No Brasil, os debates sobre saúde sexual e o consumo de álcool e outras drogas ainda são marcados por tabus, desinformação e moralismo. Os dados mostram a urgência de enfrentar esses temas, já que a educação sexual e o acesso a informações confiáveis podem reduzir infecções e práticas de risco entre jovens e adultos.
Pesquisas apontam que o número de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) tem crescido nos últimos anos entre os brasileiros. O Boletim Epidemiológico de HIV/Aids 2024, do Ministério da Saúde, mostra que os novos casos de HIV aumentaram 4,5% em 2023 em relação ao ano anterior. No caso da sífilis, especialistas alertam para uma tendência de crescimento contínuo, com notificações em alta desde a década passada. Além disso, um levantamento do Espro, uma ONG que trabalha com educação de jovens e adolescentes, revela que cerca de 70% dos jovens LGBTQIAPN+ no Brasil já ocultaram sua identidade de gênero ou orientação sexual por medo do preconceito.
No campo das substâncias, um levantamento do Datafolha aponta que metade da população brasileira consome bebidas alcoólicas e 1 em cada 5 admite exagerar. Enquanto um estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) estima que 9,3 milhões de brasileiros já usaram cocaína e que experimentar a droga levou parte do grupo a desenvolver dependência química.
É nesse cenário que atua o médico e influencer, Uno Vulpo, criador do projeto Senta, que desde a pandemia se dedica a traduzir informação científica em conversas francas sobre sobre sexo seguro, acolhimento e redução de danos no uso de substâncias. Em entrevista ao Pauta Pública, Vulpo reflete sobre os impactos do conservadorismo, explica por que a educação sexual é fundamental e mostra a importância de dialogar sem julgamentos.
“Redução de danos é você minimizar o impacto negativo do uso de uma substância ou de qualquer prática. Não é apologia: é apologia ao cuidado”, explica. Para o médico, falar sem moralismo é essencial: “Se eu digo para alguém ‘não use’, essa pessoa provavelmente vai usar de qualquer jeito. Mas se eu digo ‘não compartilhe canudo, lave as narinas, saiba a procedência’, eu dou ferramentas reais para que ela não morra”.
Leia os principais pontos e ouça o podcast completo abaixo.
EP 188 Sexo, drogas e desinformação
Como nasceu o projeto Senta?
Antes mesmo de eu ter uma profissão médica, gostava de ler sobre saúde mental e comportamento para sanar dúvidas que sempre tive, como o que aconteceria se eu fumasse, o que tinha que fazer para esconder e essas coisas. Em determinado momento, entre os grupos de amigos da escola, eu virei o cara para o qual as pessoas perguntavam sobre esses temas e sexualidade.
No meio desse caminho, entrei na medicina, me formei e, durante o meu percurso acadêmico, percebi que muita coisa que aprendi, e que estava um pouco codificada numa linguagem muito acadêmica, poderia ser traduzida para a população em geral. Com isso, basicamente, o meu trabalho foi começar a traduzir esses conhecimentos médicos.
Quando começou a pandemia, uma das primeiras coisas que eu pensei foi : como é que eu vou transar agora? Como é que as pessoas vão transar? O que vai acontecer? Então, eu comecei a raciocinar em como que isso poderia ser feito de uma forma não danosa. A terminologia de redução de danos ainda não estava na minha vida. Mas eu fiquei pensando como continuar fazendo isso de uma forma um pouco menos contaminante e fiz um manualzinho no meu Instagram.
O Senta, de uma forma geral, sempre foi um projeto que buscou trazer cuidado e trazer informação de uma forma um pouco diferente em que, às vezes, achando soluções inusitadas para problemas inusitados também. Mesma coisa em relação às questões das drogas. Na pandemia, as pessoas também começaram a beber muito e usar muitas substâncias. Então pensei que não adiantaria falar para os meus amigos e para as pessoas para não usar, para não misturar, enfim. Não ia adiantar muita coisa. Depois, nas primeiras festas pós-pandemia, todo mundo queria mais era detonar mesmo e eu pensei em como criar alertas de cautelas que se as pessoas optarem por usar “pelo menos não morre”. Então, o Senta surgiu a partir dessa demanda.
Qual é o conceito de redução de danos? Como explicar de forma simples?
Redução de danos é quando você, por exemplo, decide beber menos porque você sabe que vai trabalhar no dia seguinte. Então, você decide beber menos, beber mais água, comer alguma coisinha e ir embora mais cedo. São práticas de redução de danos, minimizando o impacto negativo do uso de uma substância ou de qualquer prática que seja ela.
Eu tento politizar que redução de danos dá para usar em qualquer contexto de vida, inclusive no sexo. Nesse sentido, é saber, por exemplo, que a porcentagem de pessoas que fazem sexo oral com camisinha é ínfima. Então, sabendo isso, como é possível se proteger com as doenças potencialmente transversíveis pelo sexo oral?
É preciso dar uma olhada antes de iniciar o ato, tentar ficar atento se tem alguma lesão na boca, se tem algum corrimento e se possível se testar.
É preciso entender que quanto mais a gente conversar, aumenta a possibilidade de minimizar os danos daquilo que já vai ser feito de todos os jeitos. Mais um exemplo, em relação às drogas, se a pessoa não quer parar de usar cocaína, é preciso orientar que pelo menos se pare de cheirar na nota, para evitar um problema de uma infecção. Assim como pensar em quantidades máximas.
É dizer que a cocaína existe e faz mal, mas se a pessoa optar por usar que pelo menos tente diminuir a quantidade de uso, lavar as narinas sempre que for usar, não compartilhar canudo, evitar usar objetos sujos para aspiração, saber a procedência de que você está cheirando. Não é apologia. Na verdade, estou fazendo uma apologia ao cuidado, dizendo por favor, tenha cuidado.
Isso, além de diminuir as incidências de overdose, incidência de problemas, incidência de várias complicações, isso também dá tempo pra pessoa ficar um pouco mais consciente sobre o uso. Então a redução de danos é uma belíssima prática pra também a gente conseguir a abstinência e tentar e conseguir tirar a pessoa também do uso de substâncias. Claro que tem casos e casos, tem casos que realmente a pessoa não pode não pode interagir com substâncias de forma alguma porque elas se colocam em perigo e são casos para internação, entre outros tratamentos. Mas a redução de danos já ajuda muito, a informação é uma ferramenta muito potente.
Em relação aos jovens, no campo da educação no Brasil, de forma geral, não se pode falar sobre sexo nas escolas. Sobre drogas é sempre no lugar de crime, pecado, enfim, mas agora não se pode mais falar sobre educação sexual e sobre sexualidade. Como você vê isso?
Se pensarmos em 10 ou 15 anos atrás, havia um embate geracional: professores baby boomers, com posturas conservadoras, e os adolescentes millennials, interessados em experimentar, falar sobre sexo e drogas, questionar normas. A educação seguia tradicional e conservadora, e esses gestores e professores ainda ocupam cargos de representação, mantendo essa diretriz.
Existem movimentos de esquerda que propõem diálogo e discussão sobre esses temas. Já grupos conservadores, em geral ligados à direita, defendem valores tradicionais. Mais recentemente, surgiu uma onda afirmando que escola não é lugar para aprender sobre sexo, que isso deve ser uma escolha individual e ponto. Essas pessoas continuam na gestão pública e hoje lidam com adolescentes em sintonia com esse discurso.
O problema é que essa geração mais velha, que ocupa a gestão, viveu pouco debate sobre o tema e carrega ansiedades e dificuldades relacionadas à sexualidade e ao uso de substâncias. O abuso de álcool e drogas, por exemplo, é transgeracional. Muitos não conseguem conversar sobre isso nem com médicos ou pessoas de confiança. Diferente dos adolescentes, que em algum momento ainda terão o primeiro contato e precisarão de informação adequada.
Assim, é possível que tenhamos um cenário mais sombrio nos próximos anos em relação à desinformação. Estamos perdendo espaço para debater sexo e drogas de forma franca, indo na direção contrária da educação. Discursos simplistas, como “a pornografia vicia” ou “os jovens aprendem sexo pela pornografia”, se fortalecem. O ponto é que, de fato, muitos aprendem sobre sexo por meio da pornografia ou sobre drogas através de filmes, porque não têm referenciais educacionais que ofereçam contraponto.
Um exemplo, quando uma criança vê o Homem-Aranha subindo pelas paredes, o professor de ciências explica que aquilo não é possível, pois os humanos não têm a anatomia das aranhas. Já na pornografia, não há ninguém que explique que determinados comportamentos não são reais ou comuns. Esse paralelo educativo não existe, e a falta de letramento sexual e de redução de danos perpetua dados consistentes ano após ano: aumento no uso de substâncias, de overdoses, de dependência química e de infecções sexualmente transmissíveis, como HIV e outras ISTs [infecções sexualmente transmissíveis].
No dia a dia, vemos adolescentes comentando sobre PrEP [profilaxia pré-exposição] no Twitter, muitas vezes sem sequer terem iniciado a vida sexual. Seria necessário ensinar que existem diferentes formas de prevenção, como a prevenção combinada, que envolve diversos métodos para reduzir riscos de infecção. Mas como ninguém orienta esses jovens, eles só buscam informação após experiências frustrantes, traumas ou problemas de saúde. Os que sobrevivem a essas falhas de informação acabam retomando a luta para falar mais sobre o tema.
Por isso, insisto nesse debate no projeto Senta. Tenho seguidores de esquerda e de direita, inclusive conservadores cristãos que já me procuraram com dúvidas sobre sexo ou drogas. Mas, ao me posicionar publicamente contra Bolsonaro, muitos se surpreenderam ao descobrir que sou de esquerda. O curioso é que, independentemente da posição política, todos concordam que a desinformação é um problema e que precisamos falar sobre esses assuntos.
O embate, portanto, está em setores da gestão pública que tentam impedir que crianças e jovens tenham contato com informação. Acreditam que, se não aprenderem sobre sexo ou drogas, nunca irão interagir com isso no futuro. Mas o resultado pode ser justamente o contrário: abuso sexual, overdose ou violências relacionadas à desinformação. A alternativa é fornecer informação clara e responsável. Alguns jovens podem até se interessar mais, mas a maioria apenas compreenderá os riscos e fará escolhas conscientes.
Vemos pessoas buscando informações de qualquer forma, recorrendo ao Instagram e ao TikTok para diagnósticos diversos.
Sim. Todo mundo já percebeu que não adianta esperar, o Estado e o governo não vão oferecer essas informações na educação básica. Os conteúdos que realmente interessam não chegam na escola. O que deveria ser informação filtrada, baseada em evidências, acaba sendo substituído por conteúdos nas redes. Isso gera um problema, pessoas se auto diagnosticando apenas com base em vídeos. É um problema sério, e estamos tentando remediar de forma equivocada.