em São Paulo.
“Ele disse mais ou menos assim: o certo é respeitar, é ‘tolerar’ – o que já achei o fim –, mas concluiu com o seguinte: ‘mas se você não gosta, não se identifica com essas pessoas, pelo menos apoie a Parada pelos milhões que traz para a cidade.’ Como se uma manifestação dessas fosse importante por isso! Achei o cúmulo um jornalista, um âncora achar que isso é informar a audiência”, ela me contou, ainda indignada.
Um detalhe importante sobre minha amiga e eu: já passamos dos 65 anos – aliás, o envelhecimento é tema da Parada deste ano – e, como mulheres, sempre nos identificamos com a bandeira ainda maior do que o arco-íris que o movimento orgulhosamente carrega – a do enfrentamento ao patriarcado pela liberdade de cada uma de nós ser quem é, com a garantia de ter os mesmos direitos que são desfrutados pelos machos hetero brancos.
Somos parte de uma geração que se tornou adulta nos anos 1980, quando a longa sigla que reúne os muitos modos de amar e existir se restringia à palavra Gay ou GLS (o S, acreditem, era de “simpatizante”) e a homofobia era norma – agravada pelo estigma do HIV. Para nós, faz sentido comemorar os 548 milhões de reais que a Parada traz para a cidade como um dos sinais da vitalidade do evento, que começou em 1997, quando 2000 pessoas ocuparam a Paulista, e em menos de dez anos já reunia 2,5 milhões de pessoas na mesma avenida – recorde de 2006 registrado pelo Guinness como a maior Parada do mundo.
Não se trata de dinheiro. A multidão colorida na Avenida Paulista nos traz um momento de orgulho de viver nesta São Paulo, a cada dia mais desumana e desigual, onde até parece que “não existe amor”, como cantou Crioulo. Mais do que isso, celebramos a sensação de que apesar de avanços e retrocessos não foi vã a luta pela liberdade, ainda que ela ainda não seja para todos – menos ainda para todas.
“É muito fácil ignorar o que todos já passamos. Hoje, a galera tem uma liberdade inimaginável”, disse o cenógrafo Jeff Celophane, 62 anos, à Folha, sublinhando o caráter ativista da manifestação, também destacado pela maquiadora e transformista Gretta Star, 69 anos: “As pessoas esqueceram do lado político e focam apenas na festa. Hoje pode até ser festa, mas alguém pavimentou”, lembra a estrela que se identificou como mulher trans nos anos 1970 e participa de todas as paradas desde a primeira.
A luta de Jeffs e Grettas é o foco da Parada deste ano, que celebra a memória da resistência e projeta o futuro, com o tema “Envelhecimento LGBT+, memória, resistência e futuro”. Afinal, se é lindo festejar a liberdade, não é possível relaxar em um mundo em que o ódio prevalece e em um país que é recordista em violência homo e transfóbica e onde o abandono no envelhecimento é ainda maior em relação a essa população.
Em 2023, 214 pessoas LGBTQIA+ foram assassinadas, 316 estupradas, e 3.673 sofreram lesões corporais motivadas pelo ódio, segundo o Anuário de Segurança Pública (edição de 2024). Números que na realidade são bem maiores, como reconhece o próprio Fórum de Segurança Pública, que publica o anuário: além dos órgãos de segurança de alguns estados não compartilharem as estatísticas, caso vergonhoso de São Paulo, a polícia evita apontar a homofobia e a transfobia como causa dos crimes, dizem os especialistas.
Há outro dado alarmante no relatório, que permite a comparação dos números, apesar da subnotificação. Os homicídios tendo como vítimas pessoas LGBTQIA+ cresceram 42% em relação ao ano anterior, 2022, e os estupros 40%. Ou seja, ainda vivemos um período de alta dessa violência, principalmente contra mulheres trans e pessoas negras.
Há outro motivo para ficarmos em alerta, já disparado nos Estados Unidos, e lembrado por muitos oradores da WorldPride Parade realizada em Washington no começo deste mês. Em apenas 5 meses de governo, Donald Trump fez retroceder em décadas as políticas públicas por diversidade e equidade e os direitos da população LGBTQIA+, sobretudo dos trans: já no discurso de posse Trump disse que os Estados Unidos só reconheceriam o gênero feminino e masculino, determinados no nascimento, o que foi transformado em decreto, servindo como base para enviar mulheres trans para cadeias masculinas e fazer expurgos no Exército e outros órgãos públicos.
Com o vento que sopra forte para o lado contrário, como vivemos no período Bolsonaro, em que a palavra liberdade passou a ser sinônimo de monopólio de direitos pela direita branca, masculina e heterossexual, nunca foi tão importante aderir à campanha “levante o seu leque” e desfilar na Paulista. E, quem sabe, entoar a Internacional queer a plenos pulmões da maneira que a comediante e rainha lésbica Mimi Gonzales cantou em Washington: “We will survive!”