Há pelo menos quatro anos, Jussara*, trabalhadora autônoma, luta para que o plano de saúde custeie o tratamento do seu filho Lucas*, de 10 anos, diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Mesmo após sucessivas vitórias na Justiça contra a Unimed Federação do Estado do Rio de Janeiro (Ferj), a família ainda não recebeu os mais de R$ 80 mil em reembolsos atrasados, calculados e determinados em decisão judicial de janeiro de 2025, porque as contas bancárias da operadora estavam sem saldo.
A saga da família começou em 2021, quando Lucas recebeu diagnóstico de TEA acompanhado de crises intensas de raiva “deflagradas por inflexibilidade emocional, ansiedade e gatilhos comuns como ambientes cheios ou barulho”, conforme laudo de neurologia infantil. A médica prescreveu então sessões semanais com psicóloga, fonoaudióloga e terapeuta ocupacional, com tratamento “permanente, prolongado”, com “riscos de prejuízo da saúde, da independência nas atividades diárias e mau desempenho acadêmico e social”, caso não realizado.
Sem conseguir encontrar profissionais que atendessem na rede credenciada, Jussara entrou em contato com a Unimed para relatar a situação. Segundo ela, a própria operadora orientou que buscasse atendimento fora da rede e enviasse e-mails, prints de conversas e registros das tentativas feitas, para que fosse realizado o reembolso das sessões. Assim, encaminhou à empresa os diálogos com as clínicas e psicólogos que não atendiam pelo plano ou não aceitavam pacientes abaixo de 10 anos, comprovando a indisponibilidade de atendimento.
Acreditando que teria direito ao reembolso, Jussara iniciou o tratamento do filho com uma psicóloga indicada no bairro onde mora, e passou a enviar mensalmente as notas fiscais para ressarcimento. Durante cerca de três meses, arcou com todos os custos do próprio bolso, aguardando o prazo que lhe informaram, até que ela recebeu um e-mail afirmando que “o plano não cobre esse tipo de atendimento” e que o reembolso tinha sido negado.
Ela entrou com uma ação na Justiça em 2022. Em maio daquele ano, a 12ª Vara Cível da Capital concedeu liminar obrigando a Unimed Ferj a autorizar o tratamento e pagar pela falta de profissionais na rede. Outra sentença do mesmo tribunal, de março de 2023, confirmou a decisão, e a segunda instância manteve a ordem.
Por causa dos recursos da Unimed e das exigências judiciais, apenas em 19 de novembro de 2025, a Justiça determinou penhora online de R$ 84 mil, valor acumulado de dois anos de reembolsos, em mais de 20 contas da operadora, mas todas estavam sem saldo — segundo resposta das instituições financeiras à ordem judicial.
Com negativas de pagamento e e-mails anunciando valores que nunca chegam, Jussara vive uma contradição comum entre famílias de crianças autistas: o direito aos tratamentos é garantido por lei, mas não se concretiza. “Eu já ganhei o meu direito. Esse dinheiro que vai entrar não é a mais, é o que eu já investi no meu filho”, disse.
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) tornou obrigatória, desde 2022, a cobertura ilimitada de psicologia, fonoaudiologia, terapia ocupacional e demais métodos indicados pelo médico a pessoas autistas. Já o Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou jurisprudência em maio de 2025 afirmando que planos não podem negar terapias multidisciplinares ou limitar sessões, e devem reembolsar integralmente quando não houver profissionais disponíveis na rede.
Nada disso parece surtir efeito prático no caso da Unimed Ferj, que acumula reclamações por negativas de cobertura e uma crise financeira que resultou na intervenção da Unimed Brasil em novembro. Após assumir a carteira da Unimed-Rio em 2024, a federação passou a carregar dívidas de pelo menos R$ 2 bilhões com hospitais e prestadores, além de um passivo regulatório e tributário que pode chegar a R$ 4,7 bilhões, como mostra reportagem do Valor Econômico. Sem reservas técnicas e incapaz de honrar repasses a outras cooperativas, a situação levou à intervenção e ao acordo de compartilhamento de risco para manter a assistência.

Esse cenário se reflete no acúmulo de reclamações contra operadoras do sistema Unimed. A Unimed Ferj lidera com folga o Índice Geral de Reclamações (IGR), com 545,79 reclamações por 100 mil beneficiários, o pior resultado do grupo. Entre 53 operadoras analisadas, 19 pertencem ao sistema Unimed. A Unimed Ferj e a ANS não responderam os questionamentos da reportagem até a publicação. O espaço permanece aberto.
Direito negado
Nos últimos anos, o aumento nos diagnósticos de Transtorno do Espectro Autista (TEA) tem reforçado a dimensão do desafio de atendimento no Brasil. Dados oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), extraídos do Censo Demográfico de 2022 e divulgados em 2025, mostraram que cerca de 2,4 milhões de brasileiros já receberam diagnóstico de TEA por um profissional de saúde, com maior prevalência entre crianças e adolescentes. Nessa faixa etária, os percentuais alcançam até 2,6% na faixa de 5 a 9 anos.
Esses números se refletem em uma procura crescente das famílias por terapias essenciais e, paralelamente, em um aumento expressivo das reclamações contra os planos de saúde. Entre janeiro e maio de 2024, os cancelamentos unilaterais de contratos de pessoas autistas aumentaram 212% em relação ao mesmo período do ano anterior, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). No mesmo intervalo, Amil e Unimed lideraram as denúncias, respondendo por 26% e 21% das queixas registradas, respectivamente, conforme reportou o Intercept.
Do lado das operadoras, a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) argumenta que o tratamento de pessoas com transtornos do espectro autista passou a representar um dos principais custos do setor, superando os gastos com oncologia. A entidade atribui esse avanço às mudanças regulatórias da ANS, à ampliação do acesso às terapias e à falta de diretrizes clínicas padronizadas, o que, segundo o setor, abriria espaço para sobreuso e desperdícios.
A advogada especializada em casos de crianças autistas Millena Vinagreiro Braune explica que o caso de Jussara e Lucas segue o padrão de planos que prolongam processos usando manobras processuais. “Eles [a Unimed] ficaram indicando clínicas sem vaga, juntaram até um áudio dizendo que ela [Jussara] estaria se negando a ser atendida. Não era verdade. Era má-fé para atrasar o cumprimento”, afirma Braune. “A consequência direta é que as famílias paralisam o tratamento por razões financeiras. A criança fica completamente desassistida”.
Jussara conta que já precisou limitar as sessões de terapia do filho a uma por semana, o que gerou piora emocional em Lucas. “Ele começou a ficar deprimido. A psicóloga dizia que uma vez por semana não ia ser bom, a neuro também. Mas eu não tinha como pagar”, contou a mãe à Agência Pública. A tentativa de colocá-lo em uma escola pública para aliviar as despesas também falhou: “Ele piorou muito. Tive que tirar”.

A pressão contínua sobre o orçamento doméstico e a incerteza prolongada sobre os reembolsos também cobraram um preço elevado da saúde mental da mãe solo. Ela conta que precisou abandonar a casa onde morava com o filho e voltar para a casa da mãe, ao mesmo tempo em que sua empresa, que sobrevivera até mesmo à pandemia, começou a perder clientes por causa das constantes interrupções para acompanhar o tratamento de Lucas.
“Acabou com a minha saúde, as pessoas não entendem. 40 anos [de idade], e eu virei um peso de novo financeiro para os meus pais. Tive que abrir mão de ajudá-los, eles que começaram a me ajudar, sabe? Perdi cliente, o que impacta em outras mulheres que trabalham comigo”, desabafa. “Você fica com essa sensação de derrota. Se eu soubesse, eu não tinha entrado no processo, tinha dado outro jeito. Eu só pedi o mínimo”.
Desproteção em série
A falta de resposta da operadora se soma a um sistema público incapaz de absorver a demanda. O vice-presidente do Autistas Brasil, Arthur Ataíde, afirma que casos como o de Lucas são “muito comuns em todo o território nacional”. Famílias enfrentam negativas, redes com apenas um tipo de abordagem terapêutica e atendimentos conduzidos até por profissionais não especializados.
“Para além do prejuízo da interrupção de terapia, a gente precisa pensar nesse momento do grande prejuízo que essa criança pode estar inserida se ela entrar em vulnerabilidade financeira de fato. Se ela não puder mais frequentar a escola que ela frequenta, se ela não puder mais ter a rotina que ela tem. Quantas coisas que ela tinha acesso antes que hoje ela não tem mais acesso?”, questiona Ataíde.
A combinação de omissão estatal e práticas das operadoras intensifica os danos. O presidente da entidade, Guilherme de Almeida, alerta que nesse caso, não apenas o filho é penalizado, mas a mãe também. “É uma situação sem solução. Ela judicializou, ganhou, mas não recebe. Isso leva ao desespero. O SUS não oferece alternativas. Uma consulta de terapia ocupacional pode demorar dois meses e dura meia hora”, afirma Almeida.
“Além de uma criança desassistida, que tem toda a prioridade de proteção constitucional muito mais do que uma pessoa adulta. A gente vê uma segunda pessoa agora também numa situação de extrema vulnerabilidade. E daí se acontece alguma coisa com essa mãe, ela tem os pais dela que já são idosos. Então é um ciclo de terror que só se aprofunda em razão da inércia do Estado”, complementa o presidente da Autistas Brasil, que afirma que à falta de atuação da ANS, por ser um órgão estatal encarregado de fiscalizar e coibir abusos das operadoras, “contribuí para problemas ao não cumprir plenamente seu papel”.
“Para as clínicas privadas, o futuro e o tratamento de crianças autistas é nada mais do que uma mercadoria: quanto maior a carga terapêutica, melhor. Para os planos de saúde, quanto menos procedimentos eles cobrirem, melhor. E no final das contas, essa briga é só para ver quem vai acumular mais dinheiro no final do mês. Mas o cuidado em si da criança, o direito dela à uma saúde digna, emancipatória, que atende às suas necessidades, é sempre deixado de lado”, complementa o vice-presidente do Autistas Brasil.
Em nota, a Unimed do Brasil afirmou que não assume a responsabilidade pelo reembolso, alegando que passou a prestar assistência aos beneficiários da Unimed Ferj residentes no Rio de Janeiro e em Duque de Caxias apenas em 20 de novembro de 2025, por determinação da ANS, nos termos da Resolução Normativa nº 517/2022.
“Conforme o acordo firmado, a atuação da Unimed do Brasil está restrita à assistência aos beneficiários a partir dessa data. Situações, demandas ou obrigações anteriores a esta data, não estão contempladas no acordo e permanecem sob responsabilidade da Unimed Ferj”, diz a nota.

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