“Do ano de 1500 para cá, o Estado brasileiro se consolidou por ser o primeiro a violar direitos e corpos das mulheres indígenas”, diz Pagu Rodrigues, que assumiu a recém-criada Coordenação Geral de Prevenção a Violência Contra a Mulher do Ministério das Mulheres. Indígena Fulni-ô, socióloga e ativista, paulistana com raízes no interior pernambucano, ela quer priorizar particularidades territoriais e das populações originárias na elaboração de diretrizes e protocolos das políticas de proteção.
Mas mensurar a proporção da violência de gênero entre os 305 povos indígenas brasileiros (segundo IBGE) é um desafio. É preciso, segundo Rodrigues, criar ações que facilitem o registro e o mapeamento dos casos – incluindo alternativas que vençam a barreira linguística, porque há pelo menos 274 línguas faladas nos territórios indígenas.
“Até hoje, nenhuma lei de proteção às mulheres dá conta das especificidades da mulher indígena. Não houve um momento para discutir as maiores leis de combate à violência de gênero [a lei do feminicídio e a lei Maria da Penha] a partir das especificidades das mulheres indígenas, considerando medidas de proteção que funcionem em territórios mais afastados das áreas urbanas”, disse em entrevista à Agência Pública.
Criada na periferia de São Paulo, Pagu Rodrigues voltou à cidade de Águas Belas, no Agreste pernambucano, durante parte da vida adulta. É lá onde a maior parte da sua família, do povo Fulni-ô, está. Essa vivência de territorialidade é utilizada pela socióloga para expor outra dificuldade de efetivação das políticas de enfrentamento à violência de gênero, que busca reduzir. “A gente tem que aproximar serviços públicos dos territórios indígenas se a gente quiser mesmo enfrentar a violência contra essas mulheres”. Confira os principais trechos da entrevista.
O governo atual fala muito sobre reconstrução e reestruturação de políticas públicas. Pensando na sua gestão, por onde essa reestruturação começa?
A minha coordenação é nova [dentro da secretaria nacional de enfrentamento à violência contra a mulher], então estamos partindo de um processo de reconfiguração de toda essa política, o que é parte desse processo geral de reestruturação pós-Bolsonaro. Estamos saindo agora de um governo que tinha como política o incentivo à misoginia, ao machismo, que não punia esse tipo de crime. Eu sempre costumo dizer que o feminicídio é o projeto de Estado de genocídio em relação à mulher. Digo isso, especialmente, considerando uma gestão anterior que não só deixou de combater mas incentivou a violência. A gente tem genocídio da população indígena, da população negra. O genocídio das mulheres, nessa mesma lógica, aparece realmente na forma de uma a política do feminicídio.
Outro ponto que merece reconstrução de maneira geral por ter sido um enorme buraco do governo anterior é a autonomia econômica, renda, trabalho. A gente também sabe que após um momento de crise pandêmica o governo Bolsonaro não deu conta de discutir e fazer permanência de políticas públicas de distribuição de renda e mais uma vez as mulheres são as mais afetadas, seja pelo desemprego, seja pela precarização e desigualdade salarial.
Além de reconstrução, dá para falar de avanços em termos de políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres? Até pelo fato da coordenação que você assumiu ter sido recém-criada?
Pensando de maneira histórica, durante muito tempo entendeu-se a prevenção a violência contra as mulheres, não só no Brasil mas na América Latina inteira, somente com uma política de formação – campanhas educativas, discussão nos equipamentos da educação, campanhas na imprensa. Isso é importante também, mas na nossa compreensão a prevenção à violência é muito mais ampla. Ela inclui concretamente um diálogo permanente com os serviços que são de enfrentamento à violência contra as mulheres em toda a rede. E é isso que nossa coordenação fará na prática: a construção política com fluxos que são mais que campanhas, capacitação e gestão dos equipamentos [que também são feitas]. Trabalhamos, eu e uma equipe formada por profissionais de várias áreas, na regulamentação das leis, dos protocolos e diretrizes da Política Nacional, nos pontos a serem observados, na abordagem de cada uma dessas políticas de acordo com a situação e o recorte.
Pensando em demandas, a gente precisa investir nas legislações específicas para tratar assédio, violência sexual, nos espaços públicos, nas universidades, na lógica da máquina pública. Essa será uma coordenação que vai atuar de forma muito ativa e em diálogo com todas essas frentes e áreas de enfrentamento à violência contra as mulheres, porque não dá mais pra gente achar que só campanha é suficiente para dialogar sobre a misoginia, o patriarcado e o machismo na nossa sociedade.
Ao anunciar o novo cargo nas redes sociais, você imediatamente falou sobre a defesa das mulheres indígenas. Como isso pretende ser feito na prática?
Eu sou uma mulher indígena e, não só por isso, uma das prioridades da minha coordenação de fato vai ser enfrentamento à violência contra as mulheres indígenas. Nós sabemos que mesmo durante governos democráticos populares essa pauta foi muito invisibilizada, eu diria até por conta da falta de informações, dados estatísticos, subnotificação. Então a gente vai ter que encarar essa questão. Ampliar a notificação, buscar garantias de que teremos estatísticas sobre quais são essas violências, como elas acontecem, em quais territórios. Para prevenir essas violências, vamos precisar tratar de alterações de legislação mesmo.
As leis em vigor, como a Maria da Penha, não contemplam mulheres indígenas?
Estamos falando de 305 povos no Brasil, né? Mais de 274 línguas. Isso inclui, inclusive, códigos de ética moral que não são iguais entre si e não são iguais aos nossos. É preciso entender o que é considerado crime de acordo com o olhar de cada etnia e não sob uma perspectiva que acredita ser universal. A proteção precisa chegar às mulheres indígenas, que a rede de enfrentamento à violência chegue nessa quantidade de territórios indígenas sem esquecer que não existe uma cultura uniforme, generalizada.
Até hoje, nenhuma lei de proteção às mulheres dá conta das especificidades da mulher indígena. Não houve um momento para discutir as maiores leis de combate à violência de gênero [a lei do feminicídio e a lei Maria da Penha] a partir das especificidades das mulheres indígenas, considerando medidas de proteção que funcionem em territórios mais afastados das áreas urbanas. Outro ponto que não é considerado na lógica não-indígena, é a forma de acolhimento das crianças envolvidas na violência doméstica. Muitas aldeias têm uma cultura de criação comunitária em vez de familista, e isso impacta nas políticas de proteção da infância também. Há ainda o afastamento do agressor, que por vezes pode ser o provedor de uma comunidade inteira. Tudo isso tem que ser estudado para a criação de políticas que de fato protejam essas mulheres.
Precisamos enfrentar também essa dinâmica imposta pelo agronegócio, pelo grande latifúndio, pelo garimpo ilegal de violência às mulheres indígenas. Quando eles chegam nos territórios indígenas, as primeiras vítimas nesse processo são mulheres. Seja por tentativas de prostituir corpos, seja por tentativas e concretização de inúmeras violências. É essa dinâmica, ainda, que está relacionada às áreas de conflito por terra, o que por si só é um problema de segurança e um agravante que dificulta a assistência. Esse é outro tema que a gente vai ter que enfrentar na discussão, inclusive ao lado da equipe do Ministério dos Povos Indígenas também.
A violência contra os povos originários, sobretudo mulheres, é uma herança histórica da construção do Brasil como conhecemos. Qual você acredita ter sido a maior falha do Estado nesse processo?
De 1500 para cá o Estado brasileiro se consolidou por ser quem primeiro violou direitos e corpos das mulheres indígenas. Essa é a configuração primeira do que gente chama de cultura do estupro do Estado brasileiro. O sequestro de mulheres indígenas para casarem com homens, com os colonos obrigatoriamente, o que também era uma forma de expropriação de territórios indígenas. Esse é um importante marco histórico. Quando a gente pensa na constituição do estado a partir da Constituição Federal de 1988, então, são inúmeras as falhas de forma a não viabilizar a existência das mulheres indígenas.
O Estado, durante muito tempo, sustentou a narrativa de integração da população indígena e de maneira geral não enfrentou essa lógica da cultura de estupro. É urgente atender direitos específicos das mulheres indígenas, que são a última na base da discussão do Brasil. E é importante também dizer que quando a gente falha no processo de demarcar terras indígenas no Brasil, a gente está tirando a principal condição de vida da população indígena que é ter sua terra pra morar e portanto as mulheres são as primeiras que sofrem o efeito disso.
É fundamental que nesse governo a gente consiga dar conta de responder ao problema da população indígena no Brasil, seja na política de demarcação de terras, seja na autonomia econômica, seja no acesso às universidades.
E a proteção aos demais grupos?
Ainda na intersecção de gênero, raça e classe, a gente tem que tratar com todo o cuidado das demandas das mulheres negras, que são as primeiras na fila em número de feminicídios. Tem que te dar conta de fazer uma política que seja para todas as mulheres do Brasil. De todas as raças e classes. Esse enfrentamento ao feminicídio, pensando nos números assustadores do Brasil e no Ministério das Mulheres de maneira geral, é o topo das prioridades. Não só minha, mas da ministra Cida Gonçalves e da secretária de enfrentamento a violência Denise Dau. Não dá mais pra gente ter uma mulher morta a cada seis horas.
Em várias de suas pesquisas, você fala sobre territorialidades e políticas públicas. Quais peculiaridades devem ser consideradas e priorizadas para a implementação de políticas que deem conta da proteção de mulheres em todas as partes do Brasil?
Eu sou uma pessoa que transito entre territórios. Entre a periferia de São Paulo, onde cresci, e o interior de Pernambuco, para onde voltei depois e fui criada nos costumes Fulni-ô da família do meu pai. Isso me ajudou a ver que uma diferença crucial entre esses territórios, e que deve ser considerada para que as políticas públicas funcionem, é o acesso. Quando a gente pensa na lógica de prevenção e enfrentamento à violência contra a mulher, isso é ainda mais sério porque é sobre ter ou não um equipamento de proteção. Numa cidade como São Paulo você tem, por exemplo, equipamentos em maior quantidade e as distâncias percorridas para chegar são menores. A dificuldade ali é que aquele equipamento não está preparado para especificidades, como no caso da mulher indígena.
No Norte e no Nordeste, eu diria que na maior parte do Centro-Oeste também, a situação é muito mais difícil. Porque além dessa questão de os equipamentos não estarem prontos, eles sequer chegam perto desses territórios indígenas. Então você tem casos em que a mulher viaja cinco dias para conseguir chegar a um local de acolhimento e realizar uma denúncia. A gente tem que aproximar esses serviços públicos dos territórios indígenas se a gente quiser mesmo enfrentar a violência contra essas mulheres.
O presidente Lula (PT), em mais de uma ocasião, falou sobre reforçar a presença de indígenas no governo. Quais estratégias você acredita que devem ser adotadas para aumentar essa representatividade indígena nos espaços de poder?
Eu acho que o ponto de partida é reconhecer que a população indígena não pode ficar na caixinha. A gente tem inúmeros indígenas no Brasil, dentro e fora das aldeias, completamente capacitados para assumir desde a gestão pública passando por espaços acadêmicos, das artes, do cinema e não necessariamente só para tocar a nossa pauta específica. Ela é fundamental, mas a gente tem muitos parentes que querem concretamente atuar de maneira mais ampla naquilo que eles foram formados e terem o reconhecimento a partir daquilo que escolheram fazer. O primeiro passo é reconhecer isso. Garantir a amplitude do espaço que nós podemos ocupar. Mas a gente só vai chegar nisso quando de fato discutir o racismo em relação à população indígena.