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Quando o medo da violência se une ao estresse do calor extremo

É disso que se trata a justiça e o racismo climático

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3 de julho de 2025
17:00

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Dois conceitos vêm ganhando cada vez mais força nas discussões sobre o combate ao aquecimento global: os de justiça climática e racismo climático. Eles buscam alertar para o fato de que, por mais que os impactos da mudança do clima sejam bem democráticos e venham para todos nós, eles afetam de modo desproporcional populações mais vulneráveis, pobres, negras, marginalizadas – em geral aqueles que menos contribuíram para o problema.

Não é uma questão semântica. Esses conceitos chamam a atenção para a necessidade de se pensar as ações levando em conta essas desigualdades. Não faltam dados que mostram isso – como vimos nas enchentes do Rio Grande do Sul no ano passado ou em levantamento sobre escolas em áreas de risco –, mas ainda vemos pouco reflexo nas políticas públicas. Só que sem justiça climática é impossível de fato combater a crise climática. 

Por isso foi tão bem recebida a inédita menção aos afrodescendentes em um texto sobre transição justa elaborado na reunião preparatória da COP30 realizada nas duas últimas semanas de junho em Bonn, na Alemanha.

É bem sabido que a crise climática tende a agravar outros problemas que já atingem essas populações, tornando-as ainda mais vulneráveis a violências e inseguranças de todo tipo: alimentar, de moradia, de saúde, de emprego e de segurança. Mas até porque todos esses fatores já estão em jogo, às vezes de modo urgente, isso acaba levando a uma outra consequência cruel: nem sempre essas pessoas veem a questão climática como uma prioridade em suas vidas.

Óbvio, mas não trivial. Porque, de novo, uma coisa tende a piorar a outra. Isso ficou muito evidente para mim na semana passada, quando participei de um curso no Rio de Janeiro promovido pelo programa Dart Center para Jornalismo e Trauma, da Escola de Jornalismo da Universidade Columbia, com apoio da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal.

Como parte da programação, fizemos uma visita ao conjunto de favelas da Maré, onde vivem cerca de 140 mil pessoas. Uma região de onde, infelizmente, a gente acaba recebendo muito mais informações pelo viés das questões de segurança pública, nas sequências sem fim de operações policiais – situação que motivou a ADPF das Favelas. Difícil chamar atenção para o direito a um meio ambiente saudável quando outras questões são tão prementes.

Mas e quando as crises se sobrepõem e os impactando ficam ainda mais graves?

Foi isso que o antropólogo Bruno Guilhermano Fernandes, do Museu Nacional do Rio, testemunhou no início deste ano, em janeiro, quando ele estava na comunidade Salsa e Merengue na Maré e eclodiu uma operação policial, com helicópteros sobrevoando e a entrada do temido “caveirão” da polícia. Imediatamente todo mundo se refugiou dentro das casas, comércios foram fechados. Um momento de pânico, como ele conta, em que não se sabe se os tiros vêm de cima ou de baixo.

Depois de três ou quatro horas de tiroteio intenso, quando a operação acabou, ele e amigos saíram para andar pela vizinhança e logo se viu que nove transformadores de energia tinham sido atingidos – uma técnica usada pelas forças policiais.

“As pessoas ficaram sem energia elétrica em duas ou três comunidades da Maré. Isso em janeiro, 40 graus, as pessoas sem acesso a um ventilador, sem acesso a ar condicionado. Em algumas partes, as casas ficaram sem água, porque elas precisam bombear a água pra cima. Esse combo todo perdurou em várias casas nos dias seguintes, de crises superpostas, de crises compostas. De um lado uma crise de segurança pública, uma crise de violência armada, do outro um calor extremo que invade as casas quando falta luz e falta água”, relatou Fernandes.

São crises entrelaçadas, em que a angústia, o pânico e o medo das pessoas foi exacerbado pelo calor extremo. O pesquisador publicou um artigo analisando essa situação no Nexo.

As vulnerabilidades da Maré vão além desses momentos de insegurança. Pesquisadores da organização Redes da Maré, liderados pelo geógrafo Everton Pereira, fizeram um diagnóstico dos impactos que eles já estão sentindo das mudanças do clima e os resultados são muito assustadores. Eles mediram, por exemplo, as ilhas de calor nas favelas. 

Há uma diferença de até 2 °C dentro do conjunto, mas fica ainda mais gritante quando se compara com o lado de fora. Os pontos mais “vermelhos” são até 4 °C mais quentes do que fora da favela, no Galeão, por exemplo. E, pior: o lugar mais quente de todos é bem onde ficam concentradas as escolas e creches. É lá também onde foram registrados os piores indicadores de qualidade do ar. 

Ocorre que a Maré é circundada por duas grandes vias de tráfego do Rio, a Linha Vermelha e a Avenida Brasil, e todos os poluentes de carros, ônibus e caminhões acabam indo parar dentro das comunidades.

Com as mudanças climáticas, eles também têm um risco grande de inundações. A Maré, como o próprio nome já dá uma ideia, foi feita sobre uma região que era de manguezais. Eles estão na borda da baía de Guanabara e tendem a sofrer com o aumento do nível do mar. 

Mas, como Pereira destacou, diante de outras faltas que os moradores enfrentam na região, como de educação, de saúde e, claro, de segurança, é muito mais difícil para eles entenderem que também têm direito a um meio ambiente saudável. “Não é algo que o morador de favela, de periferia, reconheça que é um direito que ele tem.”

É disso que se trata quando se fala de justiça climática.

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