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Crônica

Muito mais que um palavrão

Na brincadeira do papai, era cada um com seu palavrão decorado e registrado em papéis bem dobradinhos

Crônica
13 de setembro de 2025
04:00

Quase tudo ao mesmo tempo. Em poucos segundos escutar, raciocinar e soletrar rápido e bem alto, no meio da sala, a palavra mais longa da língua portuguesa. A brincadeira, inventada pelo meu pai, aconteceu muitas vezes após o jantar quando ele estava paciente e bem-humorado e nós ansiosos por competir. Quero um palavrão, ele nos incentivava antes de sair para o trabalho.

Eu com dez anos e meu mano com oito atacávamos o dicionário pesado com a capa despencada. Ao voltar da escola, sentados, o calhamaço entre as pernas e os olhos atentos na pesquisa por palavras grandes. Enquanto os sussurros enchiam a sala de sons e respectivas decepções, dedinhos ansiosos faziam a conta. Ca – pa – ci – ta – ção. Nãaao, só cinco, eu resmungava. Pos – si- bi – li – da – de. Que pena, seis, a voz quase inaudível do mano.

No final da tarde, após a pesquisa, íamos para a mesa da cozinha fazer a lição de casa, cada um com seu palavrão decorado e registrado em papéis bem dobradinhos que ficavam escondidos em lugares secretos como embaixo do taco solto, atrás do sofá, ou na estante atrás do Aurélio. Depois do banho, esperávamos ansiosos papai voltar da redação do jornal, torcendo para que ele estivesse um pouco mais calmo em relação aos dias anteriores.

Os anos pós 1964 foram de poucas palavras. Mesmo em casa, havia o medo de falar um tom mais alto. Psiiiiiiiu, as paredes têm ouvidos, pediu mamãe quando à noite meu irmão, aos gritos, pulou no meio da sala de tacos e a cada sílaba pronunciada, pausadamente, erguia um dedo:

IN – CONS – TI – TU – CIO – NA – LIS – SI – MA – MEN- TE

O CI e o O foram berrados juntos, mesmo assim a apresentação terminou com o 11º dedo emprestado da minha mão. Triunfante e quase sem fôlego ele aguardou o prêmio. No meio da sala, em voz solene papai levantou o braço esquerdo do mano e pronunciou:

Eis o vencedor com a palavra mais longa da língua portuguesa, no dia de hoje.

Psiiiiiiiu! Falem baixo, disse mamãe com seu olhar vigilante para as paredes e as janelas.

Naquela noite, o meu PA-RA-LE-LE-PÍ-PE-DO perdeu feio, apesar de eu achar a minha palavra grande, pesada e muito mais bonita. Quatro anos depois, em 1968, soube que muitas vezes enormes blocos de pedra foram usados em algumas batalhas, como a disputada pelos lados da Rua Maria Antônia, em São Paulo. Nesses tempos, eu e meu irmão começamos a entender o significado de muitos palavrões e da situação do país.

Edição:

Essa crônica foi publicada numa parceria entre a Escola de Formação de Escritores do Instituto Vera Cruz e a Agência Pública.

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