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Crônica

O copo e o brasileiro — uma relação de amor e morte

Neste país, não se enfrenta a realidade — a gente a coloca para gelar

Crônica
15 de novembro de 2025
04:00

Não há, no Brasil, nenhum velório, chá de bebê, eleição, demissão ou golpe de estado que resista a um balde de cerveja. Se a nossa democracia é open bar, qualquer crise existencial só dura o tempo do desabafo na orelhinha de um garçom de gravata puída. A tristeza de uma vida que dói é diluída em um drink caubói.

Estamos em 2025 e as páginas dos jornais denunciam os perigos do metanol, que contaminou o maior lazer do brasileiro. O governo e o bom senso ordenam que é hora de dar férias ao fígado, embora essa recomendação venha esvaziada de convicção. Quem foi besta de imaginar que brincar de roleta russa com cachaça envenenada ia fazer a gente parar de beber?

Mas por que bebemos tanto? Essa pergunta deveria estampar outdoors e motivar comícios, mas ecoa sem resposta a cada hora, período em que morrem 12 brasileiros vítimas diretas do uso de álcool, de acordo com levantamento da Fiocruz divulgado no ano passado. São baixas relacionadas a doenças e à violência, sobretudo as domésticas e as de trânsito. Homicídios e tragédias de automóvel praticamente decorrem do estado ébrio. Enquanto isso, o SUS agoniza, inchado de casos decorrentes do abuso do mé, sem que nenhum ministro nos acuda.

Nenhuma outra droga classificada como mais perigosa tem um predicado tão nefasto. Não se morre por causa do consumo de crack: o usuário abraça Deus mais cedo por conta da violência que persegue o seu cotidiano. O alcoolismo conserva, entretanto, um charme sistematicamente sustentado em cada comercial de cerveja que Ivete Sangalo protagoniza como se estivesse defendendo a inocência do consumo da banana.

O álcool é íntimo do infortúnio mais incapacitante da atualidade: a depressão. É como se cada gole fosse parte de um espúrio esquema de tratamento psiquiátrico. Medicamos nosso padecer incurável – porque fruto de um sistema sem solução, que é o capitalismo — à revelia de orientação médica. E não seria alucinação deduzir que pelo menos metade dos deprimidos encontraria a cura imediata com mais dígitos na sua conta. 

O brasileiro poderia ver mais cores no seu dia se portasse grana para cuidar da saúde, do lazer e do tempo para gastar com quem ama. Só que Amarildo, aquele brasileiro médio, abre os olhos todo o dia para o filho bebê que grita de fome. Ele tem trabalho, mas o salário não viabiliza leite de farmácia suficientemente para dentro da mamadeira, e o homem não consegue levantar da cama como resposta psíquica para a sua realidade.

Em cada esquina brasileira há um bar. É até romântico o imaginário bebum. Fofamente, o sambista Batatinha cantava que era um bebê diferente: quando chora, quer aguardente. Eu, pré-adolescente, sonhava em fazer 18 anos para provar do álcool. Nunca recebi um desencorajamento de fibra, uma palavra de educação sequer que colocasse esse estupefaciente destruidor no rol das substâncias que estariam presentes em quase todos os meus momentos de arrependimento. Praticamente, só fiz merda quando estive com um copo de bebida alcoólica na mão.

O governo, diante da crise do metanol, agiu rápido, mas não como deveria. Pelo tamanho do rojão, deveria ter dedicado à bebida a cartilha de restrições que impôs aos vaporizadores e, anteriormente, ao tabaco. Outra nação menos refém da indústria etílica protagonizaria plantões na TV para anunciar a suspensão da venda de bebida no país até que a origem do envenenamento fosse revelada. 

Lembro quando a pobre tigela de açaí virou vilã porque meia dúzia de consumidores contraiu a doença de Chagas: não consumam a guardiã do Pará, disseram as autoridades. Mas quem dá liberdade ao consumo de álcool parece não querer entrar nessa batalha de titãs. Já imaginou tirar de milhões de trabalhadores fudidos o remedinho acessível que impede a sociedade brasileira de um colapso?

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