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Desde 2023, 23 casos de agressões da polícia contra os comerciantes. Mais de 50% foram contra pessoas negras

Reportagem
2 de junho de 2025
04:00

Entre janeiro e maio deste ano, ao menos oito casos de violência policial contra ambulantes foram registrados no Brás, bairro do centro de São Paulo, considerado o maior polo de confecção de roupas do Brasil, com uma gama de lojas que distribuem esses produtos. Os dados são do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos. O assassinato do senegalês Ngagne Mbaye, de 34 anos, morto por um policial no dia 11 de abril foi o ápice da violência. Ele foi atingido na barriga durante uma operação contra vendedores ambulantes. 

M.*, de 38 anos, que também é senegalês e ambulante no Brás, era amigo de Mbaye e testemunhou sua morte. Ele pediu para ter sua identidade preservada por questões de segurança e contou para a Agência Pública que a região tem sido marcada pela repressão promovida pela Operação Delegada, que tem foco no comércio de ambulantes irregulares. A iniciativa, feita por um convênio entre a prefeitura e o Governo do Estado de São Paulo, pretende reforçar o policiamento da cidade com agentes voluntários da Polícia Militar (PM) em seus dias de folga, mas a realidade tem sido de extrema violência.

Segundo o relatório do Centro Gaspar, durante uma abordagem de fiscalização da Operação Delegada, em setembro de 2024, M. foi preso ao tentar proteger sua mercadoria. Ele teria sido acusado de lesão corporal após uma pedra atingir um policial durante a confusão, ainda que não houvesse nenhuma evidência de que tivesse sido o autor do arremesso, ainda de acordo com o texto. M. relatou ao Centro que foi levado a um muro nas redondezas do Brás, onde afirma ter sido agredido repetidamente por PMs.

Por que isso importa?

  • Violência policial contra ambulantes no bairro do Brás, em São Paulo, aumentou, segundo pesquisa do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos.
  • Desde o fim de 2023 até agora, a organização registrou ao menos 23 casos violentos, incluindo o assassinato do senegalês Ngagne Mbaye, morto por um policial em abril.

A reportagem teve acesso ao Auto da Prisão em Flagrante registrado na 8º Delegacia de Polícia do Brás, em 10 de setembro de 2024. O documento diz apenas que ele foi preso “por suspeita de prática delitiva no local dos fatos”, sem mais detalhamentos.  

Segundo M., ele teria sido acusado de crime de receptação com base em um celular supostamente furtado, que ele alega nunca ter portado. Ele contou que permaneceu preso até a audiência de custódia, quando foi liberado. A Polícia Militar não respondeu os questionamentos da reportagem sobre o caso. 

“Vim para o Brasil para ajudar minha família. Meu trabalho não prejudica ninguém, mas fui tratado como um criminoso”, relata. “Fui humilhado. Não é justo como nos tratam aqui. Nos batem, levam nossas coisas. Se tentamos nos defender, podemos ser mortos – como fizeram com meu amigo”, disse, chorando.

O informe sobre a violência contra trabalhadores ambulantes na região do Brás, elaborado pelo Centro Gaspar, afirma que a repressão policial contra esses trabalhadores aumentou nos últimos anos, em paralelo ao fortalecimento da Operação Delegada. 

A história de M. é um dos 23 casos de violência contra ambulantes no Brás documentados pelo Centro desde o final de 2023 até agora. Segundo o levantamento, foram registradas três ocorrências entre novembro e dezembro de 2023, e 12 ao longo de todo o ano de 2024. Os demais casos ocorreram em 2025.

“Os policiais à serviço da Operação são os principais perpetradores da violência e de abusos contra os trabalhadores ambulantes, o que parece evidenciar que há um problema na própria concepção e modo de funcionamento do programa”, diz o relatório. 

Nos últimos seis meses, ao menos uma vez por mês, casos de abusos e repressão policial contra trabalhadores informais no Brás foram relatados pela imprensa, refletindo a continuidade de um padrão de violência sistemática no centro de São Paulo, aponta o documento.

Os registros presentes no levantamento, alguns encaminhados à Defensoria Pública do Estado e outros à Ouvidoria da Polícia de São Paulo, apontam para um padrão sistemático de abusos cometidos por agentes da Polícia Militar durante a Operação Delegada. “O número de denúncias registradas é extremamente subnotificado, tendo em vista que não são todas as situações que ocorrem que chegam até nós”, explica Ananda Endo, advogada do Centro Gaspar Garcia.

“O medo já era constante antes do assassinato [de Mbaye], porque a repressão no Brás e o clima de intimidação fazem parte do cotidiano. Mas depois dessa tragédia muitos ambulantes estão aterrorizados, a maioria não quer denunciar, dar depoimentos, se expor, ser identificado. Ninguém garante a segurança de quem está ali, todos os dias trabalhando no Brás, refém da discricionariedade das forças de segurança e de outros atores com poder e influência no território”, afirma Endo.

Extrema violência

O relatório descreve casos de extrema violência, como o que ocorreu em 18 de janeiro de 2025, quando um outro ambulante senegalês foi agredido por PMs durante uma operação de fiscalização no Brás. Imagens registradas por testemunhas mostram o momento em que o trabalhador leva um disparo de arma de choque próximo ao olho e, já caído no chão, é chutado por um dos agentes. O projétil foi retirado em cirurgia, mais de 24h depois do ocorrido. Segundo o documento, o imigrante que mora em Guarujá, no litoral paulista, estava na região apenas para fazer compras e não para expor mercadorias.

Em outro caso, de outubro de 2024, policiais xingam e ofendem um ambulante marfinense com palavras xenófobas e racistas. Em um vídeo, obtido pela GloboNews, é possível ouvir os PMs dizendo: “você não tá no seu país não” e “vem aqui ‘negrinho’”. De acordo com o Centro Gaspar Garcia, o mesmo imigrante já havia sofrido violência em outro momento, quando apreenderam suas mercadorias, celular e a carteira junto com o seu protocolo de refúgio.

O ambulante F., 39 anos, senegalês e amigo de Ngagne Mbaye, contou, em condição de anonimato, que já perdeu mercadorias diversas vezes, mas que a maior perda foi ver o amigo morto diante de seus olhos. “A gente tem medo da polícia. Quem mata a gente, quem machuca, quem bate toda hora, é a polícia. O brasileiro não é problema, o problema é a farda”, desabafou. “Quem entende português sofre mais, porque dói ouvir o que falam pra gente. E se você reagir, pode morrer”, desabafou.

Os dados colhidos pelo centro indicam que essas ações têm se repetido com frequência alarmante, transformando abordagens de fiscalização em episódios de violência institucional contra trabalhadores. Entre as práticas relatadas também estão: agressões físicas com cassetetes e chutes, inclusive contra pessoas caídas; prisões arbitrárias; apreensões de mercadorias sem lacre – o que inviabiliza a recuperação destes bens posteriormente; e intimidações com arma de fogo. 

Segundo Endo, a maior parte das denúncias de violência policial recebidas pelo Centro Gaspar Garcia, e as mais graves dentre elas, “têm como vítimas pessoas negras, principalmente migrantes de países africanos e caribenhos – senegaleses, marfinenses e haitianos”. Mais de 50% dos casos presentes no levantamento são contra pessoas negras. 

“O modo como essa violência é praticada torna evidente o racismo institucional, que trata esses ambulantes como inimigos. Outros trabalhadores também sofrem com as arbitrariedades da atuação policial, porém nos parece que os agentes veem maior permissividade para o uso da violência física quando se trata de pessoas negras, o que escancara uma herança profundamente colonialista incorporada no modus operandi da corporação”, frisa a advogada. 

Milícia de farda e esquema de extorsão

O assassinato de Ngange Mbaye ocorreu meses após o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO), do Ministério Público de SP, denunciar 16 pessoas, incluindo policiais militares da ativa e reformados, por envolvimento em uma milícia que atuava extorquindo ambulantes no Brás. 

A denúncia, apresentada à 1ª Vara de Crimes Tributários, Organização Criminosa e Lavagem de Bens e Valores da Capital, é resultado da Operação Aurora, deflagrada em 16 de dezembro de 2024, em parceria com as corregedorias da Polícia Militar e da Polícia Civil. 

Segundo o Ministério Público, os agentes cobravam pagamentos semanais de até R$300 e taxas anuais de R$15 mil, chamadas de luvas, para permitir que trabalhadores autônomos permanecessem com seus pontos de venda na região. Como não têm acesso a crédito formal, muitos recorriam a agiotas que operavam em conluio com os próprios policiais, usando-os como cobradores violentos contra ambulantes inadimplentes. Segundo o órgão, nove denunciados já cumprem prisão preventiva.

Em São Paulo existe o Termo de Permissão de Uso (TPU), uma autorização formal para comerciantes ocuparem a via pública para fins comerciais ou de serviço. Segundo os trabalhadores ouvidos pela reportagem, a prefeitura não emite novos TPUs de forma ampla há anos e os que ainda possuem autorização denunciam que só conseguem manter seus pontos mediante o pagamento sistemático de propina.

“Quem tem TPU só consegue trabalhar porque paga a milícia. E o dinheiro é repartido entre o de farda, o sem farda e até gente dentro da prefeitura”, denunciou o ambulante JS, 57 anos, em entrevista à Pública. Ele pediu para não ser identificado e afirma ter presenciado colegas sendo espancados por um grupo de policiais por resistirem à retirada forçada de suas mercadorias. “Aqui no Brás, as coisas só pioram. O poder público sabe de tudo isso. Não quer acabar com os ambulantes, quer manter o controle através do medo e do dinheiro que circula por fora”, lamenta.

A apuração do GAECO aponta que a organização criminosa contava com profundos vínculos entre seus integrantes, incluindo uma escrivã da Polícia Civil que atuava diretamente nos atos de extorsão. O grupo promovia intimidações sistemáticas, autorizando ou proibindo a permanência dos vendedores em determinadas ruas, como a Rua Tiers, mediante o pagamento das taxas. 

“Aqui no Brás, eles não querem acabar com os ambulantes, querem manter esse jogo de gato e rato. Uma hora deixam a gente trabalhar, outra não. É nisso que a milícia de farda cresce. Todo mundo sabe disso: o prefeito sabe, o governador sabe, a polícia sabe. E a qualquer momento, pode ser a gente a próxima vítima”, disse JS, lembrando que ele próprio já foi agredido por um grupo de policiais quando tentava vender garrafas d’água.

A Ouvidoria da Polícia de São Paulo informou ter recebido, entre 2024 e 2025, 13 denúncias de abusos contra ambulantes e imigrantes na região do Brás, incluindo agressões, ameaças e práticas discriminatórias durante ações como a Operação Delegada. Os casos foram encaminhados às corregedorias, e a Ouvidoria afirma acompanhar os desdobramentos. 

A Prefeitura de São Paulo informou que a Operação Delegada é financiada pela gestão municipal, mas os policiais envolvidos são subordinados exclusivamente ao Comando da PM, vinculado à Secretaria de Segurança Pública. A Secretaria Municipal das Subprefeituras destacou que apoia o comércio informal por meio do programa Tô Legal!, que permite ao ambulante atuar de forma desburocratizada e que, desde 2019, emitiu 7.215 autorizações temporárias e 355 portarias específicas na região da Mooca. Segundo a administração, não há registros de denúncias contra fiscais municipais na área.

Em nota, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo afirmou que a atuação das forças policiais do estado é pautada pela legalidade e pelo respeito aos direitos humanos, e que não compactua com desvios de conduta por parte de seus agentes. A pasta informou que, desde 2023, mais de 550 policiais foram presos e 364 demitidos ou expulsos das corporações. 

A SSP também destacou que, como estratégia de reforço da segurança no centro da capital, mais de 1,3 mil vagas foram destinadas à Operação Delegada, o que teria contribuído para interromper um ciclo de 18 meses de alta nos índices de roubos e furtos. As denúncias envolvendo agentes do programa, segundo o órgão, são apuradas em sigilo pelas corregedorias competentes.

Edição:
José Cícero/Agência Pública
José Cícero/Agência Pública
José Cícero/Agência Pública

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