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Entrevista

Ameaças a aborto legal revelam política “patriarcal” e “intimidatória”, diz antropóloga

Débora Diniz explica como o PDL 3/25 ameaça direitos garantidos e aprofunda a violência contra meninas e adolescentes

Entrevista
7 de dezembro de 2025
17:00
Arquivo pessoal

O Brasil voltou a testemunhar cenas brutais de violência contra as mulheres. Tentativas de feminicídio, casos de agressões e mortes cruéis têm sido registradas em diversas regiões do país, na última semana. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025, mais de 2,7 mil mulheres foram vítimas de agressões graves e pelo menos 1.075 foram assassinadas por feminicídio.

Nesse contexto de misoginia estrutural e persistente, um novo ataque aos direitos das mulheres avança no Congresso. A Câmara dos Deputados aprovou, em 05 de novembro, o Projeto de Decreto Legislativo 3/25, que, na prática, suspende os efeitos da Resolução 258/2024 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que trata do atendimento humanizado e acesso ao aborto legal às meninas e adolescentes vítimas de violência sexual.

Para refletir sobre este retrocesso no direito ao aborto legal e seguro, o Pauta Pública entrevistou a antropóloga, professora e escritora Débora Diniz, referência central no debate sobre direitos reprodutivos no Brasil. Diniz explica o que está em jogo quando parlamentares usam o aborto como “combustível político” e não como um problema social que resulta em uma média de 57 meninas menores de 14 anos, dando à luz por dia.

“O debate sobre o aborto entra nas chamadas questões sensíveis ou identitárias, uma forma de desqualificar a urgência dessas questões.” alerta.

Ela também aponta que um possível caminho para o avanço neste debate é ampliar a diversidade de vozes no poder. “Nós precisamos de outras pessoas fazendo política no Brasil, mulheres e juventudes diversas. Não podemos aceitar uma introjeção de uma obediência antecipada, que é aquilo que nós chamamos de: ‘se vocês falarem de aborto, vai vir uma resposta ainda pior’”, afirma.

Leia os principais pontos da conversa e ouça o podcast completo abaixo.

EP 197 O retrocesso no direito ao aborto legal e seguro

Podcast debate PDL que ataca direitos das mulheres e gera revitimização

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Como está o atual andamento do Projeto de Decreto Legislativo 3/25 e por que é um retrocesso e um perigo para as crianças e adolescentes?

[O projeto] está em tramitação no Congresso Nacional desde o ano passado. As tentativas desse conjunto de parlamentares que tentam impor maiores restrições ao aborto, em particular ao aborto legal, vêm sofrendo grande resistência social, com a campanha Criança Não é Mãe, com uma forte adesão de pessoas muito diferentes na vida política brasileira. O que é muito importante, porque essa é uma reação muito forte da sociedade brasileira.

Mas está lá agora, eu diria, dormente, à espera de uma oportunidade da sua movimentação mais uma vez. Eu o descreveria como uma permanente ameaça política, não necessariamente apenas às meninas, aos direitos das mulheres, ao futuro dessas meninas, mas como uma ameaça política. Nas negociações mais amplas da política partidária brasileira. A depender da situação, é um acelerador de problemas nas negociações políticas.

Esse é um processo legislativo que está fazendo uma confusão sobre uma resolução. [É] uma norma do Conanda, o Conselho de Direitos das Crianças e Adolescentes. No executivo, existem órgãos relativos a políticas públicas, das quais desenham o que nós chamamos de normas infralegais. São normas de resoluções, desenhos de políticas, etc. O Conanda  é um desses órgãos. Ele não cria lei e nem uma nova norma, e, sim, organiza aquilo que o Congresso Nacional já definiu. Aquilo que está no marco constitucional, que está no Código Penal, no Código Civil.

O que o Conanda fez foi dizer: olha, há muitas barreiras e incompreensões sobre como cuidar de meninas de 9 a 14 anos que sofreram uma violência sexual. Nós estamos falando de situações dramáticas. O Brasil tem uma média de 57 meninas por dia que estão dando à luz. Ou seja, é uma barreira de acesso àquilo que está determinado na nossa norma legal.

Como a possibilidade de acesso a um aborto legal [de gravidez fruto de estupro] é presumido pela lei, se essas meninas não estão conseguindo ter acesso, é porque tem alguma coisa de muito errado. A forma de operar desses parlamentares que disseram: vamos fazer um PDL [Projeto de Decreto Legislativo] para restringir ainda mais. Para responder essa resolução [sobre] os direitos das meninas de acessarem o aborto. Então, vai se colocar barreiras que não estão no marco legal.

O debate político sobre o aborto ainda vem pautado pelo pecado e pelo tabu. Parece que falta coragem ainda hoje de pautar o tema com a urgência necessária. Por que você acha que isso ainda acontece? Os políticos estão preparados para essa conversa?

Primeiro, é importante dizer por que isso [ o debate sobre o aborto] se mantém como uma moeda de troca, como uma ameaça no debate político brasileiro. As razões talvez sejam múltiplas, mas uma delas ainda é muito forte, sobre a forma de fazer política no Brasil.

Nós ainda temos uma política fortemente patriarcal, liderada por homens, uma forte presença religiosa, como uma característica intimidatória na política, não apenas como uma expressão de convicções filosóficas e religiosas.

Essa natureza muito patriarcal e muito intimidatória da forma de fazer política brasileira, dificulta uma diversificação de vozes, que é isso que nós estamos chamando de coragem, de uma diversificação de circulação, de representação, e de um agendamento da política brasileira.

Por isso, é muito importante saber sobre quem está no poder. Nós olhamos as grandes oligarquias no poder [e vemos] uma forte presença masculina. E de uma forma de masculinidade que vai traçar as fronteiras daquilo que é considerado urgente à política brasileira, à saúde das meninas e ao direito das mulheres, que acabam ficando à margem dessa forma de fazer política.

Há uma característica nas formas de se fazer aliança e nas formas de se fazer o confronto que ela é intimidatória. As questões com esse forte potencial de uma combustão moral, pelo contágio, pelas redes, elas se tornam as chamadas questões sensíveis ou identitárias. Isso é uma forma de desqualificar a urgência dessas questões. O mais difícil para nós é que isso atravessa o espectro político.

Há um atravessamento, dada a permanência de homens no poder, na política, uma forma de fazer política. Inclusive, naquilo que se esperaria com uma maior coerência, que seria nos partidos de esquerda. Mas essa lógica patriarcal da política, faz com que eles também estejam confusos sobre como falar, sobre como tratar essa matéria, que não seja na intimidação política.

Como a gente combate isso?

Precisamos de outras pessoas fazendo política no Brasil. Precisamos de mulheres e juventudes diversas. A história da política argentina é um exemplo. Ela vai transformar a lei do aborto em uma mudança de quem está compondo o Congresso Nacional/Parlamento argentino. Então é muito importante uma diversidade na participação política.

Por outro lado, nós não podemos nunca abdicar de acreditar que a política, e a forma de fazer política, não pode ser pela intimidação. Ela não pode ser por uso dessas matérias, como matérias de fragmentação, de polarização. Não podemos, como um campo progressista, ou como um campo que acredita que os direitos das meninas tenham que estar na pauta, aceitar uma introjeção de uma obediência antecipada, que é aquilo que nós chamamos de: ‘se vocês falarem de aborto, vai vir uma resposta ainda pior para vocês’.

Nós precisamos desacreditar essas previsões catastróficas da política. Todas as vezes que vamos anunciar questões como racismo, como direito das mulheres, como aborto, não é só aborto, as previsões catastróficas de que isso vai levar a uma perda da possibilidade de eleição, ou um alinhamento da extrema direita, elas são profecias autorealizadas.

Nós não podemos nem tentar essas formas de desenvolver criatividade sobre como falar [sobre] essa matéria. Então, nós temos uma criatividade política que está associada ao que você chamou de coragem, mas uma criatividade política muito limitada, muito pobre, pela introjeção da punição como algo que regula a forma de fazer política.

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