Nunca os mais ricos foram tão ricos. A lista anual da Forbes de 2025 mostra que 3 mil pessoas somam um patrimônio de 16 trilhões de dólares — isto é mais que o PIB de qualquer país do mundo, com exceção dos EUA e da China.
Já no Brasil, segundo relatório da Oxfam de janeiro de 2024, 63% da riqueza do país está nas mãos de 1% da população. No entanto, é justamente quem está no alto da pirâmide que proporcionalmente paga menos tributos, o que aumenta ainda mais o desequilíbrio entre quem contribui e quem recebe os benefícios do Estado.
“Os super ricos pagam proporcionalmente menos tributos, tanto na tributação indireta, quanto na tributação direta. […] Ou seja, é bastante recurso que deixa de entrar nos cofres públicos porque os ricos e super ricos não pagam imposto de renda como pagam os trabalhadores”, aponta a pesquisadora e professora Eliane Barbosa, autora do livro Tributação Justa, Reparação Histórica – uma discussão necessária, lançado pela editora Casa do Direito.
Esse é o argumento usado por pesquisadores, ativistas e movimentos sociais para questionar a taxação de empresas e pessoas com patrimônios milionários.
Nesta quinta-feira, dia 7 de julho, movimentos sociais e centrais sindicais realizam um ato pela taxação de grandes fortunas, redução do imposto de renda para a classe média e fim da escala de trabalho 6×1.
“A gente nunca viu tantas pessoas participando, tantas pessoas comprometidas, técnicas, mas, de alguma forma, em movimento para a implementação de um sistema tributário mais justo”, avalia Barbosa. Relembre a entrevista com a pesquisadora ao podcast Pauta Pública. Nela, Barbosa explica porque bilionários e impostos são uma conta que não fecha.
Leia os principais pontos da entrevista e ouça o episódio completo acima.
Por que os ricos pagam menos impostos e de que maneira essa taxação justa impactaria na desigualdade?
A gente precisa se dar conta que esse fenômeno não é recente, mas ele tem se aguçado à medida que essa fase que a gente está do capitalismo amadurece.
Estamos numa fase do capitalismo que chamamos de capitalismo financeiro, com início por volta da década de 1970. E ela é uma fase que se sobrepõe, que vem em seguida a duas fases anteriores, que a gente vai chamar de capitalismo comercial e capitalismo industrial.
E qual a diferença de um para o outro? Nessas duas fases anteriores, a produção da riqueza estava vinculada à economia real. No primeiro caso, o que se vendia, o que se produzia no comércio e como se comercializava esse produto. E na segunda fase, a produção industrial e a venda dessa produção. Era isso que fazia os grupos econômicos e as pessoas ricas enriquecerem.
Na fase atual, a gente vive um momento em que a economia, a produção de riqueza econômica, está dissociada da economia real. A gente vive uma fase em que a riqueza é produzida no mercado de capitais. Então são investimentos, é uma acumulação que cresce em função dos preços dos ativos financeiros, que necessariamente não guardam relação com o valor real desses ativos na economia.
Como assim? A gente pode ter uma empresa de capital aberto, que comercializa suas ações no mercado financeiro, e essa empresa tem um valor real de x, por exemplo, e ela pode ter um valor financeiro de 10x. Isso significa o quê? Isso significa que a ação dessa empresa vai estar sendo comercializada por um valor que ele não tem concretude no mundo e na economia real. E isso leva, então, a esse fenômeno que a gente vê de uma concentração de renda na mão dos capitalistas, o que faz com que aumente o número de pessoas que estão nesse mercado acumulando grandes fortunas.
Há todo um cenário montado para isso, que foi sobremodo aguçado na pandemia em que a economia real de fato colapsou e a economia e o mercado financeiro de alguns setores, o setor de medicamentos, por exemplo, ganharam força. Então, a gente tem aí esses fenômenos contribuindo para que a gente tenha mais super ricos no mundo, ou pelo menos concentração de riqueza. Eu acho que é mais correto a gente falar em concentração de riqueza.
Esse é um fenômeno mundial. E por que eles pagam menos tributo? Esse não é um fenômeno exclusivo e unicamente brasileiro. Tem, assim, várias razões para isso. Os super ricos pagam proporcionalmente menos tributos, tanto na tributação indireta, quanto na tributação direta.
Mas comecemos pela tributação direta, que são os impostos e outros tributos sobre o patrimônio e a renda. No caso, sobre manifestações de riqueza. A tabela do imposto de renda é um lugar bem interessante para a gente ir. Então, até 1964, a gente tinha 12 faixas de renda. O que significa isso? Que a gente vai fracionando as percepções, as manifestações de riqueza, a partir dos salários recebidos pelas pessoas.
Aqui a gente já vê um problema do porquê pessoas ricas ou pessoas que têm mais posses pagam menos tributo. Porque a gente tem uma tabela progressiva até quem ganha 30 salários mínimos.
A partir daí, essa alíquota, essa incidência, ela passa a ser regressiva. E aí, qual é a diferença de uma alíquota progressiva para uma alíquota regressiva? A alíquota progressiva, ela vai cobrar mais tributo de quem ganha mais. Então, o que a gente viu aqui até esses R$ 4.664 [valores praticados em 2024, quando a entrevista foi realizada], que foi a última faixa, de R$ 2.212 a R$ 4.664, tem uma alíquota progressiva.
Agora, a partir daí, a alíquota começa a ser proporcional. Então, quem ganha R$ 4.664 vai pagar 27,5%. Quem ganha R$ 10 mil, 27,5%. Quem ganha 15 mil, 27,5%. Quem ganha 50 mil, 27,5%. A gente vai chamar isso de alíquota proporcional. E a alíquota proporcional, ela tende a ser regressiva. O que é regressividade? Ela tende a impactar mais quem ganha menos.
Então, essa tabela do imposto de renda é uma das razões por que os super ricos pagam menos tributos. Mas não é apenas isso. A gente tem que ter tributação direta, no caso imposto sobre renda e rendimentos, que eles incidam sobre a renda do trabalho e a renda do capital. A renda do lucro, o lucro ou dividendos distribuídos para os sócios das empresas, juros sobre capital próprio.
A renda do capital, hoje, ela não é tributada. E aí só está na tabela do imposto de renda hoje os ganhos do trabalho, a renda do trabalho. Então, quem paga imposto de renda no Brasil hoje é o trabalhador. Quando a gente fala em pessoa física, não estou falando em pessoa jurídica. E não o investidor.
Há um estudo do Dão, do Instituto Justiça Fiscal, que aponta que a distribuição de lucros em 2022 foi de cerca de R$ 560 bilhões. E que se ela fosse tributada na mesma proporção em que é tributada a renda do trabalho, isso geraria aos cofres públicos cerca de R$ 140 bilhões. Cerca de 30% do PIB brasileiro. Ou seja, é bastante recurso que deixa de entrar nos cofres públicos porque os ricos e super ricos não pagam imposto de renda como pagam os trabalhadores.
Sobre os tributos indiretos. A tributação indireta são aqueles que incidem sobre as coisas, sobre o consumo. A gente vai comprar no mercado um telefone, uma caneta, uma almofada. A gente vai pagar tributo. E aí, como esses tributos impactam a população? Eles impactam mais aquelas pessoas que têm menos recursos.
Imagine que vamos ao mercado comprar uma garrafinha de água. Eu, uma professora, e uma pessoa em situação de rua. Quem vai sentir mais o peso do tributo que está sobre a água? Eu, que tenho um salário, digamos, de R$ 3 mil. Ou a pessoa que tem um salário mínimo, que ganha Bolsa Família, ou que ganha um rendimento aí de R$ 500 por mês? Pesou mais pra ela. Então, a tributação sobre o consumo, ela tem uma tendência a ser regressiva.
Então, à medida em que a gente paga o tributo sobre o consumo, ela pesa mais para os mais pobres. Pesa mais para a base da pirâmide do que para o topo da pirâmide. Então, é outro lugar de desigualdade.
E como é a distribuição da carga tributária no Brasil? Do total que o Estado brasileiro arrecada, 42% vem da tributação indireta. Então, é muita coisa.

O sistema de impostos e tributação no Brasil impacta na mobilidade social? Como você vê isso pensando em trabalhadores e na grande quantidade de empreendedores e pequenos empreendedores que a gente tem no país?
Olha, eu entendo que o sistema tributário brasileiro impede a mobilidade social. Para os pequenos empreendedores, isso impacta para eles, mas não tanto. Porque eles estão sujeitos a uma tributação específica que respeita, ali, os limites da sua condição de microempreendedor individual ou de micro e pequenas empresas.
As micro e pequenas empresas não pagam tributo. Eles pagam pelo Simples, que é uma alíquota reduzida do total de tributos que estão sujeitas as empresas, no caso, essas organizações privadas. E o microempreendedor individual também tem uma parcela de tributação bem reduzida, que impacta pouco. Elas são mais justas.
O problema da mobilidade é que, historicamente, há grupos sociais no Brasil que foram, de todas as formas, desincentivados pelo Estado brasileiro e pela sociedade de acumular patrimônio.
Por exemplo, a população negra. Ela nunca teve oportunidade no mundo do trabalho. Desde que houve a abolição da escravização, a população negra foi deixada à própria sorte. Inclusive, os historiadores mostram para a gente hoje que houve uma retração do mercado de trabalho. Muitas leis impediam que a população negra ingressasse também no mundo, nas escolas, na educação formal. Então, havia uma série de impedimentos de levar essa população a ter acesso ao trabalho assalariado.
E se a gente pensar desde o final da escravização, lá na década de 1880 até hoje, a parcial da população que sofreu impacto direto dessa discriminação, ela foi passando para a sua geração uma acumulação dos efeitos. Porque à medida que uma mãe, um pai, uma família não consegue entregar alimento, educação e saúde para os seus descendentes, esses descendentes vão acumulando desvantagens ante os grupos sociais que tinham oportunidade de trabalho.
Pensa bem você, trabalhador, trabalhadora, imagina você com um filho e com um trabalho decente. Você vai dar uma educação decente para esse filho, da melhor forma que você puder. Agora, imagina você sem oportunidade de trabalho.
Imagina que você vai entregar para o seu filho bens e oportunidades aquém do seu desejo. E que ele vai ficar atrás, se a gente pensar numa linha de corrida para oportunidades na sociedade de classes. Os filhos daqueles que têm menos oportunidades vão ter menos oportunidades, consequentemente. E isso é uma bola de neve. De modo que, quando a gente vai ver nos bolsões de pobreza hoje, a população negra está sobre representada.
A gente foi acumulando desigualdades, desvantagens ao longo dos séculos. Essa é a realidade. E a população que não foi perseguida pelo Estado, mas que, pelo contrário, recebeu o incentivo do Estado, ela vem acumulando, de alguma forma, certas vantagens.
Enquanto que a população negra, e a população que não teve a oportunidade de ter esse acúmulo de capital, de patrimônio, no caso, esse estoque de patrimônio, e está no mundo do trabalho e, de alguma forma, superou uma extrema pobreza e, hoje, percebe uma renda, um fluxo de renda mensal, semelhante à de uma pessoa branca, por conquista do trabalho.
Essa pessoa tem uma mobilidade social impedida, porque ela vai pagar imposto, tributos, da mesma proporção que a população branca, a sua contraparte branca, que não teve essas faltas de oportunidades, mas, pelo contrário, vem de uma família que estocou o patrimônio, a população negra, que não tem esse estoque de patrimônio, tem que pagar imposto igual, da mesma forma, porque vai pagar o imposto que considera a renda, o imposto direto, que considera apenas o fluxo, o fluxo de um salário que foi conquistado recentemente, por exemplo, por uma oportunidade de trabalho que ele teve agora. Então, ele já entra nesse mundo do trabalho com um déficit familiar, junto com pessoas brancas que ganharam heranças de suas famílias. Então, para esse contingente populacional, há, sim, um impedimento de uma mobilidade social.
Qual é a real possibilidade de a gente ver a taxação justa das grandes fortunas acontecer nos próximos anos? E que impacto isso poderia trazer?
Eu entendo que esse é um tema dos mais espinhosos e falo isso quando a gente analisa, por exemplo, que essa norma está na Constituição Federal, está no texto originário de 1988. E nós estamos em 2024 [data da entrevista] e essa regulamentação ainda não saiu.
Sem contar que logo depois que a Constituição foi publicada, Fernando Henrique Cardoso apresentou um projeto para a tributação sobre as grandes fortunas. Ele era senador e esse projeto foi engavetado. E depois dele, outras propostas vieram e todas estão engavetadas. Ou seja, não é algo simples, ponto.
É verdade que nossos representantes sempre representaram bastante a elite brasileira, mas tivemos pessoas com ideais democráticos e comprometidos com uma pauta coletiva de modo bem representado no Congresso Nacional. Hoje, a realidade do Congresso Nacional é outra. Com o crescimento e o fortalecimento desses grupos da extrema direita e todo aquele fenômeno que nós conhecemos a partir do ano de 2018, que eu nem preciso nomear aqui, a gente viu que essa pauta neoliberal foi fortalecida constituindo representantes no Congresso Nacional.
Então, eu não entendo essa pauta como pacificada e como simples. Mas, ao mesmo tempo, a gente vê uma organização aqui na sociedade civil que a gente também nunca viu em prol dessa temática. A gente nunca viu tantas pessoas participando, tantas pessoas comprometidas, técnicas, mas, de alguma forma, em movimento para a implementação de um sistema tributário mais justo. Nunca vimos tantas pessoas mobilizadas nessa pauta.
A prova disso é, por exemplo, a quantidade de mulheres – eu estou falando mulheres, mas tinha homens também -, de pessoas da academia, da sociedade civil, até empresariais, representadas naquela audiência pública que a gente teve na Câmara dos Deputados em 2023, sobre os aspectos distributivos da tributação. Ali, a gente teve uma série de atrizes e de atores defendendo uma reforma tributária mais justa. E, por trás dos bastidores, muitas delas estavam envolvidas em outros projetos, em outras propostas coletivas do que diz respeito à pauta da tributação.
Ora, esse é um fenômeno novo no Brasil. Então, eu penso que a gente tem, enquanto sociedade civil, que se fortalecer nessa agenda e desenhar propostas concretas, como fez, por exemplo, o Instituto de Justiça Fiscal. É se debruçar em propostas concretas e defender essa ideia e trazer isso para o debate público.
E pressionar tanto o governo quanto o Congresso Nacional nesse sentido. Sem pressão popular, essa reforma, essa regulamentação das grandes fortunas, ela não vai ocorrer.
A gente precisa convocar o conjunto da sociedade para conversar mais sobre tributação. A gente precisa de propostas e de projetos de educação fiscal. Fazer um diálogo sobre isso, uma compreensão melhor, em linguagem simples. Porque a tributação afeta a todas as pessoas, a toda a coletividade.
Ela é importante. Por algum momento, nos foi dito que isso era um assunto técnico e um assunto para os burocratas. Mas isso não é verdade. Assim como a gente atua na pauta da violência contra mulheres, contra jovens, e tantas outras pautas que nos são caras, a da tributação também nos é cara. Porque a tributação é um fenômeno eminentemente político. É quem paga a conta do Estado brasileiro. Essa é a pergunta que tem que ser respondida. Quem paga a conta do Estado Brasileiro?