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Entrevista

Bebida alterada: Justiça não garante direito de vítima e mantém privilégios, diz advogado

Guilherme Leroy atua em ação contra cervejaria de BH que intoxicou 29 pessoas em 2020 e aponta riscos de impunidade

Entrevista
2 de outubro de 2025
19:42
DuyNod/Pixabay

Desde que surgiram as primeiras notícias sobre a contaminação de bebidas alcoólicas por metanol, que já provocou ao menos seis mortes em São Paulo, o telefone do advogado Guilherme Costa Leroy, doutor em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), não parou de tocar. Tratam-se de repórteres que, como eu, o procuraram para entender como fica o consumidor lesado por bebidas alcoólicas adulteradas. Leroy é o defensor de familiares e vítimas do caso envolvendo a cervejaria Backer, cuja parte da produção foi contaminada, em 2020, por monoetilnoglicol e dietilenoglicol.

Como na adulteração por metanol ainda sob investigação em São Paulo e outros estados do país, as cervejas da marca Belorizontina contaminadas intoxicaram diversos consumidores em 2020 e causaram danos irreparáveis. Dez pessoas morreram, outras dezenove sofrem ainda hoje de sequelas graves. O temor de Leroy é que, no caso do metanol, outro fator lamentável se repita: a impunidade dos responsáveis e a dificuldade das vítimas e suas famílias conseguirem uma indenização.

“Mesmo depois que eu tenho prova, que eu tenho um processo, é claro que [se a empresa tem] bons advogados, uma boa estrutura, uma boa orientação, pode te levar, enquanto empresa, a uma solução que resolva o problema, ou para caminhos que dificultem o pagamento”, avalia Leroy.

Mais do que uma injustiça isolada, para o advogado mineiro esse é um padrão na Justiça brasileira quando de um lado estão grandes empresas, querendo se precaver de indenizações milionárias e, do outro, consumidores comuns. “Existe um desequilíbrio muito forte, que no direito a gente estuda, que são os hipersuficientes e os hipossuficientes. Os grandes litigantes e os litigantes eventuais. Então, tem gente que está sempre na justiça e já sabe como a máquina funciona. (…) Há um desequilíbrio muito grande nisso. Existe poder político, econômico, social, que impede um acesso rápido a esses direitos”, explica à Agência Pública.

O advogado ainda alerta sobre uma “prática jurídica” que está entre os fatores capazes de impedir uma “efetiva punição”. Ela remonta ao passado colonial do Brasil, quando o sistema local para “se contrapor ao império português, ficava dando um jeito de fugir da legislação”. “Isso era suportado integralmente. Era entendido como algo natural. E acho que vem até hoje [se mantendo] de alguma forma”, afirma Leroy.

Dentro dessa lógica, “comportamentos duvidosos podem ser mais naturalizados do que deveriam ser. E o que isso gera? A perpetuação dos privilégios”, aponta. “Enquanto isso fizer parte do jogo, a impunidade vai continuar sendo maior do que a gente deseja e a injustiça vai continuar acontecendo”.

Muitas vezes valendo-se de manobras jurídicas e de um comportamento “que não é fiel, não é leal, que tem má fé por trás, mas parece que faz parte do jogo”, as grandes empresas conseguem empurrar por longos anos as decisões finais em processos em que o consumidor, sem sombra alguma de dúvida, foi prejudicado – quando não morto.

Advogado Guilherme Leroy é especialista em direito do consumidor

Acompanhe, a seguir, a entrevista com o advogado.

Por que é tão difícil para as vítimas de intoxicação por metanol em bebidas alcoólicas, no Brasil, conseguirem alcançar seus direitos a indenizações e pagamento dos custos hospitalares?

Todo processo judicial tem garantias para que não exista um julgamento arbitrário, para que as coisas não sejam determinadas sem ouvir todas as partes. Então, tem uma parte da demora que é natural de qualquer processo, seja aqui, seja em qualquer lugar do mundo. Essa parte, especificamente no Brasil, demora mais devido ao grande volume e à complexidade da nossa justiça. E nós temos um desequilíbrio entre consumidores e uma grande empresa.

Uma grande empresa, ela é responsável por todas as etapas da produção que acontece ali dentro, só que ela que tem o poder econômico. É muito mais difícil um consumidor provar que uma cerveja estava contaminada, do que a empresa mostrar que tudo que estava sendo feito ali, foi feito da maneira correta. Por isso que a gente tem formas de resguardar isso, como a manutenção de uma parte do lote, enfim, vistorias, fiscalização e tudo mais.

Mas é extremamente custoso para um ou poucos consumidores fazerem provas disso, porque são provas periciais. Nós temos que pedir para adentrar dentro dos imóveis, para fazer perícia in loco, isso é muito complicado. Então, quando a gente entra numa seara criminal, aí nós vamos ter apoio da polícia, começa a ficar um pouco mais fácil para angariar provas. Mas mesmo depois que eu tenho prova, que eu tenho um processo, é claro que [se a empresa tem] bons advogados, uma boa estrutura, uma boa orientação, pode te levar, enquanto empresa, a uma solução que resolva o problema, ou para caminhos que dificultem o pagamento.

Então, também depende do comportamento da outra parte. Se a outra parte ficar adiando de forma a dificultar… Infelizmente, no Brasil, existem várias formas de tornar mais e mais difícil o acesso [à justiça]. E, obviamente, como são indenizações milionárias, o empresário não quer pagar.

A pessoa muitas vezes acredita que não é responsável, e eu não estou entrando no mérito. Se é ou não, a justiça que vai dizer se tem que pagar ou não a indenização. Mas não há uma liberalidade para, simplesmente, realizar esse pagamento de uma maneira fácil e simples.

E, quando a gente está diante desse pagamento, ainda tem duas questões. Tem bens que são da empresa e tem bens que são dos sócios. Eles vão tirar os próprios bens para pagar por algo que aconteceu na empresa? Dificilmente isso acontece.

Normalmente, eles tentam deixar que a empresa arque com a indenização com o seu próprio patrimônio. E, na maioria das vezes, ela não tem patrimônio para arcar com todos os danos causados. Seja porque os próprios sócios lucraram durante muito tempo, tiraram o dinheiro dessa empresa, se favoreceram disso, seja porque o planejamento interno da empresa foi distribuir esses bens para outros lugares, para não perdê-los.

Existe um desequilíbrio muito forte, que no direito a gente estuda, que são os hipersuficientes e os hipossuficientes. Os grandes litigantes e os litigantes eventuais. Então, tem gente que está sempre na justiça e já sabe como a máquina funciona. Não é o caso do consumidor, que vai ter uma ou outra ação na justiça. E aí, há um desequilíbrio muito grande nisso. Existe poder político, econômico, social, que impede um acesso rápido a esses direitos.

O que a legislação prevê para o caso de consumidores que ingerem produtos adulterados?

Todo dano causado por um produto tem que ser reparado. E quando a gente fala de alimentos, ninguém fica conferindo a produção desse alimento. Há uma organização da sociedade, a sociedade já evoluiu a uma taxa de confiança tamanha, que a gente bebe um refrigerante sem saber o que tem ali dentro.

Quando a gente trata de um produto alimentício, há uma pressuposição muito grande de que tudo é feito nos máximos cuidados, observando os mínimos detalhes. Então, segue uma lógica geral de que o dano causado tem que ser responsabilizado e ele [o consumidor] tem que ser indenizado, respondido. E aí, quando a gente trata especificamente de direito do consumidor, é uma responsabilidade que a gente chama de objetiva. Não importa a empresa, se teve culpa de alguém ou não. É responsabilidade da empresa que esse alimento chegue para a população de uma forma saudável.

Se por acaso alguma coisa aconteceu, ela vai se responsabilizar perante o consumidor e depois cobrar um regresso de quem causou esse prejuízo a ela. Vamos dizer, se alguém tivesse entrado lá na fábrica e tivesse sabotado alguma coisa. A empresa continua sendo responsável pelo consumidor, depois ela pede o regresso para essa pessoa que atrapalhou. É uma garantia para proteger o consumidor que, como eu disse, é hipossuficiente. Não importa o que aconteceu lá dentro. Você entregou esse bem, é responsabilidade sua.

A atual legislação para esse tipo de situação é cumprida? É comum que os culpados sejam identificados e punidos?

Isso vai variar muito de processo a processo. A gente vê que nesse caso do metanol está havendo uma dificuldade de identificar a origem de tudo isso. Mas, fato é, quando há relação de consumo, o nosso Código de Defesa do Consumidor é bem protetivo. Costuma-se, sim, haver uma responsabilização.

A título de exemplo, hoje em dia, entre os casos que mais têm questões de consumo, estão atraso de voo ou indenização, ou registro em cadastro de crédito indevido. Nesses casos, há muita demanda que realmente identifica a responsabilidade perante o consumidor. O que acontece é que, já em casos muito expressivos e chocantes, as indenizações são muito grandes.

As pessoas fogem, realmente, da responsabilidade. Enfim, isso gera um comportamento das empresas que, muitas vezes, é contrário à resolução da questão. No caso da Backer, especificamente, houve uma resistência muito grande no início, que depois se alterou, mas até hoje não há uma solução proposta pela empresa para a finalização do pagamento dessas indenizações.

Situações como estas mereceram a atenção devida no código de proteção ao consumidor? Seria preciso fazer alguma mudança na lei?

Eu acho que o Código de Proteção do Consumidor é bem protetivo. Eu não vejo isso como uma questão legal. Vejo como uma questão da prática jurídica em si. Nós temos instrumentos que poderiam proibir o uso estratégico de oportunidades jurídicas, o uso estratégico de algumas normas ou de procedimentos da legislação.

O que falta é a efetiva punição. Enfim, entrando em um aspecto mais técnico, a gente poderia remontar isso ao sistema colonial, porque o Brasil tinha que se contrapor ao império português e ficava dando um jeito de fugir da legislação. Isso era suportado integralmente. Era entendido como algo natural. Acho que isso vem [se mantendo] até hoje de alguma forma. Aceita-se um comportamento que você sabe que não é fiel, não é leal, que tem má-fé por trás, mas parece que faz parte do jogo.

Enquanto isso fizer parte do jogo, a impunidade vai continuar sendo maior do que a gente deseja e a injustiça vai continuar acontecendo. Uma identificação mais certeira de comportamentos que procuram validar um direito, em face de comportamentos que estão procurando perpetuar, ou frustrar, o direito que está em questão. Isso vai fazer grande diferença.

O que a gente vê é, na verdade, o incentivo, ainda que de meios transversos, de comportamentos que levam à impunidade. Como a impunidade permanece, você acaba incentivando as pessoas a tentarem. Tem gente que consegue. Não é 100%, mas acaba sendo incentivado.

Essa litigância de má fé, então, é tomada como um artifício natural no meio jurídico?

Comportamentos duvidosos podem ser mais naturalizados do que deveriam ser. E o que isso gera? A perpetuação dos privilégios. Pensa num sócio que teve todo o privilégio do lucro, todo o privilégio do exercício do poder na empresa, e quando tem que ser responsabilizado, não sofre a pena. Costumo falar muito que o lucro vem junto do risco que você assume.

Não importa se o lucro está dentro da empresa ou já foi para a pessoa física. Principalmente quando nós estamos tratando de falecimentos, de destruição de família, de estruturas que nunca mais serão as mesmas. As famílias nunca mais vão ser as mesmas.

Uma vez que foi lesado por produtos adulterados, quais os caminhos legais o consumidor pode seguir?

Qualquer órgão de defesa do consumidor saberá tomar as devidas providências. Nós temos o PROCON, a Defensoria Pública, o Ministério Público e os próprios advogados, que também vão saber orientar. É sempre importante procurar contato com a empresa, expor o ocorrido.

Existem muitas empresas que vão procurar resolver a questão. E se não for possível neste contato particular entre o consumidor e a empresa, esses outros órgãos conseguem ajudar. E tem muitos instrumentos legais para que isso aconteça.

Quais as diferenças entre o caso recente de metanol em bebidas em SP e a intoxicação envolvendo a cervejaria Backer?

Ainda é muito difícil traçar um paralelo entre os dois casos, porque o do metanol não foi tão esclarecido quanto o da Backer. Em comum, a gente observa a presença de um elemento que não deveria estar presente na bebida; pessoas com lesões graves, permanentes e falecimentos. Mas até o momento é tudo que a gente pode dizer de semelhança.

Não é possível identificar se isso vem de uma produção específica, de uma empresa específica, de um produto específico. Pelo que eu tenho acompanhado, isso ainda não está esclarecido. É um pouco diferente da Backer, que ficou bem mais contido a um tipo de produto. De toda forma, perante a lei, o que mais importa é o resultado. Os resultados são mortes, os resultados são lesões graves, e isso tem que ser reparado. Como eu disse, também é uma relação de equilíbrio, benefício e prejuízo.

No momento que você perde a confiança nesse setor produtivo alimentício, é preciso haver uma resposta muito grande, senão eu abalo todo esse sistema. Ninguém, na hora que vai tomar um café da manhã, um almoço, um jantar, fica pensando em como foi produzido aquele produto, em cada detalhe. Será que alguma coisa foi feita errada? Não. Parte-se do pressuposto de que está tudo certo. Então, no momento em que você começa a perder essa confiança, todo o setor é afetado. O impacto não é só para o consumidor, mas para todas as outras empresas do mesmo setor.

Não sei se isso chegou a ser parametrizado, mas na época do caso da Backer diz-se que as cervejas artesanais em Minas Gerais sofreram muito. E, hoje, ouvi que a questão do metanol pode estar indo para outros estados. Isso tem gerado, por exemplo, nas pessoas que são próximas a mim, um sentimento de que não vale a pena beber nada destilado enquanto a situação não estiver resolvida. Esse impacto na cadeia de produção também é muito grande.

Por que até hoje, no caso da Backer, em Belo Horizonte, as pessoas identificadas como responsáveis pela intoxicação por metanol, que vitimou 10 pessoas inclusive, ainda não receberam nenhuma punição, nem criminal e nem cível?

É uma questão de como funciona a justiça. É comum que um caso demore esse tempo. Não é justo, não deveria acontecer, não pode continuar sendo repetido porque isso gera essa sensação de impunidade, gera menos rigor por parte das pessoas que estão à frente de coisas tão importantes como o setor industrial alimentício.

Faz parte da organização da nossa sociedade, do nosso poder judiciário. Essa estrutura complexa, e que muitas vezes perpetua privilégios. Favorece quem tem mais poder, mais dinheiro. Nada que a gente possa dizer que [esse recursos que prolongam os julgamentos] são errados legalmente. A pessoa está utilizando as armas que estão à disposição dela.

O que não deveria acontecer é a organização judicial ser dessa forma. A gente deveria fazer reformas, pensar instrumentos, para coibir a possibilidade de ocorrências nesse sentido.

É sempre importante pontuar que as famílias foram destroçadas mesmo. Isso não é uma coisa que aconteceu há cinco anos e meio atrás e ficou lá. São consequências perenes. São pessoas que ficaram cegas, pessoas com dificuldade de mobilidade, dificuldade de fala, pessoas que tiveram que parar de trabalhar. A vida delas foi atravessada e não conseguiram, pelo menos até agora, uma indenização. É muito triste a gente saber dessa realidade e enxergar que nada de efetivamente concreto conseguiu começar a reparar isso.

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