Buscar
Coluna

Donald Trump na ONU e sua guerra à liberdade de expressão

Enquanto ataca escadas rolantes e teleprompters, presidente dos EUA tenta silenciar oposição e apresentadores de TV

Coluna
30 de setembro de 2025
04:00

Foi um acidente cometido por um membro da delegação dos Estados Unidos que paralisou a escada rolante das Nações Unidas (ONU) na semana passada, durante a Assembleia Geral, concluiu a organização. Acontece que o infortúnio aconteceu justo na hora que o presidente Donald Trump e sua esposa Melania começavam a subir as escadas. Mas esse acaso não impediu que a porta-voz da Casa Branca e os apoiadores de Trump na Fox News disparassem que se tratava de uma conspiração internacional para envergonhar o presidente dos EUA. Tampouco foi preciso buscar motivos para explicar o teleprompter com problemas, que foi apontado como um plano para sabotar o discurso de Trump diante de quase 150 chefes de Estado e diplomatas seniores.

Nenhuma das possíveis justificativas para esses fatos impediram Trump de, mais uma vez, assumir o papel de vítima e atacar as Nações Unidas. E, mais tarde, de reclamar que, muitos anos atrás, havia perdido a licitação para reformar o complexo da ONU.

Para além das infelizes coincidências, o discurso de Trump também foi recheado de alegações disparadas contra países, inclusive o Brasil.

Ele fez uma declaração sobre o país baseada nas informações falsas que Eduardo Bolsonaro e Paulo Figueiredo vêm alimentando a Casa Branca: “O Brasil agora enfrenta tarifas pesadas em resposta aos seus esforços sem precedentes para interferir nos direitos e liberdades dos cidadãos americanos e de outros países, com censura, repressão, armamento, corrupção judicial e ataques a críticos políticos nos Estados Unidos.”

Ironicamente, tudo o que Trump acusa o Brasil de fazer era exatamente o que ele vinha fazendo na mesma semana nos Estados Unidos. Mas, como Trump aprendeu há muito tempo, a melhor defesa é um bom ataque.

De repente, saindo do roteiro, ele mencionou Lula, que acabara de conhecer. Aparentemente, tudo o que Trump precisava era de um sorriso caloroso e um abraço brasileiro amigável. De repente, eram melhores amigos:”tivemos uma química excelente. É um bom sinal”, disse. Um possível encontro entre os dois na próxima semana pode resultar em uma redução nas tarifas que os Estados Unidos impuseram ao Brasil.

Trump pode, honestamente, sentir a química entre Lula e ele. Afinal, Lula é uma pessoa tremendamente carismática, calorosa e efusiva. Mas isso sinalizaria que Trump estava desistindo de sua campanha para forçar o Brasil a conceder anistia a Bolsonaro ou reduzir sua pena. Significaria abandonar um “velho amigo”.

O presidente dos EUA é famoso por se distanciar ou cortar relações com ex-aliados a qualquer momento, quando essa pessoa não serve mais aos seus interesses. Mas Trump, e pelo menos alguns dos assessores que o cercam, ainda têm interesse em apoiar a extrema direita na América Latina.

Um reflexo dessa preocupação política foram os primeiros cumprimentos de Trump à sua alma gêmea autoritária, o presidente Nayib Bukele, de El Salvador, durante seu discurso na ONU.

Na mesma semana, o governo dos EUA ofereceu apoio ao presidente argentino Javier Milei, um libertário de extrema direita. O secretário do Tesouro, Scott Bessent, anunciou que os Estados Unidos estenderiam uma linha de 20 bilhões de dólares à Argentina, trocando por pesos argentinos para estabilizar a economia às vésperas das importantes eleições legislativas de outubro.

Dadas essas considerações geopolíticas e a crescente agressão de Trump contra a Venezuela, parece altamente improvável que haja um “namoro” duradouro entre os dois líderes mais importantes das Américas.

Trump ataca humoristas e apresentadores: o cancelamento MAGA

O desastre de Trump nas Nações Unidas deu aos comediantes de TV noturnos muito material para zombar do presidente. Isso ocorreu enquanto uma campanha nacional bastante espontânea criticava o ataque frontal da Casa Branca à liberdade de expressão no mundo do entretenimento.

A agressão de Trump começou em julho. A CBS anunciou o cancelamento do programa do apresentador e comediante Stephen Colbert, no ano que vem, após ele ter criticado um acordo judicial de 16 milhões de dólares entre a Paramount Global, empresa controladora da CBS. Em este processo bem-sucedido, Trump alegou que a CBS havia editado desfavoravelmente uma entrevista com Kamala Harris durante a campanha eleitoral presidencial de 2024.

Na época, críticos da mídia observaram que Trump tinha um argumento fraco e teria sido difícil ganhar o caso. Colbert concordou e chamou isso de “suborno gordo”, pois a Paramount Global precisava da aprovação do governo federal para uma fusão de 8,4 bilhões de dólares com a Skydance Media.

Menos de uma semana após a decisão de cancelar o programa de Colbert, a Comissão Federal de Comunicações (FCC) aprovou a fusão. Por sua vez, Trump comemorou o fim do programa.

O comediante Jimmy Kimmel foi o próximo a ser atacado. Quase imediatamente após o assassinato do ativista conservador Charlie Kirk, Kimmel sugeriu que a extrema direita usaria sua morte para agredir a esquerda. Em todo o país, conservadores criticaram os comentários de Kimmel como mais uma campanha antiamericana da mídia tradicional “fake”. Trump clamou pela remoção de Kimmel. O presidente da FCC, Brendan Carr, também se manifestou pedindo a suspensão de Kimmel. “Podemos fazer isso do jeito fácil ou do jeito difícil”, ameaçou. Em poucas horas, a ABC anunciou a suspensão de Kimmel.

A ironia das ações dos apoiadores de Trump era evidente. Após anos de reclamações republicanas sobre censura de esquerda e cultura do cancelamento, Trump e seus aliados do MAGA estavam fazendo o mesmo.

Significativamente, houve uma reação imediata de um punhado de apoiadores de Trump no Senado em defesa dos direitos de liberdade de expressão de Kimmel. O senador ultraconservador do Texas, Ted Cruz, manifestou-se veementemente contra a iniciativa do governo de silenciar um crítico de Trump, comparando suas ações às de um chefe da máfia. O senador libertário Rand Paul também criticou a medida. Até mesmo o ex-líder do Senado, Mitch McConnell, se manifestou contra o ataque contundente do governo à liberdade de expressão.

Este pequeno grupo de vozes no Senado, raro de se ouvir da maioria republicana no Congresso, marca a segunda divisão entre os apoiadores de Trump, já que um punhado de republicanos também se juntou aos democratas no apoio a uma petição que forçaria o Congresso a votar a exigência da divulgação dos arquivos de Epstein.

Mais importante, a indignação pública foi quase imediata contra a Disney, empresa controladora da ABC. O sindicato dos escritores de Hollywood (Writers’ Guild of America) organizou um protesto em frente aos estúdios Disney em Burbank, Califórnia. Artistas proeminentes do entretenimento ameaçaram boicotar a gigante da mídia. Milhares de assinantes dos serviços de streaming da Disney cancelaram suas assinaturas.

De repente, a Disney reverteu sua suspensão e Kimmel estava novamente no ar, defendendo a liberdade de expressão e criticando a campanha do governo. Mais uma vez, Trump não conseguiu se conter e criticou duramente seus inimigos. Ele enviou uma mensagem condenando a decisão da ABC e ameaçou processar a empresa por trazer Kimmel de volta.

Como se isso não bastasse, na semana passada, Trump também atacou outros três inimigos políticos. O procurador dos EUA, Erik Siebert, nomeado por Trump, não conseguiu encontrar evidências suficientes para apresentar acusações de suposta fraude hipotecária contra a procuradora do estado de Nova York, Leticia James, que havia processado Trump com sucesso por práticas comerciais fraudulentas. Imediatamente o presidente exigiu sua renúncia.

Ele então publicou uma mensagem nas redes sociais exigindo que James, juntamente com o ex-diretor do FBI James Comey e o senador da Califórnia Adam Schiff, fossem imediatamente levados à justiça, alegando que eles eram “culpados como o diabo” por crimes não especificados.

Trump também escolheu Lindsey Halligan, ex-assessora da Casa Branca, cuja única experiência jurídica foi com questões relacionadas a seguros, como a nova Procuradora-Geral do distrito de Virginia, para substituir Seibert. Ela imediatamente obteve uma acusação contra Comey por supostamente mentir ao Congresso durante uma audiência em 2020 sobre vazamentos de informações do governo sobre investigações em andamento do FBI.

Especialistas jurídicos consideram que será muito difícil para o novo promotor federal, que tem pouca experiência, conduzir o caso com sucesso. Mas esse não é o ponto.

Uma retaliação pode forçar qualquer um inimigo de Trump a gastar centenas de milhares de dólares para se defender em tribunal. Trump pode usar esses casos para reforçar a narrativa de que está sendo constantemente atacado injustamente por seus inimigos.

Esses assaltos à liberdade de expressão têm três objetivos principais:

(1) silenciar os críticos de Trump, que podem temer processos judiciais onerosos;

(2) fortalecer seu apoio entre setores de sua base que clamam pela divulgação dos arquivos de Epstein;

e (3) buscar vingança mesquinha e infantil contra aqueles que o menosprezaram e feriram seu frágil ego.

Tudo isso acontece em um momento em que o apoio popular a Trump continua a diminuir. Pesquisas da Universidade Quinnipiac e da Reuters/Ipos mostram um ligeiro aumento na insatisfação com o desempenho do presidente. A maioria dos entrevistados também temia que a liberdade de expressão não estivesse sendo suficientemente protegida.

Na pesquisa da Universidade Quinnipiac, entre 53% e 56% dos entrevistados se opuseram a sete das principais iniciativas políticas de Trump: imigração, política externa, economia, violência armada, a Guerra Rússia-Ucrânia e o conflito Israel-Hamas. O apoio público ao desempenho de Trump nessas questões permanece na faixa entre 30 e 40%.

A resistência popular está aumentando. O próximo grande teste tanto para Trump quanto para os democratas será se o governo sera paralisado devido à recusa dos republicanos em negociar um acordo orçamentário com os democratas.

Trump também se nega a se reunir com a oposição no Congresso. Em vez disso, ameaçou demitir dezenas de milhares de trabalhadores caso sejam temporariamente dispensados ​​enquanto o Congresso discute um acordo. Os democratas, por sua vez, exigem uma proposta negociada que reverta os severos cortes na cobertura médica financiada pelo governo federal para pobres, deficientes e idosos.

Se os democratas forçarem os republicanos a negociar um acordo, será um sinal de que estão ganhando força e impulso em sua oposição aos contínuos ataques de Trump à democracia.

Edição:
Reprodução The Late Show with Stephen Colbert

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Se você chegou até aqui é porque realmente valoriza nosso jornalismo. Conheça e apoie o Programa dos Aliados, onde se reúnem os leitores mais fiéis da Pública, fundamentais para a gente continuar existindo e fazendo o jornalismo valente que você conhece. Se preferir, envie um pix de qualquer valor para contato@apublica.org.

Vale a pena ouvir

EP 187 O futuro vai ser pior que o presente?

Viveiros de Castro reflete sobre os crimes do bolsonarismo, a crise climática e os riscos da inteligência artificial

0:00

Aviso

Este é um conteúdo exclusivo da Agência Pública e não pode ser republicado.

Leia de graça, retribua com uma doação

Na Pública, somos livres para investigar e denunciar o que outros não ousam, porque não somos bancados por anunciantes ou acionistas ricos.

É por isso que seu apoio é essencial. Com ele, podemos continuar enfrentando poderosos e defendendo os direitos humanos. Escolha como contribuir e seja parte dessa mudança.

Junte-se agora a essa luta!

Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes