O corpo do indígena conhecido como “índio do buraco”, encontrado na semana passada em seu tapiri numa área de mata em Rondônia, chegou a Brasília neste domingo (28). Transportado de Vilhena (RO) por avião, ele passará por exames da perícia da Polícia Federal no INC (Instituto Nacional de Criminalística), no Setor Policial Sul da capital federal. A morte foi revelada pela Agência Pública na manhã do sábado (27), e confirmada somente horas depois pela Funai numa nota divulgada na tarde do mesmo dia.
Indigenistas concordam com os exames, mas pedem que o corpo seja devolvido o mais rápido possível e sepultado no mesmo local em que ele vivia isolado desde, pelo menos, 1996. Esse desfecho é apoiado por setores da Funai e pelo Ministério Público Federal, que esperam conseguir apoio do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) a fim de preservar os 8 mil hectares que estão interditados por portaria desde os anos 1990 para a garantia do modo de vida do “índio do buraco”.
Também está sendo examinada uma série de materiais encontrados ao lado do corpo, como cabaças, flechas, espigas de milho e colheres de pau. Foi retirada uma amostra da vegetação do entorno e água do córrego usado pelo indígena para se checar a presença de alguma contaminação por agrotóxico ou outra substância que possa ter contribuído para uma doença ou morte. Até aqui, Polícia Federal e Funai trabalham com a hipótese de morte natural, pois não foram achados sinais de violência no corpo nem vestígios de que outras pessoas invadiram o tapiri.
Será analisada ainda uma imagem captada do indígena cerca de um mês antes de sua morte. A Funai havia instalado uma câmera de vigilância na vegetação perto do tapiri já com a intenção de prevenir eventual violência contra o indígena. Segundo indigenistas, a imagem mostra o “índio do buraco” caminhando com apoio de um cajado, o que pode indicar que ele estava com alguma debilidade física.
A equipe de peritos criminais federais da PF, incluindo um especializado em medicina, tentará determinar a causa do óbito e definir o estado geral de saúde do indígena quando de sua morte. Ela teria ocorrido há mais de um mês e foi constatada na última quarta-feira (24) por servidores da Funai (Fundação Nacional do Índio) que monitoravam o indígena há quase três décadas e estranharam seu sumiço de alguns setores da mata que ele costumava frequentar.
Na semana passada, a PF e a Funai foram acionadas pelo servidor da Funai que primeiro chegou ao local, o indigenista Altair Algayer – que, ao lado do indigenista Marcelo dos Santos, outros indígenas e servidores da Funai, também fez os trabalhos que confirmaram a existência do indígena nos anos 1990. Em meados de 1996, Algayer e Santos investigaram a informação repassada pelo cozinheiro de uma serraria na região sobre um misterioso índio cuja presença na mata estava causando temor entre madeireiros. Parte das tentativas de contato foi filmada pelo documentarista Vincent Carelli. Desde então, o “índio do buraco”, sobre o qual nunca se soube nome, língua e grupo étnico – embora a Funai tenha emitido a nota neste sábado (27) com o título “Índio Tanaru”, na verdade, um nome inventado por não indígenas –, se recusou várias vezes a manter contato com não indígenas e mesmo outros indígenas da região.
Equipes da PF de Brasília e a Funai estiveram no tapiri onde o corpo foi encontrado e realizaram uma série de exames, a chamada “perícia do local”, incluindo o escaneamento do último dos 53 buracos escavados pelo indígena, para compor imagens 3D. Deslocada de Brasília, a equipe inclui quatro peritos que também atuaram na investigação sobre o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips no Vale do Javari, no Amazonas, em 5 de junho.
Os objetos reunidos pelos peritos poderão ajudar a iluminar os últimos dias da vida do “índio do buraco”. A imagem de vídeo indica que ele aparentemente estava debilitado nas semanas ou dias anteriores à sua morte. Sua dieta provavelmente estava reduzida a mamão e milho (acharam seis espigas ao lado do corpo).
Uma queixada foi encontrada intacta numa das armadilhas – ele cavava buracos, instalava uma lança no fundo e os cobria com folhagem –, o que indica que a partir de algum momento ele não teve mais forças para retirá-la e prepará-la como alimento. As várias flechas que ele fabricou ao longo do tempo – eram pelo menos quatro tipos de flechas, segundo indigenistas, uma para caçar arara, outra para caçar paca, e assim por diante – estavam enfeixadas ao lado do corpo, como se indicasse que, enfim, ele não precisaria mais usá-las, de acordo com um servidor que teve acesso ao local.
Indígena manteve sua decisão até o final de não procurar contatos
Apesar desses sinais sobre a saúde, o indígena manteve sua decisão até o final de não procurar contatos com não indígenas ou mesmo indígenas. Indigenistas lembram que outros grupos de isolados na região, como os Kanoê e os Akuntsu, sofreram perseguições e massacres ao longo de décadas, ações que muito provavelmente também devem ter exterminado o grupo do “índio do buraco”, tornando-o resistente e desconfiado sobre qualquer aproximação de estranhos. Ele se recusava a tocar alimentos deixados como presente pelos indigenistas na mata. Isso se junta à notícia de que indígenas foram envenenados na região com carne contaminada deixada por invasores.
Para os indigenistas especializados em povos indígenas isolados Marcelo dos Santos, que trabalhou nos anos 1990 na localização do “índio do buraco”, Antenor Vaz e Sydney Possuelo, o corpo deve ser restituído o mais rápido possível e enterrado no mesmo local em que o indígena morreu, em Rondônia.
“O primeiro passo é manter a terra livre e protegida. Embora eu duvide que esse governo, que é um governo anti-indígena, vai se esforçar para isso de alguma forma. É boa a ideia de fazer um marco em homenagem a esse povo, um centro de estudo que fosse aberto ao público em geral também”, disse Possuelo, que nos anos 1980 e 1990 estabeleceu frentes de proteção etnoambiental em pontos diversos da Amazônia a fim de monitorar e preservar indígenas isolados e seus territórios.
Santos e Vaz disseram que associações indígenas de Rondônia já falam na necessidade de organizar uma cerimônia fúnebre para o enterro do indígena na mesma mata em que viveu por décadas. “Para nós é fundamental que o corpo seja devolvido. E que se faça um memorial, um centro de treinamento e estudos, que se preserve o território de alguma forma. Que se façam os exames, isso é necessário, mas que o devolvam para sua casa”, disse Santos.