Mais uma vez, fui surpreendida pelo comentário cívico do Arnaldo sugerindo que existe alguma relação entre meu mau humor com meu ciclo menstrual e, não necessariamente, com a presença de um ser humano como ele no departamento.
Segurei a vontade de mandar ele ir tomar algo em algum dos locais mais inóspitos do corpo humano ou do planeta Terra e hoje, só hoje, resolvi ignorar.
Eu tô de calcinha nova.
E não é qualquer calcinha. É a oitava maravilha da alfaiataria em renda e cetim. Uma coisa tão linda, mas tão fina e tão macia, menina, que, se eu a cortasse e abrisse em cima da mesa de jantar, você poderia jurar que é uma toalha Bourbon da mais alta classe.
Preta, a danada, com fios de linho acetinados bordô alternados com os belos trançados de fita e barras douradas. Uma riqueza!
Hoje tô poderosa. Eu e minha calcinha preta de rendinha.
Não é daquele tipinho fio dental, assim vulgar, não, mas é quase. A faixa vertical interglútea mantém o grau certo de castidade e finge que esconde as redundâncias do meu quadril voluptuoso.
Custou os olhos da cara, mas quando eu vi, mana, já estava enfeitiçada. Na hora em que a atendente da loja falou em voz alta o preço, quase desisto da graça. Então, pensei. “Eu mereço!” Eu gasto com o filho, com o mercado, com o marido, com o flanelinha. Hoje essa calcinha de renda sai dessa loja comigo.
Estou cansada. Deste momento em diante está instaurada a greve de bege. Chega de usar ceroulas. Deus que me perdoe, mamãe bem que tentou, coitada, mas não tenho a mínima aptidão para freira. Então, por que diabos eu tenho que usar as mesmas roupas de baixo que as comadres?
Chega de rasgo ou de calcinha frouxa. Não me venha com modelo de algodão, muito menos com aquelas estampas de bichinhos ou cheias de mimos. Nada com cara de felicidade.
Eu quero é a anticastidade, o germe do pecado, a volúpia, a luxúria implantada, enxertada na pele. Quero ter um bom motivo para ser condenada, a libertinagem contida, a obscenidade enjaulada, matando toda minha sede de seda.
Deus que proteja os que cruzarem o meu caminho.
Não preciso que ninguém a veja. Basta que ela esteja aqui comigo, que eu sinta. O colete sentinela de elegância dos meus Países Baixos. Algo caro que proteja e cubra com todo charme e glamour as minhas partes, também nobres, além das outras tantas que tenho acima do pescoço.
Não é pra nenhum amante. Não iria desperdiçar essa lindeza de maneira tão fugaz com um homem comum. Um pervertido, um depravado qualquer sequer vai tocá-la. Me recuso a permitir que um ser ordinário goze de tamanha honra ao retirá-la sem um bom motivo.
Hoje pode vir, meu amigo. Pode vir o motoqueiro abusado me cortar no trânsito. Qualquer ogro motorista que vier xingar a minha baliza. Meu chefe pode até rir e fazer aquela cara abusada de quem acha que sabe o que tá falando, arrotar uma piada e depois rir sozinho da própria graça. Hoje eu não ligo. Não rebato. Não carrego homens comigo. Tô com o poder reforçado.
Não quero nem saber: hoje não lavo a louça. Não ajeito roupa na máquina. Vou assistir dorama de pés pra cima no sofá, comendo pipoca amanteigada. Vou pedir jantar mais caro que a entrega pelo aplicativo. Me ponho na condição de moça da realeza, expoente, potente, sensual e indecente, por que não, carregadora de todo poder xamã do esplendor de vida entre as pernas alçado pelas virilhas. Aquela alma que, no fundo, não nega fogo.
Hoje eu tô só o osso!
Saio desfilando, rebolando as cadeiras. Vou fazer uma zona. Atravesso a rua, sem olhar para os dois lados. Vou parar a pista. E se eu tiver a sorte de ser atropelada, que venham os bombeiros, os paramédicos. Que venham, homens de farda, me toquem, rasguem sem dó ou piedade a minha roupa, ainda na sarjeta ou na ambulância. E lá, em meio ao caos, feridas e sangue, tão logo vão saber, de cara, que se trata de uma mulher relevante.
E mesmo que eu me acabe, que eu morra, toda roxa e estropiada e que meu corpo padeça numa maca metálica fria da sala de emergência, ainda assim, serei o brilho e a atenção dos olhares. Vão ali acolher tamanha tristeza, lamentar a perda de uma mulher tão forte, tão nobre, tadinha, e hão ainda, por entre cantos de boca dos corredores do hospital, a conversas baixinhas, exprimir suas lamúrias.
“Pobre da moça.”
“Tão jovem…”
“Tão bonita!”
“Nossa, que calcinha linda.”
E o meu cadáver, com o sorriso da Monalisa.