Por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), os depoimentos das testemunhas dos réus no caso da trama golpista, que culminou com o ataque às sedes dos Três Poderes em Brasília em 8 de janeiro de 2023, não puderam ser gravados em áudio ou vídeo por quem os acompanhou. Assim, grande parte da população não viu nem ouviu relatos no mínimo curiosos entre 14 e 23 de julho, quando foram feitos depoimentos relativos às defesas dos réus dos núcleos 2 (gerenciamento), 3 (ações) e 4 (desinformação) da denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR).
Quem é quem no julgamento do golpe? Confira tudo que você precisa saber
Um dos relatos mais inusitados se deu por meio de uma testemunha do general “kid preto” Mário Fernandes, retratando o acampamento instalado na frente do quartel-general do Exército como um local que seria tão pacífico que abrigaria até mesmo pessoas pedindo “fora Bolsonaro”.
“Ali tinha muitos grupos, tinha de tudo: [pedidos por] ‘Nova Constituição’, novas eleições… cada grupo tinha uma pauta. Tinha intervencionistas, pedido de intervenção militar, tinha gente ‘fora Lula’, ‘fora Bolsonaro’ até”, disse Rodrigo Yassuo Faria Ikezili, tido pela PF como uma das lideranças do acampamento golpista.
Outro momento de destaque foi quando a juíza auxiliar Luciana Sorrentino encerrou repentinamente o depoimento de Paulo Maurício Fortunato – ex-diretor de Operações de Inteligência na Abin do governo Bolsonaro e ex-‘número 3’ do órgão no atual governo Lula – que contava detalhes inéditos sobre o uso do programa israelense First Mile, estopim do escândalo da Abin Paralela. Fortunato foi ouvido como testemunha do policial federal Marcelo Bormevet, homem de confiança do ex-diretor da Abin Alexandre Ramagem (PL) no governo Bolsonaro.
“O First Mile foi uma ferramenta prospectada pelo Centro de Pesquisa da Abin”, segundo Fortunato, que também afirmou na ocasião que “o Departamento de Operações [da Abin] não foi o responsável pela compra”. “Isso não me interessa”, disse a juíza ao encerrar o depoimento na quarta-feira (16).
Nem todas as testemunhas listadas no processo de fato compareceram. Militares chamados por dois acusados de envolvimento com a carta golpista contra o Alto Comando do Exército, por exemplo, faltaram na sessão.

Detalhes ainda a esclarecer
O delegado da Polícia Federal (PF) Fábio Alvarez Shor, responsável por conduzir as investigações sobre a trama golpista, foi ouvido na segunda (21) e terça (22) e lidou com as tentativas das defesas dos réus de enfraquecer e desacreditar as investigações. Ele confirmou que “ainda existem investigações em andamento, no que toca a parte operacional [da trama golpista]”, ao responder a defesa do policial federal Wladimir Matos Soares.
Advogados questionaram se a PF ouviu membros do Alto Comando do Exército sobre as articulações para que a cúpula militar aderisse ao golpe; criticaram uma suposta edição de mensagens recuperadas pelos policiais, o que, segundo as defesas, teria “desinformado” o STF e a PGR; indagaram detalhes técnicos que supostamente teriam sido ignorados pela equipe da PF; e alegaram que partes fundamentais do caso se basearam nas delações do tenente-coronel “kid preto” Mauro Cid – chamado por um dos advogados dos réus de “delator ‘papagaio’”.
De fato, ainda há questões a serem respondidas no caso. Até agora não se sabe, por exemplo, quem eram os outros quatro membros do grupo Copa 2022, que, segundo a PF, foi criado para sequestrar e assassinar autoridades da República como o ministro do STF Alexandre de Moraes, o presidente Lula (PT) e o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB). Os tenente-coronéis “kids pretos” Rafael Martins de Oliveira e Rodrigo Bezerra Azevedo, considerados pela PF como integrantes do grupo no aplicativo de mensagens Signal, se tornaram réus no núcleo 3 do caso.
Uma revelação trazida pelo delegado refere-se ao conjunto de evidências reunidas pela PF. Em resposta à defesa do ex-assessor especial da Presidência da República Filipe Martins, acusado de envolvimento na elaboração da ‘minuta golpista’, Shor afirmou que “[a PF] não tem [o conteúdo do] chat do WhatsApp do general Mário Fernandes, apenas os áudios, e, no caso do Filipe Martins, não tivemos acesso ao WhatsApp dele – porque ele não forneceu suas senhas”.

Defesas insatisfeitas
Ataques e críticas ao trabalho de Fábio Shor e sua equipe na PF foram rebatidos pelos procuradores da República que representam a PGR nos depoimentos. Por vezes, os juízes auxiliares também intercederam antes mesmo de o delegado da PF responder às defesas. Em geral, uma mesma expressão era usada: “alegações finais”.
Segundo os juízes auxiliares do STF, diversas perguntas foram indeferidas por serem inadequadas à atual etapa do processo. O advogado Diogo Musy, responsável pela defesa do general ‘quatro-estrelas’ do Exército Estevam Cals Theophilo Gaspar, por exemplo, questionou Shor sobre um possível erro conceitual no caso: a afirmação que, na condição de líder do Comando de Operações Terrestres (Coter), o general teria controle sobre “o maior contingente do Exército” – o advogado alega que, tecnicamente, o Coter não comanda tropa alguma.
“Questionar o modo como esta informação foi obtida ou veiculada não cabe nesta etapa do processo penal”, rebateu um dos procuradores. “O porquê dele chegar nessa conclusão não importa neste momento. Isso deverá ser colocado nas alegações finais do seu cliente no processo”, complementou a juíza Sorrentino.

A insatisfação das defesas com respostas desse tipo era mais que visível para quem acompanhava os depoimentos. As reações, no entanto, variaram entre a resignação e estratégias por vezes chamativas, como a do advogado Jeffrey Chiquini, que defende o ex-assessor de Bolsonaro Filipe Martins.
Apesar de ter questionamentos indeferidos, Chiquini reformulou repetidas vezes as mesmas perguntas para as mesmas testemunhas. Ele chegou a ter a fala cortada ao inquirir o general ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) do governo Lula Marco Gonçalves Dias. Na sessão conduzida por Alexandre de Moraes na quarta (16), o ministro o repreendeu até chegar ao ponto de silenciá-lo: “essa linha do senhor acabou”.

Próximos passos
Com a conclusão dos depoimentos, o ministro relator deverá marcar datas para o interrogatório dos réus dos núcleos 2, 3 e 4. O Supremo já determinou que os réus do núcleo 2 – Fernando Oliveira, Filipe Martins, Marcelo Câmara, Mário Fernandes e Marília de Alencar – serão interrogados nesta quinta (24). Já os réus do núcleo 3, basicamente composto por militares ‘kids pretos’ do Exército, passarão por interrogatório na segunda-feira (28); o STF ainda não divulgou a datas para o núcleo 4.
Com todos os réus interrogados, as defesas terão cinco dias para apresentar requerimentos complementares e pedir novas diligências. Então, defesas e PGR terão o prazo de 15 dias para apresentar alegações finais – última manifestação da uma sentença. Caberá ao ministro relator do caso, Alexandre de Moraes, marcar uma data para a sentença dos réus. A expectativa é que o Supremo conclua o julgamento do caso entre agosto e setembro deste ano.