Fazia quase 0ºC quando o brasileiro Pedro (nome fictício), de 23 anos, atravessou o Rio Grande, que divide os Estados Unidos e o México. Era por volta das 23h do dia 23 de janeiro deste ano. Com a água na cintura, ele precisou enfrentar a correnteza gélida, enquanto segurava André (também nome fictício), seu irmão mais novo, de 17 anos, que também fazia a mesma travessia rumo ao país do recém-empossado presidente Donald Trump. O destino dos irmãos era algum lugar onde pudessem viver juntos em segurança, mesmo sabendo que ingressaram ilegalmente. Os jovens, no entanto, não imaginavam que estavam prestes a encarar o pesadelo do encarceramento de imigrantes sem visto de permanência nos EUA.
Pode parecer contraditório, mas eles esperavam serem pegos pela patrulha de fronteira dos EUA (USBP, em inglês), com o intuito de recorrerem ao direito de permanecer em território estadunidense, enquanto ainda estivessem detidos. O que Pedro não esperava é que a ideia levaria o processo de quase sete meses, além de lhe custar a deportação e sua saúde física e psicológica.
Por que isso importa?
- A mudança das leis de imigração nos EUA por Donald Trump levou à deportação de mais de 200 mil nos seis primeiros meses deste ano. Cerca de 1,8 mil brasileiros foram detidos;
- As prisões e detenções têm sido denunciadas pelo uso de violência por parte dos agentes e por infrações a direitos humanos nas prisões e durante o processo de deportação.
Irmãos separados pela polícia de imigração dos EUA
Entre janeiro 20 de janeiro de 2025 – data de posse do presidente Donald Trump – e o dia 30 de março do mesmo ano, 233 brasileiros foram detidos pela USBP nas fronteiras dos Estados Unidos, incluindo crianças entre 1 e 12 anos, segundo um levantamento feito pela Agência Pública com base nos números divulgados pela patrulha de fronteira.
Assim que atravessaram a fronteira e alcançaram Brownsville, no Texas, os irmãos Pedro e André foram interceptados e separados pelo Serviço de Imigração e Alfândega dos EUA (ICE, em inglês). O mais novo foi encaminhado para um centro de detenção para adolescentes e Pedro, transferido à unidade de Port Isabel, na cidade de Los Fresnos, a 43 quilômetros da fronteira, onde passou cinco meses detido.
Na primeira semana, o brasileiro contou que não teve notícias sobre André. A promessa de uma agente do ICE era de que Pedro encontraria o seu irmão em breve, mas aquele 23 de janeiro foi o último dia em que eles se viram.
“Eu senti muita aflição, porque meu irmão é uma pessoa forte mas querendo ou não, a gente estava em outro território, eu estava longe de casa, então eu me preocupava, mas ao mesmo tempo eu tinha esperança que ia ficar tudo bem e que logo eu o encontraria”, rememorou.
Mesmo separados, o ICE não permitia contato entre os irmãos, porque estavam em centros de detenção diferentes. Então, as informações que um tinha sobre o outro vinham de familiares com quem estabeleciam contato externo. Como ligações, chamadas de vídeo e mensagens de textos eram cobradas pelo centro de detenção, o brasileiro usou de suas economias para poder estabelecer contato com a irmã mais velha e por intermédio dela é que tinha informações do caçula.
Após cinco meses detido, ainda em Port Isabel, Pedro soube que André foi admitido no país, na condição de asilo, assim que completou 18 anos. Hoje, o jovem vive com um familiar no interior dos EUA.
Segundo Larissa Salvador, advogada especialista em imigração nos EUA, mesmo que Pedro tenha ingressado no território como responsável por André, os Estados Unidos não o reconhecem como o guardião legal do adolescente. “Nesses casos, a lei exige que o menor seja transferido para a custódia, para um departamento específico e que ele fique em abrigos próprios para adolescentes”, explicou.
Um sistema lucrativo para prender migrantes
Naquele 23 de janeiro, Pedro não sabia que enfrentaria “o pior momento” de sua vida: ao todo, foram quase sete meses detido nos quais perdeu 10 quilos, não por uma dieta, mas pela quantidade de comida servida no centro de detenção para imigrantes. O cardápio era variado, mas com pouca porção. “Quem não tinha dinheiro para comprar mais comida, passava fome”, contou.
Para se alimentar melhor, o brasileiro passou a comprar comida dentro do complexo de detenção. Ele gastou cerca de R$ 15 mil da economia que havia feito para sair do Brasil para os EUA.
De acordo com uma das integrantes da Coalizão de Defesa dos Imigrantes e Refugiados de Massachusetts (MIRA, em inglês), que conversou com a Pública, sob condição de anonimato por ainda aguardar o seu cartão de permanência definitiva no país, as prisões funcionam como espaços de negócios lucrativos para empresas que administram centros de detenção privados.
“O sistema de encarceramento é uma máquina que precisa de corpos, então você ter os detidos lá por dias, meses, é muito vantajoso para esse sistema”, disse. Reportagem da BBC mostrou como grupos que administram esses centros esperavam dobrar a rentabilidade com Trump.
No Brasil, o jovem era estudante de Educação Física, lutador de Muay Thai (boxe tailandês) e estagiava em academias como personal trainer, em sua cidade no interior de Minas Gerais. A rotina era de treinos quase diários. Mas, assim que foi detido nos Estados Unidos, no lugar do corpo atlético, Pedro emagreceu, começou a perder cabelo e abateu-se pelas poucas horas de sol disponíveis.
Assim que foi transferido de McAllen para Port Isabel, em 24 de janeiro, os agentes do ICE o colocaram algemas nos calcanhares, pulsos e abdômen. O brasileiro não imaginava que passaria tanto tempo sob cárcere, aguardando para que um juiz apreciasse o pedido de asilo e lhe concedesse o acesso aos Estados Unidos.
“Quando cheguei lá [em Port Isabel] eu pensei: ‘o que vai acontecer comigo agora?’. Porque lá realmente é assustador”, descreveu Pedro.
A vida parecia imitar a arte, pois, segundo Pedro, o complexo parecia uma “cena de filme” hollywoodiano em que as prisões estadunidenses são retratadas. O local era composto por grandes salas, com capacidade para 75 pessoas, um banheiro comunitário e bancadas que funcionam como camas. A única forma de se proteger do frio intenso do inverno era uma manta térmica entregue logo na chegada ao centro de detenção.
“Não tem portas que dividem os banheiros […] Então, no momento que você vai fazer suas necessidades básicas, as pessoas entram e sentam em sanitários do seu lado e acabam vendo você”, desabafou.
Em alguns momentos, os imigrantes detidos tiveram itens de higiene básica negados, sob a justificativa de que “o governo não havia mandado”, segundo Pedro. Por vezes, os guardas não entregavam, sequer, papel higiênico, denuncia.
Com o passar do tempo, o jovem passou a ter crises de estresse e ansiedade, em virtude das incertezas de quando sairia do centro de detenção, se teria direito ao asilo nos Estados Unidos e quando poderia encontrar o seu irmão caçula novamente.
“Nos primeiros meses foi muito difícil e desafiador, porque é estranho você estar em um lugar e não ter sequer noção de quando você vai sair dali e como que vai ficar sua situação”, suspirou.
Conforme o tempo passava, a vontade de pedir deportação era constante, mas o instinto protetivo o impedia de deixar André sozinho, que ainda estava detido em outro lugar do país.
“Era uma pressão psicológica enorme, porque se eu tivesse a opção de desistir mais cedo eu tinha a opção, mas […] o meu irmão estava em outro abrigo, então eu não podia sair de lá e abandoná-lo. Então, eu fui obrigado a ficar.”
Pedro sentiu que a sua vida parou no tempo, sob a rotina que era a mesma todos os dias: contagem de detidos em três turnos diferentes, café das manhã às 5h, almoço às 11h e jantar às 16h, poucas horas de sol e o entretenimento disponível ao brasileiro e os outros detidos que era uma cesta de basquete.
A perigosa travessia para os Estados Unidos
Conhecidos como “coiotes”, grupos brasileiros oferecem a travessia ilegal até os Estados Unidos, saindo do Brasil. Pedro havia optado pelo formato da viagem, porque precisava deixar o país às pressas, em virtude de problemas pessoais que sofreu em sua cidade. Sem tempo para tentar um visto permanente e com um familiar vivendo nos EUA, ele não hesitou e arriscou cruzar a América Latina de forma perigosa.
Ao todo, os irmãos gastaram R$ 45 mil para chegar aos Estados Unidos, em uma travessia de 14 dias pelo continente. O primeiro trecho foi um voo de São Paulo para Cidade do Panamá, onde realizaram uma escala, para depois seguirem para San Salvador, a capital de El Salvador, presidido pelo ultradireitista e aliado de Donald Trump, Nayib Bukele.
De San Salvador até a fronteira da Guatemala com o México, os brasileiros e mais 16 pessoas de nacionalidades diversas foram transportadas por ônibus e carros particulares.
Para cruzar a fronteira com o México, o grupo foi colocado em canoas que atravessaram o rio Usumacinta, tido como um dos mais importantes da América do Norte, cuja profundidade pode chegar a 10 metros, em alguns trechos.
“Sem colete salva-vidas, sem nada. Extremamente perigoso a ponto de que se acontecer da canoa virar, quem não sabe nadar se afoga”, exclamou.
Em território mexicano, o grupo passou cinco dias escondido em Cancún, cidade banhada pelo Mar do Caribe, até que tivessem autorização para seguir viagem em direção à fronteira com os Estados Unidos.
A viagem até Monterrey, no norte do México, foi feita em um carro pequeno, com apenas oito assentos, mas que foi dividido por Pedro, o irmão e mais 16 estrangeiros. No trajeto, o grupo teve que deixar pertences pessoais para trás, para que coubessem dentro do veículo. “Eu tive que viajar quase 20 horas dentro de um carro com mais 16 pessoas”, contou.
De Monterrey até a fronteira com os EUA, o grupo foi dividido em carros e motos. Lá tiveram que desembolsar mais mil dólares, cerca de R$ 5,5 mil, para grupos armados locais, sem ter a certeza de que chegariam em segurança aos Estados Unidos.
“É impossível você conseguir chegar lá sozinho, sem correr risco de vida, porque é perigoso, [afinal] você vê pessoas armadas [ao longo do trajeto]”, disse.
Pela demora para cruzar o continente, Pedro chegou aos EUA três dias após a posse de Donald Trump e o anúncio de uma série de decretos, entre eles, o de endurecimento das políticas migratórias que limitavam o pedido de asilo político e aceleravam a deportação de quem não tenha a documentação de permanência no país.
“O processo básico de asilo é que o solicitante que entra pela fronteira […] passa por uma entrevista de ‘medo crível’ para verificar se há fundamento para o pedido, caso positivo, caso enviado à Corte de Imigração. Então, o solicitante tem que apresentar uma solicitação formal, que é o formulário 1589 e participar das audiências perante o juiz de imigração”, explica a advogada Larissa Salvador sobre o processo de asilo.
Ao longo do período em que esteve preso, Pedro passou por três avaliações com juízes estadunidenses até que na última instância da corte do processo ele teve o seu pedido de asilo político negado. Ele teve a chance de recorrer, mas conseguiu retornar ao Brasil antes disso.
A advogada explica que é comum o pedido de asilo vindo de imigrantes que cruzam a fronteira ilegalmente. No entanto, o processo pode ser demorado, em decorrência da “sobrecarga do sistema imigratório, que tem um grande acúmulo de casos em postos de detenção, como [o caso de] Port Isabel”.
O retorno ao Brasil
No final de julho, Port Isabel recebeu mais um brasileiro, que já havia passado por diversos centros de detenção no território dos Estados Unidos. Era Salomão Borges, cuja história é contada pela Pública nesta série. O destino parecia ter cruzado o caminho dos dois para que Pedro pudesse colocar um fim à sua saga de quase sete meses detido.
Quando Borges foi colocado na fila para ser deportado ao Brasil, ele pediu ao Pedro para que avisasse à sua mãe, Edlaine Távora, sobre o seu retorno. Em pouco menos de dois minutos, Pedro pôde compartilhar parte de sua história. Távora, comovida com a história do brasileiro, passou a buscar ajuda do governo brasileiro para que conseguisse a deportação do jovem.
“Através desses contatos, ela conseguiu fazer com que [a minha história] chegasse na embaixada [do Brasil], pra embaixada entrar em contato diretamente com o meu deportador”, contou Pedro.
Ele chegou ao Brasil em 14 de agosto, em voo que saiu do Texas, com parada em outros dois países e destino final no Aeroporto Internacional de Confins, em Belo Horizonte, a capital mineira.
Agora, Pedro pensa em recomeçar a vida, mesmo longe do irmão André, sem a namorada e com as lembranças do pesadelo que passou no país de Trump.
Por meio de nota, o Ministério das Relações Exteriores (MRE), conhecido como Itamaraty, disse que não foi acionado para intermediar o caso de Pedro.
“Desde o início do ano, o Ministério das Relações Exteriores acompanha atentamente os desdobramentos da política migratória do governo norte-americano. O Ministério mantém contato com as autoridades dos Estados Unidos, com vistas a assegurar a devida prestação de assistência consular aos brasileiros que eventualmente se encontrem detidos naquele país, inclusive por meio de visitas regulares de agentes consulares brasileiros aos centros de detenção do ICE “, diz a nota.
O ICE foi questionado pela reportagem sobre as denúncias feitas, mas disse que só se posicionaria caso tivesse os nomes dos detidos, que foram preservados pelo risco que suas famílias – que ainda vivem nos EUA – podem correr.
Trump mudou leis de imigração nos EUA, resultando em 200 mil deportações, 1,8 mil brasileiros detidos e denúncias de violência e violações de direitos humanos. Se você conhece alguém que passou ou está passando por isso e deseja compartilhar conosco para investigarmos, preencha o formulário abaixo. Não passe informações sensíveis neste espaço: nossa equipe vai entrar em contato através de um email seguro para pegar mais informações.