Aos 10 minutos do primeiro tempo, um grito inflamado rompe das arquibancadas do estádio La Cisterna, na periferia de Santiago.
“Gaza resiste! Palestina existe!”
A incansável repetição me fez perder as contas de quantas vezes aquelas palavras foram pronunciadas, a plenos pulmões, em menos de 30 segundos.
Abandonei a contagem ao fixar o olhar nas carótidas exclamadas nos pescoços dos torcedores; no tremular agitado dos uniformes nas cores branco, vermelho e verde e na quantidade de crianças engajadas naquele canto, até ele finalmente cessar – sem jamais restabelecer por completo um novo silêncio.
Visitei o Chile em fevereiro de 2024, ao lado da minha companheira. O roteiro de viagem cumpriu à risca quase todos os destinos óbvios recomendados pelas agências de turismo, e endossado por prestativos/vaidosos influenciadores registrando suas experiências no YouTube: Palacio de La Moneda, La Chascona (casa do poeta Pablo Neruda), bairro da Providencia, vinícola Undurraga, Valle Nevado, Farellones, Viña Del Mar, Valparaíso etc etc etc.
Aceitei preencher todas as etapas obrigatórias, desde que me fosse permitido um único caminho completamente fora de rota. Queria ver de perto um jogo do Club Desportivo Palestino. Uma centenária agremiação de futebol que está longe de gozar do mesmo prestígio dos “los tres grandes del fútbol chileno” – a saber: Colo-Colo, Universidad de Chile e Universidad Católica.
Fui guiado mais pelo interesse social do que puramente esportivo. Mal tinha completado quatro meses da ofensiva de Israel sobre Gaza e a contagem de corpos já escalava em progressão geométrica. O saldo, até ali, era de 27 mil pessoas mortas (a maioria mulheres e crianças) e mais de 67 mil feridas em uma série de ataques aéreos.
Apesar dos números já provarem a crueldade naquele primeiro inventário, era apenas a largada de um massacre que transformaria Gaza em um cemitério a céu aberto, com corpos empilhados aos magotes até o cessar-fogo definitivo. Ao fim de dois anos de bombardeios incessantes, foram 70 mil mortos – 67.984 mil do lado palestino e 2.084 pelo lado de Israel.
Fora do Oriente Médio, o Chile é o país com a maior comunidade de palestinos no mundo. A estimativa é de uma comunidade de 500 mil pessoas. A adaptação não foi tranquila. Foi conflituosa, com reiterados episódios de violência e xenofobia explícita. O clube é resultado de um processo de afirmação diante da corrente migratória sul-americana, que ficou conhecida como diáspora palestina.
Apostei na desconfiança para explicar o porquê do Palestino não vender ingressos para estrangeiros em seu site oficial. Lá, até tinha a opção de colocar a numeração do passaporte no campo destinado à identidade chilena, liberando assim os tíquetes para a venda. Mas, por alguma trava no sistema, a compra nunca era efetivada.
O jeito foi chegar mais cedo ao La Cisterna, um acanhado estádio para 12 mil pessoas, e tentar a aquisição presencial. Cismados, os funcionários do clube fizeram uma série de perguntas (“vocês são árabes?”, “qual o interesse de vocês nesse jogo?”) e conferiram demoradamente nossos documentos até repassarem os bilhetes.
Uma vez dentro, os olhos foram dragados para uma realidade própria, esbulhando-se diante da enorme quantidade de kufyias nas cores preto e branco adornando crianças, jovens e adultos.
Até o mascote do clube é emblemático. É a representação de um homem com uma túnica branca e um turbante branco na cabeça, nas melhores vestes características muçulmanas. Bandeiras da Palestina são distribuídas de graça para os torcedores e as lanchonetes, pequenas instalações improvisadas, servem comida árabe.
O ambiente nas arquibancadas é notadamente familiar. Antes da bola rolar, as pessoas se cumprimentam, perguntam das famílias umas das outras e, eventualmente, cornetam a escalação de algum jogador titular.
A Palestina só veio a ter uma seleção de futebol reconhecida pela Fifa em 1998. Quase 70 anos depois de realizada a primeira Copa do Mundo, em 1930. Durante muito tempo, foi o Club Desportivo Palestino quem levou as cores desta nação não reconhecida pela ONU aos campos de futebol pelo mundo. É por isso que o time angaria tanta simpatia de árabes em várias partes do globo.
Em campo, o time não era lá grande coisa. O resultado foi 2 a 0 para os adversários. Houve, no entanto, um gol legítimo consignado aos 10 minutos do primeiro tempo, cuja validação ainda aguarda uma decisão irrevogável.
“Gaza resiste! Palestina existe!”
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