Nesta terça-feira, dia 2 de setembro, dois eventos paralelos – e antagônicos – irão tratar do futuro político do Brasil. Enquanto no Supremo Tribunal Federal (STF) o ex-presidente Jair Bolsonaro será julgado junto a outros sete políticos e militares por envolvimento na tentativa de Golpe de Estado, no Senado, a Comissão de Segurança Pública se prepara para ouvir um dos personagens que se tornou figura central na crítica bolsonarista a Alexandre de Moraes: o ex-chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED) do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Eduardo Tagliaferro, convocado por políticos do Partido Liberal (PL) após um relatório de uma organização dos EUA chamada Civilization Works.
Flavio Bolsonaro (PL-RJ), que preside a comissão do Senado, participou das articulações para trazer Tagliaferro à casa durante o julgamento do pai.
A expectativa de bolsonaristas é justamente que a fala de Tagliaferro, atualmente na Itália, jogue lenha em uma das principais narrativas que busca invalidar o julgamento de Bolsonaro – e ajude a criar conteúdos para engajar nas redes sociais durante a semana. Ele critica Moraes pelas investigações no TSE durante a última campanha presidencial. “Logo eu estarei mostrando para o Brasil quem é Alexandre de Moraes e os bastidores do seu gabinete”, disse em vídeo nas redes sociais postado no final de julho.
Antes de criticar abertamente Moraes, Tagliaferro surgiu como personagem nas reportagens do jornalista Glenn Greenwald, na Folha de S. Paulo, de agosto do ano passado, que mostraram supostas conversas do ex-assessor com o juiz instrutor Airton Vieira, enquanto trabalhavam no TSE. Nas mensagens, Moraes teria feito pedidos fora do rito para investigar aliados de Bolsonaro. O material foi apelidado por bolsonaristas de Vaza Toga, em alusão à Vaza Jato.
Na época, o gabinete de Moraes respondeu que “todos os procedimentos foram oficiais, regulares e estão devidamente documentados nos inquéritos e investigações em curso no STF, com integral participação da Procuradoria-Geral da República”.

Um ano depois, as mensagens de Tagliaferro entraram na mira do grupo Civilization Works, uma organização dos Estados Unidos criada pelo jornalista Michael Shellenberger.
Em agosto deste ano, a organização publicou um relatório chamado “Os arquivos de 8 de janeiro: dentro da força-tarefa judicial secreta do Brasil para prisões em massa”. No texto, o diálogo entre Tagliaferro e Vieira é novamente mencionado para afirmar que Moraes “usou essa dupla função [de juiz do STF e presidente do TSE] para contornar limites legais, transformando funcionários do tribunal em uma unidade de inteligência”.
Um outro relatório da mesma organização foi encontrado em posse do próprio Jair Bolsonaro, quando a Polícia Federal (PF) cumpriu um mandado de busca e apreensão contra o ex-presidente, em 18 de julho deste ano. Segundo documentos da PF a que a Agência Pública, teve acesso, um relatório da Civilization Works estava na mesa principal da sala de Bolsonaro, na sede do PL. O documento, intitulado “O papel do governo dos Estados Unidos no Complexo Industrial da Censura no Brasil”, acusava o STF e o TSE de serem influenciados por organizações dos EUA, na época chefiado pelo democrata Joe Biden, para facilitar a censura no Brasil.
Civilization Works: vazamento do Twitter municiou bolsonaristas
A organização Civilization Works descreve seu trabalho como a defesa dos “pilares da civilização e da democracia liberal: meritocracia, lei e ordem, energia acessível, liberdade de expressão, eleições livres e justas, igualdade de justiça perante a lei e a infância”.
Seu criador, Shellenberger, é um jornalista alinhado com a direita americana que atuou divulgando o Twitter Files no Brasil, um vazamento de emails internos do Twitter coordenado por Elon Musk quando comprou o Twitter e o renomeou X.

A Pública mostrou como o Twitter Files levou o X a pagar indenização por danos morais no valor de mais de R$ 500 mil a um ex-funcionário pelo vazamento de seus emails, que foram usados sem o seu consentimento.
Na época, o Twitter Files foi usado por bolsonaristas para acusar o STF de emitir ordens sigilosas para derrubar perfis e postagens de empresas e cidadãos dos EUA. O próprio Musk retuitou uma matéria que afirmava que o governo brasileiro sob Lula fez pressões sobre a rede de Musk “para censurar seus próprios cidadãos em direta violação à Constituição”. No entanto, tanto os advogados do funcionário cujos emails foram vazados quanto a Justiça brasileira consideraram a versão fantasiosa.
A Pública também mostrou como um relatório feito por um grupo de lobby financiado pelas Big Techs dos EUA citou a suspensão do X de Musk no Brasil como um dos argumentos para orientar ações do governo de Donald Trump.
O mesmo Shellenberger já falou a senadores do PL na Comissão de Segurança Pública da casa em 7 de agosto de 2025. “Todos os casos de 8 de janeiro não têm legitimidade e são nulos. E têm que ser nulos, e tem que ser anistia”, disse aos políticos.
O requerimento que aprovou a nova fala de Tagliaferro no Senado, de autoria do senador Magno Malta (PL-ES), cita o relatório da Civilization sobre 8 de janeiro, e pede que o ex-assessor explique os fatos coletados pela organização. “O relatório da Civilization Works traz à tona graves indícios de abuso de poder, usurpação de competências institucionais e criação de um sistema de ‘justiça paralela’ conduzido de forma centralizada pelo gabinete do ministro Alexandre de Moraes”, justifica.
Shellenberger participou e discursou durante as manifestações bolsonaristas de 7 de setembro de 2024, na avenida Paulista, em São Paulo. Segundo a Gazeta do Povo, veículo para o qual o jornalista dá frequentes entrevistas, Shellenberger criticou a suspensão do X, dizendo, durante o ato, que “ao proibir o X, Lula e Moraes se revelaram ditadores”.
A história de Eduardo Tagliaferro
Tagliaferro trabalhou menos de um ano junto a Moraes durante a gestão do ministro como presidente do TSE. Seu nome veio a público primeiramente em 8 de maio de 2023, quando ele foi preso em Caieiras, na região metropolitana de São Paulo, em flagrante, por ameaça e disparo de arma de fogo em contexto de violência doméstica.
De acordo com o Boletim de Ocorrência, a ex-esposa de Tagliaferro pediu medidas protetivas após ele disparar uma arma em casa, onde estava com seus filhos. Já Tagliaferro argumentou aos policiais que o disparo foi acidental, em meio a uma discussão com um amigo que estava no local.
A Pública apurou junto a uma fonte da Polícia Civil que a situação gerou um processo em segredo de Justiça baseado na Lei Maria da Penha.
O caso levou à exoneração de Tagliaferro do TSE no dia seguinte, 9 de maio.
No mesmo dia, a deputada Carla Zambelli – condenada pela invasão ao sistema do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e por porte ilegal de arma de fogo e constrangimento ilegal – fez postagens no X/Twitter sobre o caso, comemorando a prisão de Tagliaferro.

Na ocasião, o celular de Tagliaferro foi apreendido pelos policiais civis de Franco da Rocha, e devolvido seis dias depois.
O nome de Tagliaferro ganharia notoriedade novamente um ano depois, quando suas conversas apareceram na série de matérias de Greenwald na Folha.
Já em abril deste ano, a PF indiciou o ex-assessor por violação de sigilo funcional com dano à administração pública pelo vazamento de informações ao jornalista.
Em agosto, a Procuradoria-Geral da República (PGR) apresentou denúncia contra Tagliaferro, após ele dizer que revelaria mais informações sigilosas em entrevista ao blogueiro foragido Allan dos Santos, também investigado por ataques ao STF. Sua extradição foi pedida pelo Ministério das Relações Exteriores.
Nos últimos meses, Tagliaferro tem falado a portais Bolsonaristas e criticado abertamente Moraes. “Ele [Moraes] coloca sempre uma pessoa em algum um lugar chave para garantir a forma dele trabalhar, aos meus olhos e acho que ao do povo, ilegal”, disse à Revista Oeste há três dias.