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O que a TV Justiça não mostrou: momentos marcantes de um julgamento histórico

Olhares, tensão, cansaço e recados marcaram os 3 dias decisivos na condenação de Bolsonaro por golpe de Estado

Reportagem
12 de setembro de 2025
16:00
Julgamento do Plano de Golpe no STF em 11/09/2025
Antonio Augusto/STF

Às 16h20 de 11 de setembro de 2025, a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) e membro da 1ª Turma da Corte Cármen Lúcia concluiu um voto histórico. Sua decisão formou maioria para condenar à prisão, pela primeira vez na história do Brasil, um ex-presidente da República, um ex-comandante da Marinha e ex-membros do Alto Comando do Exército por tentativa de golpe de Estado.

Por trás do fato histórico, o julgamento dos mentores da trama golpista teve cenas curiosas e simbólicas que a transmissão oficial não mostrou, mas a Agência Pública viu de perto.

Na quinta-feira, 11 de setembro, por exemplo, somente após a exibição de um vídeo com os “melhores momentos” da escalada golpista a pedido do relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, com mais de uma hora de sessão corrida, que seu colega de Turma Luiz Fux o olhou atentamente. Na véspera, Fux deu o voto dissidente no caso com diversas alfinetadas na posição de Moraes.

A reportagem também acompanhou o voto vencido no placar de 4 a 1 do início ao fim. Autoridades, jornalistas e advogados, de fato, lutaram contra cansaço, tédio e talvez irritação durante a leitura de mais de 400 páginas, por mais de 14 horas.

Por que isso importa?

  • Pela primeira vez no Brasil um ex-presidente da República e militares de alta patente são condenados pelo crime de golpe de Estado.
  • Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump aliou-se ao discurso de Bolsonaro e tem pressionado o Brasil com aumento de tarifas e sanções a membros do STF, como o ministro Alexandre de Moraes.

“Ninguém pode ser culpado pela cogitação”, “mera conjectura”, “alegação genérica” e “ilação” foram algumas das expressões usadas por Fux para refutar as evidências apresentadas pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e endossadas pelo ministro Alexandre de Moraes.

Sobre o quebra-quebra do dia 8 de janeiro de 2023, por exemplo, Fux disse que não passava de uma “turba desordenada”. Mas no próprio dia da tentativa de golpe a Pública revelou o uso do código “Festa da Selma” nas redes, para convocar bolsonaristas para invadirem e depredarem as sedes dos Três Poderes. 

Em grande parte desta sessão, os ministros e o procurador-geral da República, Paulo Gonet, sequer olhavam para Fux.

Ao fim, quando o presidente da Turma, Cristiano Zanin, lia o resumo do voto de Fux, o ministro carioca solicitou ajustes no trecho sobre o deputado federal e ex-diretor da Abin, Alexandre Ramagem (PL), dizendo a expressão “pedir vista”. A fala despertou, imediatamente, a atenção de quem ainda estava na sala, mas era um alarme falso, não um pedido. 

  • Ministros Zanin, Barroso e Fux
  • Ministro Luiz Fux
  • Nenhuma das autoridades olha para Fux

“Um divisor de águas na história do Brasil”

A maratona do voto de Fux na quarta-feira gerou respostas práticas e simbólicas no dia seguinte, com a condenação do “núcleo crucial” da trama, com penas que variam entre 16 e 27 anos de prisão.

Dois outros ministros do Supremo compareceram à sessão decisiva: o decano Gilmar Mendes e o presidente Luís Roberto Barroso. “Sua presença aqui diz muito sobre o seu caráter, presidente”, disse o ministro Flávio Dino, com o veredito já determinado pela Turma.

Prestes a deixar o cargo no próximo dia 28, o presidente do STF participou da sessão para discursar sobre o julgamento – um “divisor de águas na história do Brasil”, “baseado em provas das mais diversas: vídeos, textos, mensagens, confissões”, segundo ele.

Só o desconhecimento profundo dos fatos ou uma motivação descolada da realidade encontrará neste julgamento algum tipo de perseguição política
Presidente do Supremo Tribunal Federal do Brasil

Já o atual decano do STF esteve mais presente na primeira metade da sessão. Gilmar Mendes transitava constantemente entre a área restrita a ministros e auxiliares e o auditório da sala de sessões, onde conversava o tempo todo ao pé do ouvido com seu chefe de gabinete, Eduardo Ribeiro Granzotto.

  • Ministro Gilmar Mendes durante julgamento do plano de golpe no STF
  • Ministro Barroso durante julgamento do plano de golpe no STF

“Um resultado esperado”

Políticos de esquerda, direita e extrema-direita também compareceram nos últimos dias do julgamento do “núcleo crucial”. Ao contrário do que seus perfis nas redes sociais e atitude nas dependências do Congresso sugerem, os deputados da base bolsonarista estavam bem comportados na sala da 1ª Turma do STF. “Era um resultado esperado, né?”, disse à Pública o deputado Evair de Mello (PP-BA), membro da bancada ruralista.

Mello e o vice-líder da oposição na Câmara, Luciano Zucco (PL-RS), foram os únicos parlamentares próximos do clã Bolsonaro que estiveram nos três dias decisivos do julgamento. Tenente-coronel da reserva do Exército, o deputado gaúcho era o mais sociável da dupla, sempre conversando com jornalistas, advogados e até parlamentares de esquerda na sala da 1ª Turma.

Outro deputado bolsonarista, Ubiratan Sanderson (PL-RS), acompanhou as sessões apenas durante os votos de Fux, Cármen Lúcia e do presidente da Turma. Na quarta-feira, o deputado comentava empolgado com quem lhe abordava que o voto de Luiz Fux estava “superando as expectativas”. “Sou policial federal, então posso garantir que está sendo um voto muito técnico”, dizia. Com a condenação dos réus no dia seguinte, seu semblante mudou. 

“Se o voto do ministro Fux supera as expectativas deles, é porque eles não têm muito o que esperar, já que a posição dele [Fux] certamente vai ser superada amanhã”, disse à Pública a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), quando deixava o STF antes do término do voto vencido de Fux, na quarta.

Não me preocupo com o mérito do voto [do ministro Fux], porque isso favorece o caso, inclusive na esfera internacional. A dissidência mostra que os juízes da Suprema Corte brasileira têm total independência, que não estão sendo coagidos a nada
Deputada Federal do Brasil

Após o fim do julgamento, já na quinta, o deputado da base do governo Ivan Valente (Psol-SP) disse que o resultado do julgamento “superou as expectativas”. “É um passo muito importante na nossa história, vai deixar a lição que, quem tentar dar golpe, vai sofrer as consequências, ainda mais com a condenação de militares que eram da cúpula das Forças Armadas”, afirmou à reportagem.

Que país é este?

A expectativa pelo voto de Cármen Lúcia era mais que latente na sala da 1ª Turma. Se a discrição marcou os bastidores ao longo do julgamento, a leveza da ministra ao votar se alastrou, fazendo surgir sorrisos e exaltações, mesmo que contidas, na sala. Em um dos momentos, Lúcia fez até mesmo o ministro Fux – de expressão séria e fechada até aquele momento – sorrir. 

Outro dia, entrando na farmácia, uma pessoa me disse que vossa excelência [Moraes] era muito… não me lembro a palavra, mas não foi muito bacana. Ela disse assim: ‘Só porque falou que queriam neutralizá-lo. Neutralização não é ruim’. Como assim? Ela disse: ‘Uma amiga minha que fez neutralização ficou muito bem’. Não, a senhora está confundindo com harmonização
Ministra do Supremo Tribunal Federal

Como em outras vezes, Lúcia trocou o ‘juridiquês’ por frases marcantes e citações literárias. Ela abriu seu voto citando parte dos versos iniciais do clássico poema de Affonso Romano de Sant’Anna, “Que país é este?”, que começa assim:

“Uma coisa é um país
outra um ajuntamento.
Uma coisa é um país,
outra um regimento.
Uma coisa é um país,
outra o confinamento.”

Durante o voto de Cármen Lúcia, a maioria da 1ª Turma fez questão de mostrar sua sintonia quanto à condenação dos réus no caso. Sem o refinamento da ministra, o relator da ação pediu para se manifestar, exibindo um vídeo e uma sequência de fotos. As imagens remontavam a crise golpista – dos ataques do então presidente, Jair Bolsonaro, contra o próprio Moraes, no 7 de setembro de 2021 na avenida Paulista ao 8 de janeiro na Praça dos Três Poderes.

“Se isso não é ameaça… falar que não vai mais cumprir ordens judiciais não é uma grave ameaça?”, dizia exaltado o ministro, sob o olhar de Luiz Fux – de posição totalmente oposta à dele. “Vejam, havia até pedidos de intervenção militar em inglês! Já estavam preparando o ‘passeio’ para a Disney…”, alfinetou Moraes.

Vale lembrar que, durante o ataque em 8 de janeiro de 2023, o ex-ministro da Justiça, Anderson Torres, também condenado nesta quinta-feira, estava em Orlando, na Flórida (EUA) – conhecida por abrigar um parque de diversões da Disney. Sua defesa no caso usou esta viagem para alegar sua inocência na trama, sem sucesso.

Entre as defesas, um jovem advogado 

Entre o lado derrotado, certamente a defesa do general Augusto Heleno foi quem mais se destacou. Até o voto de Luiz Fux, não era possível afirmar que o ex-ministro do GSI seria de fato condenado.

Ao fim da primeira sessão da semana decisiva, na terça (9), o ministro Flávio Dino chegou a amenizar o papel do general na trama, sugerindo penas menores do que as previstas no Código Penal. O gesto causou surpresa na sala da 1ª Turma, fazendo com que o presidente Zanin encerrasse, logo na sequência, a sessão do dia.

O advogado do general Heleno, Matheus Mayer Milanez, contou à Pública que Dino foi um dos três ministros com quem teve audiências nas semanas anteriores ao julgamento – os outros dois foram Alexandre de Moraes e Cristiano Zanin. “Fiz o que podia: expus aos ministros as contradições da investigação e da denúncia, e o ministro [Dino] foi muito atencioso”, disse Milanez.

Mesmo com a decisão mais branda de Dino, o advogado não se mostrou empolgado, talvez já prevendo a futura condenação. “Por mais que o ministro tenha sugerido penas menores, se você somar todas as penas mínimas ainda dariam mais de oito anos de reclusão. Esse tempo para um senhor de idade avançada é uma ‘sentença de morte’”, afirmou Milanez à reportagem. 

Nascido em Campinas (SP), o advogado de Augusto Heleno contou ter assumido a defesa do general por indicação de “um amigo”, por ter experiência no Direito Militar. Milanez também representa Heleno legalmente em outro caso correndo no STF, a investigação da chamada Abin Paralela. Mesmo com o resultado negativo para seu cliente, ele já tem colhido frutos de seu trabalho.

“Se tem um lado positivo disso tudo, é que tenho visto um aumento no número de seguidores nas minhas contas em redes sociais. Em uma semana, a quantidade pulou de pouco mais de 5 mil seguidores para quase 60 mil… o jeito é aproveitar esse momento de exposição nacional, já estou até produzindo mais conteúdos, com apoio da minha equipe”, disse Milanez.

Edição:
Victor Piemonte/STF
Gustavo Moreno/STF
Victor Piemonte/STF
Gustavo Moreno/STF
Antonio Augusto/STF
Gustavo Moreno/STF
Antonio Augusto/STF
Antonio Augusto/STF
Gustavo Moreno/STF
Victor Piemonte/STF
Antonio Augusto/STF
Antonio Augusto/STF
Luiz Silveira/STF
Rosinei Coutinho/STF

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